Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 31
"Transição"




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Edgar conduzia o automóvel pelo crepúsculo chuvoso sem conseguir parar de pensar em Laura e na discussão que tiveram. O remorso começava a surgir por entre as sombras de raiva que ainda sentia. Deixou-se ir pelas ruas sem destino até que decidiu tomar o caminho da casa de Guerra. O amigo, pensava, saberia ouvi-lo. Depressa se achou batendo à porta do modesto apartamento do jornalista que o recebeu admirado.

Guerra: Edgar, você aqui a essa hora com esse temporal que faz lá fora? Pela sua cara já vi que aconteceu alguma coisa – diz fitando o amigo que continuava especado na porta com as roupas encharcadas e os cabelos desalinhados.

Edgar: Desculpa Guerra. Sei que não deveria aparecer assim mas eu precisava desabafar com alguém – diz cabisbaixo.

Guerra: Entra. Vou buscar uma toalha p´ra você se secar – fala dando as costas ao advogado que dá alguns passos em direção à sala de estar. – Tome, enxugue-se um pouco antes que apanhe um resfriado – previne estendendo-lhe uma toalha branca.

Edgar: Obrigada – agradece.

Guerra: Aceita um cálice de vinho tinto? – pergunta entornando um pouco da bebida em dois copos de vidro. – Creio que te fará bem.

Guerra oferece um copo meio cheio ao amigo que o toma num único trago. Um pouco mais enxuto, Edgar despe o paletó e senta-se no sofá suspirando profundamente.

Edgar: Eu e Laura brigamos – conta consternado.

Guerra: Foi o que pensei quando te vi nesse estado. Você não estaria assim por nenhum outro motivo que não esse. Foi assim tão grave?

Edgar: Agora que reflito, talvez tenha sido pior do que você imagina. A Laura candidatou-se a uma vaga de professora no colégio religioso feminino sem falar comigo primeiro – diz certo de sua razão.

Guerra: E vocês discutiram só por causa disso?

Edgar: Como “só” por causa disso Guerra? Ela agiu sozinha sem me consultar – afirma indignado com o descaso do amigo.

Guerra: Ora Edgar, perdoe a minha sinceridade mas você não acha que está exagerando? Pelo que você me dizia, ela nunca escondeu de você que queria dar aulas – acrescenta.

Edgar: Sim ela sempre disse isso mas ela já dá aulas na biblioteca. Essa ideia descabida de ser professora remunerada é uma afronta. É como se ela me dissesse que eu não cubro as necessidades dela, da nossa casa – argumenta nervoso tomando mais um gole de vinho.

Guerra: Você já parou p´ra pensar que ela pode não se sentir realizada como voluntária? A Laura sempre me pareceu ser uma mulher diferente das outras. Você deveria saber que mais tarde ou mais cedo ela não ia se contentar só com isso. O dinheiro funciona como um prémio pelo esforço e dedicação dela, não significa que ela vai querer sustentar a casa no seu lugar – diz com convicção.

Edgar: É, ouvindo você falar dessa forma eu até começo a achar que posso ter exagerado um pouco – concorda recostando-se vencido no sofá. – Me serve mais um pouco desse vinho que eu preciso extrapolar toda essa raiva que eu ainda sinto dela e de mim por ser tão machista às vezes – assume desapontado segurando o copo na mão.

Guerra: P´ra isso servem os amigos. Vamos beber mais um pouco que não há tristeza que o vinho não espante – brinca rindo à medida que enche ambos os copos.

Edgar: Machista! Ela me chamou de machista Guerra! – prossegue ainda indignado.

Guerra: É, não posso dizer que ela não teve os seus motivos – repara contrariando novamente Edgar.

A conversa prolongou-se pela noite dentro acompanhada por sucessivos copos de vinho e, por fim, até alguns brindes. Quando os primeiros raios de sol romperam, Edgar despertou abruptamente com a luz que lhe iluminava o rosto fatigado. Com algum esforço sentou-se e só então se deu conta de que dormira no sofá do apartamento de Guerra. Percorreu o corpo com os olhos embaciados pelo sono e levantou-se decidido a endireitar as roupas amassadas que lhe davam um aspeto desleixado. Verificou que dormira calçado, apanhou o paletó pendurado numa cadeira e saiu apressado.

Laura continuava adormecida na mesma posição. O cansaço a vencera de tal forma que nem a brisa que lhe arrepiava a fina penugem dos braços a incomodava. No andar de baixo, Matilde anda de um lado para o outro preparando a mesa para o desjejum quando o som da porta da rua abrindo chama sua atenção. Temendo tratar-se de algum intruso, a empregada espreita por entre os vasos junto à escada mas logo se tranquiliza ao ver Edgar.

Matilde: Bom dia Dr. Edgar. Me perdoe, pensei que fosse algum estranho tentando arrombar a porta – diz respirando aliviada.

Edgar: Bom dia Matilde. A Laura já acordou? – interroga um pouco impaciente.

Matilde: Creio que não. É cedo ainda e as crianças estão dormindo – afirma sem certeza.

O advogado não espera para ouvir Matilde até ao fim e corre pela escada firmando o passo em cada degrau. De frente para a porta do quarto, Edgar detém-se um instante e encosta ligeiramente o ouvido tentando perceber algum ruído. Ouvindo somente o sossego, leva a mão à maçaneta e roda o punho devagar. Com o corpo dourado pela luz do sol que emana da janela, Laura dorme tranquila. Pé ante pé, Edgar vai despindo o paletó e junto à cama aproxima-se da jovem deitando-se ao seu lado. Sem mais forças para resistir, afasta-lhe uma mexa de cabelo que lhe cobre a face e contempla-a por breves segundos. Ao sentir o toque suave do marido, Laura move-se no leito e acaba por acordar. Com os olhos mal abertos, olha para o lado esquerdo e vê Edgar que lhe sorri timidamente.

Edgar: Bom dia! Desculpa se te acordei – diz em voz baixa deixando cair todo o corpo sobre a cama.

Laura: Onde você passou a noite? Não minta que eu sei muito bem que você chegou agora de manhã – afirma visivelmente chateada.

Edgar: Na casa do Guerra. Eu fui até lá conversar um pouco e acabei adormecendo sem dar por nada – conta sentando-se na beira do leito. – Desculpa, eu sei que errei mas foi sem querer – fala olhando-a nos olhos.

Laura: As suas desculpas não me interessam. Vou tomar um banho e me arrumar antes que as crianças despertem – diz secamente andando em direção à porta.

Edgar: Laura espera, vamos conversar – pede indo atrás dela.

Laura: Conversar? Agora você quer conversar mas ontem à noite me deixou sozinha sem pensar duas vezes. Você dormiu fora de casa, não me deu satisfações e agora quer que eu fique aqui ouvindo suas explicações? Não Edgar, eu não vou ouvir nada. Vou cuidar das crianças porque afinal essa é a minha função, não é mesmo? – despeja indignada ao arrancar o braço que Edgar lhe segurava tentando detê-la.

Edgar: Por favor Laura, eu te imploro me escuta – suplica mais uma vez seguindo-a até à porta do quarto de banho que ela fecha violentamente deixando-o do lado de fora.

Decidido, o jovem volta ao quarto e despe as roupas sujas trocando-as por um roupão. Senta-se um pouco na poltrona ao lado da penteadeira mas o perfume de Laura atormenta-lhe os sentidos. Quer esperar por ela para resolverem a pendência que os apartara na noite anterior mas não tolera a espera. Lembra-se dos filhos e opta por ir velar o sono dos dois que ainda descansam no quarto em frente. No mês anterior e com bastante sacrifício, ambos haviam decidido colocar o berço de Francisco ao lado da cama de Melissa. Dessa forma, recuperavam a privacidade e preparavam o menino para dormir sozinho no quarto que lhe montavam ao lado do de Melissa. Em silêncio observou-os com ternura até que ouviu finalmente os passos de Laura no corredor. Avançou para a porta de rompante e surpreendeu a esposa que repunha o penhoar de seda que lhe escorregava pelos ombros. Entreolharam-se intimidados pelo ressentimento mas cheios de desejo um pelo outro. Um intenso arrepio percorre o corpo dos dois e Laura trai-se ao inclinar ligeiramente o pescoço para trás. Vendo o ar perdido da esposa, o advogado anda até ela e devora-a lentamente com os olhos pormenorizando com detalhe as linhas do seu corpo desenhados pela seda. Esforçando-se por controlar o desejo absurdo que se apodera dela, Laura morde os lábios e recua até sentir a parede do corredor arrefecendo suas costas. Edgar adianta-se mais alguns passos e sem tirar os olhos da jovem inicia vagarosamente o discurso que treinara enquanto a esperava.

Edgar: Eu fui um parvo ontem. Você está certa quando me acusa de ser machista, eu sou mesmo machista e ciumento. Laura, eu morro de ciúmes de você, desse seu jeito independente e livre – assume sem reservas analisando-lhe os lábios vermelhos. – Se você me perdoar, eu prometo que vou tentar entender essa sua necessidade de trabalhar – redime-se sincero quase colado no corpo da esposa que já não controla a pulsação acelerada.

De olhos fechados ouvindo as palavras de Edgar, Laura arranha ligeiramente a parede mas seu descontrole é notório. Aproveitando-se do estado rendido da jovem, Edgar desata com cuidado o laço que prende o penhoar de Laura e afasta as duas extremidades. A jovem abre os olhos e faz o mesmo desapertando o roupão do marido. Ávido, Edgar prende-lhe com uma das mãos ambos os pulsos na parede um pouco acima da cabeça e beija-lhe o corpo nu sôfrega e suavemente. Laura tenta soltar os braços desejosa de tocar o corpo do marido mas ele impede-a e força um pouco mais seu corpo contra o dela. Com a mão que lhe restava livre, o advogado acaricia a perna da esposa e ergue-a até senti-la encaixada em sua cintura. Tomou-a para si ali mesmo na parede do corredor. Edgar acabaria por soltar os pulsos de Laura que logo os apoiou no pescoço do marido e deixou-se carregar até ao interior do quarto onde terminaram de se amar.

O dia não terminou sem que tivessem uma conversa franca e ultrapassassem as mágoas e os ressentimentos da discussão. Laura aceitou o pedido de perdão de Edgar e desculpou-se também pelas palavras duras que não lhe poupara. Acordaram que ela poderia leccionar caso fosse admitida mas sua remuneração jamais serviria para suprir as necessidades da casa. Edgar entendia que essa era uma responsabilidade somente sua e Laura acabou por concordar para não impor de novo sua vontade.

Uma semana depois, Sandra e Laura receberam eufóricas a decisão da Madre Superiora. Laura organizou com Matilde os novos horários das crianças para que nada lhes faltasse e no final daquele mês de Março entraram as duas pela primeira vez no colégio como professoras remuneradas.

Os dias sucederam-se, passaram-se semanas, meses, vários meses, sem que Catarina voltasse a atrapalhar a vida do casal. Estranharam a princípio mas acabaram esquecendo a cantora mesmo quando as cores dos cartazes que anunciavam os seus recitais invadiam a cidade. Constância não se livrou da chantagem e todos os meses pagava pelo silêncio de Catarina. A quantia aumentou quando Dr. Assunção ascendeu ao cargo de senador. A baronesa deu uma festa tão sumptuosa que pecou pelo excesso e despoletou a inveja de Bonifácio que perdera o posto precisamente para o marido da amante. Laura recebia diariamente os elogios sinceros da Madre que se regozijava por ter contratado uma professora tão competente. Sandra não lhe ficava atrás. Por seu lado, Edgar consolidava passo a passo a sua reputação de melhor advogado do Rio de Janeiro e tinha já alguns clientes de outras cidades. Francisco e Melissa cresciam felizes, num lar equilibrado e repleto de amor.

Numa manhã de Domingo de Junho de 1908, Laura e Edgar fazem o desjejum com as crianças enquanto Matilde termina de preparar a cesta do pic-nic que combinaram fazer na praia de Copacabana.


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