Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 52
"Tarde Escura"




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Apoiada nos degraus da longa escadaria, Constância assiste impotente à queda aparatosa de Laura. Descontrolada, solta um sonoro grito e, alargando os passos até ao limite permitido pela circunferência da barra da saia, lança-se sobre o corpo imóvel da filha ajoelhando-se ao seu lado.

Constância: Laura! Laura fale comigo filha. Sou eu, sua mãe que te ama. Fale comigo, por favor Laura, abra os olhos, diga alguma coisa – suplica com a face inundada de lágrimas e a voz embargada.

Catarina: Ai pobre Laura! Que cena triste desmascarar assim a própria mãe e ainda sofre a infelicidade de bater a cabeça numa queda frouxa como esta. Mas pessoas criadas em redomas de vidro são realmente frágeis – fala sarcástica apoiando uma das mãos nas costas do sofá em que se apoia enquanto observa o desenrolar da cena à sua frente.

Constância: Cale-se infeliz! – ordena encarando-a com o olhar queimando. – Tudo isto é culpa sua, saia daqui, saia de minha casa – berra desgovernada.

Catarina: Eu vou D. Constância mas não sem concluir a nossa conversa. Melissa é a outra metade do meu preço – desvenda séria e implacável enfrentando o ódio da rival. – Além da quantia que me ofereceu, a senhora vai entregar-me também minha filha mas resolva primeiro o problema que está diante de nós. Em breve darei notícias.

A curta e rude despedida dá-se após estas últimas palavras de Catarina que sai batendo mudamente a porta deixando para trás os destroços do temporal que arrasa a cidade entre copiosa chuva e retumbante trovoada. Trémula e assoberbada com as dificuldades que se lhe propõem, Constância volta a focar-se no estado inerte de Laura.

Constância: Luzia! – chama ciente da presença paralisada da criada atrás de si. – Telefone pedindo ajuda.

Luzia: Pois não senhora, vou telefonar para o hospital – afirma correndo ainda tonta para junto da mesinha onde descansa o aparelho.

Constância: Não – refuta recuperando a calma na voz sem desviar os olhos do rosto pálido da jovem depositada no chão. – Peça à telefonista ligação para o sanatório na periferia da cidade. Laura está muito nervosa, precisa de paz para entender que tudo o que eu faço é para o bem dela – conclui afagando-lhe os cabelos.

Embora confusa com a ordem da patroa, Luzia não contesta e cumpre à letra a vontade de Constância. Cerca de uma hora depois do chamado, Laura é conduzida, sem saber, rumo à incerteza.

Os ponteiros dos relógios que ressoam um pouco por toda a capital rodam sem descanso. A meio da tarde que caminha para o fim, sob um céu cujo negrume somente os relâmpagos vão de quando em quando rompendo, Edgar entra em casa molhado dos pés à cabeça mas visivelmente feliz. Na sala, acesa de velas e candeeiros, Matilde faz companhia a Francisco e Melissa que, calados e cabisbaixos, ocupam as duas poltronas fitando-se mutuamente. Ao ouvirem a voz do progenitor, que divertido reclama do tempo sacudindo os sapatos no tapete do hall, ambos saltam dos assentos e correm ao seu encontro implorando colo e atenção.

Edgar: Oh meus amores! – exclama ao ver as crianças. – Que bom chegar em casa e ser recebido por vocês – diz aninhando-se de modo a acariciar-lhes as faces.

Francisco: Papai, a mamãe também veio com o senhor? – pergunta tentando embrulhar-se no braço de Edgar humedecido pelo paletó.

Edgar: Não meu anjinho. Pensei que a mamãe já estivesse com vocês – declara achando-se de repente acometido por uma certa inquietação.

Melissa: A mamãe saiu há muito tempo – conta enfatizando a delonga – e eu estava com medo da chuva papai – confessa puxando o outro braço do advogado que a segurava pela pequena cintura.

Edgar: Florzinha, não precisa ficar com medo, é só um temporal – sorri esforçando-se por tranquilizar a menina. – Papai está todo molhado – reafirma manhoso franzindo o cenho. – Porque não sobem e pensam numa brincadeira que possamos fazer os três enquanto esperamos a mamãe? Vou trocar essa roupa e já encontro vocês.

Um pouco mais à frente, Matilde aguarda em silêncio o recolher das crianças para então saudar o patrão.

Edgar: Essa demora da Laura não é normal. Combinamos de jantar na Colonial, eu disse que viria mais cedo e ela garantiu-me que seria rápida nos compromissos da tarde.

Matilde: Também estranhei Dr. Edgar. Quando saiu após o almoço, D. Laura disse que voltaria logo, até prometeu às crianças que compraria um livro de contos. Não há de ser nada, ela deve estar com a Isabel esperando a chuva vagar.

Edgar: Espero que seja isso mesmo – fala dividindo o pensamento com a empregada. – Matilde fique atenta, Laura pode telefonar. Vou subir, tomar um banho e me trocar. Qualquer coisa avise-me, por favor – pede já a caminho do primeiro andar.

Durante o breve percurso, apesar do empenho em afastar qualquer reflexão nefasta, Edgar carrega no peito e na mente uma preocupação evidente. Através da pequena janela ao fundo do cómodo onde se banha, reluzem os clarões da tempestade, embalando a água tépida onde o advogado mergulha de olhos fechados por entre imagens sucessivas do rosto cândido de sua esposa que o fita.

Entretanto, na residência de Catarina reina um vibrante e alegre caos, repleto de festejos e graças que a cantora divide com Fernando. Acomodados na mesa da sala de refeições sobre a qual se espalha um abundante lanche, partilham as novidades do dia.

Catarina: É como te digo Fernando, de uma só assentada matei dois coelhos. Você precisava ver a cara da baronesa quando a filhinha querida surgiu, qual espectro, em plena escadaria horrorizada com as descobertas – relata em meio às gargalhadas de regozijo exacerbadas pelo vinho. – Mas a queda… ah Fernando, a queda que a Laura deu foi tão bonita de se ver que mal segurei o espanto e as interjeições de contentamento.

Fernando: Ora meu amor, que maldade rir da desgraça alheia – debocha cínico rindo também ele do discurso da cantora. – Nunca pensei que essa singela reunião com a baronesa nos fosse trazer tanta felicidade! Se eu pudesse… daria muita coisa para ver o desespero de Edgar quando a cunhadinha chegar em casa moribunda e com tantos podres para contar. Quanto ao meu pai, minha visita não foi tão produtiva quanto a sua mas rendeu-nos um montante certo e uma parte já está em minha posse. Agora basta comprarmos as passagens de navio, recolher o restante do dinheiro e preparar a supresa de despedida – prossegue estendendo o cálice na direção de Catarina, convidando-a a um brinde.

Catarina: Não sabes como estou aliviada! Finalmente tudo corre como planeamos e em breve estaremos bem longe daqui, gozando nossa plena liberdade, com os bolsos recheados e prontos para iniciarmos uma nova vida – afirma repetindo o gesto do rapaz erguendo igualmente o cálice. – Fernando – chama após uma resumida pausa. – Há mais uma coisa que quero contar-te – continua desfazendo o riso hipócrita.

Fernando: Pois diga mas pela sua expressão já antevejo que não deve ser coisa boa – replica recostando-se sério contra as costas da cadeira almofadada.

Catarina: Melissa embarcará connosco para a Europa. Exigi à baronesa que me traga minha filha juntamente com a quantia que me garantiu. Meu amor, eu sei que você…

Fernando: O quê? – indaga estupefacto impedindo as justificativas da noiva. – Catarina, você enlouqueceu? Como você decide uma coisa dessas sem nem me consultar? – refila levantando-se de supetão e claramente aborrecido.

Catarina: Calma meu querido. Melissa já está crescidinha, não vai dar tanto trabalho e temos sempre a opção de interná-la num bom colégio – refuta erguendo-se e seguindo os passos soltos de Fernando. – Pense por outro lado, pense no sofrimento que isso causará em Laura e Edgar – replica encaixando o rosto do jovem entre as duas mãos.

Fernando: Ah rouxinol! O que eu não faço por ti! – clama embevecido porém pouco convencido, abraçando-a. – Se você faz tanta questão de levar a menina, assim seja. A mim, serve-me de consolo saber que deixaremos mais essa mossa de recordação ao casalinho perfeito.

E assim, com a conivência um tanto ou quanto descontente de Fernando, Catarina aninha-se no peito do amado, entregue ao desejo da celebração luxuriosa que as marcas no corpo não lhe permitem, mais pela mágoa da vaidade do que pelos reais impedimentos físicos.

Afastadas do centro da cidade, sombreando as pedras frias e húmidas que delineiam a rua, jazem algumas árvores frondosas que o vento vai arrepiando fortemente à entrada de uma larga construção desbotada de cores e linhas, sobreposta por um crivo de letras visíveis a relativa distância. O exterior da porta principal rodeada de altos muros e grades está deserto. Porém, no seu interior, uma resma de gente povoa os corredores amplos e austeros, cujas paredes caiadas de um branco fúnebre ofuscam até os mais vigorosos olhos, a par dos uniformes da mesma cor que somente distinguem funcionários de pacientes pelo aspeto e cuidado corpóreo. Nada se ouve e pouco se vê naquela que é uma instituição criada para albergar os que padecem de doenças mentais, não rara vezes forjadas no intuito de condenar ao esquecimento quem ousa contrariar a lei da sociedade.

A meio de um dos muitos corredores que completa a ala de internamento, do lado oposto de uma porta fechada, Constância desfila impávida e inquieta. Nervosamente recostada contra a sacada da janela gradeada, Luzia acompanha impaciente os passos da patroa. Nisto, o punho da porta roda emitindo um abafado ranger e descobrindo dois vultos que emergem da mansidão do quarto. A liderar as hostes, um homem de meia idade, esguio e franzino, cabelo grisalho, liso, perfeitamente penteado. A bata branca e o porte sisudo deixam transparecer o papel que ali representa, o de médico. Atrás deste, uma jovem morena aparentando cerca de 30 anos, robusta e de pele alva, claramente presa aos rígidos padrões da profissão denuncia-se igualmente como sendo uma das enfermeiras.

Constância: Dr. Marques! – exclama aliviada diante da presença do homem. – E então, como está minha filha? Posso vê-la?

Dr. Marques: D. Constância, a senhora está ciente de que só estou internando sua filha pela estima que tenho pela sua família e muito particularmente pela senhora – responde bajulador. – A queda não provocou qualquer ferimento, a batida poderá despoletar uma dor de cabeça mas, tirando isso, D. Laura goza de plena saúde o que é ótimo já que, no estado em que ela está, não poderemos administrar-lhe qualquer medicamento sob pena da jovem perder a criança.

A notícia da gravidez apanha a baronesa desprevenida. No instante em que o médico profere as palavras finais, Constância acha-se oscilando entre a euforia de mais um herdeiro e o medo das consequências do seu ato drástico que ela própria vê como necessário. Sorrindo sem controlo aparente dos lábios, junta as mãos junto ao rosto e permanece calada por alguns segundos.

Constância: Laura está grávida! Não poderia receber notícia melhor que esta. A minha menina vai dar-me mais um neto, um herdeiro do sangue dos Vieira e dos Assunção. Dr. Marques, agradeço a sua generosidade em atender o meu pedido e fique tranquilo, a estada de minha filha nas suas instalações será temporária. Apenas alguns dias para que ela possa restabelecer-se da queda e de todas as dificuldades que tem enfrentado recentemente – garante, ocultando seus verdadeiros motivos. – Agora leve-me até ela, quero ver a minha filha.

Diante do consentimento pago do médico, Constância firma os passos em direção ao cómodo onde duas velas acesas mantêm a ténue iluminação. Entre as estreitas quatro paredes sem decoração alguma, permanece unicamente uma cama, tendo esta por companhia uma pequena mesa de cabeceira. Ao fundo, à direita da porta, uma cómoda de linhas mais ou menos retas e pernas de apoio torneadas, alberga uma das velas acesas. À medida que a baronesa se aproxima do leito despojado de luxos e conforto, saltam-lhe à vista as tiras de couro castanhas sobre a coberta branca. Enroscadas quais cobras nos pulsos e tornozelos do corpo paralisado da professora, impedem-lhe qualquer movimento, mantendo-a presa aos ferros que compõem a cama. A nitidez do ar frágil e sonolento de Laura vai-se intensificando no mesmo compasso em que a vela sobre a mesa de cabeceira lhe ilumina rosto. Ao seu lado, Constância achega-se ligeiramente, tocando a mão acorrentada da filha que as parcas forças haviam depositado na beirada da cama. Nos olhos marejados da baronesa, é claro o angustiante pesar, paradoxo da ação despropositada e excessiva que tomara.

Laura: Mãe! – murmura entreabrindo os olhos.

Constância: Shh… Descanse Laura, eu vou ficar aqui, velando o seu sono como quando você era pequena – responde embevecida acariciando-lhe a face.

Laura: Que lugar é esse? O que a senhora fez comigo? – inquere lentamente e atordoada tentando mover os braços amarrados.

Constância: Está tudo bem, vocês estão bem – fala tranquila levando a outra mão ao ventre da jovem enquanto sorri. – Você bateu a cabeça mas o médico te examinou, foi só um susto. Um pouco de repouso vai fazer-te bem e amanhã você vai entender que tudo o que eu faço é em nome da nossa família.

Laura: A senhora enlouqueceu! – acusa revirando vagarosamente o pescoço. – Edgar… eu quero vê-lo… não consigo me mexer… mãe, por favor… tire-me daqui – implora abrindo espaço para as lágrimas que a fio começam a brotar-lhe dos olhos.

Constância: Calma filha, aqui você vai ser bem cuidada. Eu virei te visitar todos os dias e quando você se sentir melhor, faremos passeios pelo jardim – promete em óbvio devaneio. – Se você não fosse tão teimosa Laura… eu não teria sido forçada a te trazer p´ra esse lugar. Mas você não me compreende, sempre opta por me atacar sem nem me ouvir – reclama entristecida.

Laura: Chame alguém, mande tirarem essas correntes… eu quero ir embora. Se a senhora insistir em manter-me aqui eu grito, eu grito até escutarem – intima num sussurro esforçado beirando o desespero.

Constância: Não Laura, não. Você não entende que se fizer isso a enfermeira virá te medicar? Isso irá prejudicar o seu filho, o meu neto. É isso mesmo que você quer? Não! Acalme-se… shh, shh… eu te amo tanto filha.

Os mimos desvairados que Constância imprime comovida no rosto aflito de Laura não chegam a tocar mais do que a pele da jovem. Vendo-se momentaneamente sem saída, Laura esforça-se por travar o ímpeto das palavras que lhe saltam à razão e emudece, sobrando apenas no eco vazio do quarto o ruído provocado pelo seu choro dolente.


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