Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 23
" Prevendo o Futuro"




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Se os céus adivinhassem o pesar de Edgar, teria chovido naquela noite de Agosto. Ainda o sol não nascera e Laura já estava de pé percorrendo os lugares vazios do cómodo com o filho nos braços. Francisco estava irrequieto e Laura esgotada. Enquanto embala o menino, controla Edgar que dorme agitado revirando-se no leito. As horas passam e os primeiros raios de sol rompem finalmente a escuridão do quarto. Edgar acorda sobressaltado com o choro de Francisco e logo dá pela falta da esposa. No quarto em frente, Laura aconchega Melissa que entretanto acordara com fome. Ainda um pouco desconcentrado pelo sono mal dormido, o advogado pega o filho e se deita com ele na cama acariciando-lhe o ventre que parece dolorido. Ouvindo o recomeço do pranto de Francisco, Laura volta ao quarto.

Laura: Bom dia meu amor – diz por entre o rosto fatigado.

Edgar: Bom dia. Laura, desculpa, eu não sei o que aconteceu. Você cuidou deles sozinha?

Laura: Sim mas não se preocupe. Outro dia você me recompensa, senhor advogado – fala compreensiva esboçando um brando sorriso. – Acho que terei que chamar o meu pai para ver o Francisco. Ele chorou quase a noite toda, fiz de tudo mas ele não se acalma.

Edgar: A barriguinha dele parece meio dura mas acho que ele gostou do carinho que estou fazendo nele – sorri olhando envaidecido o menino.

Laura: Vou pedir p´ra Matilde enviar um recado ao meu pai, fico mais tranquila assim. Você fica um pouquinho com ele? Eu preciso tomar um banho.

Edgar: Claro meu amor. Se eu pudesse iria com você, mas alguém tem que olhar por esse príncipe. Vai lá, a gente te espera aqui.

Laura demorou-se mergulhada na banheira. Sem saber como, Edgar acabara por adormecer o filho que descansava tranquilo no berço e decidiu-se a procurar pela esposa no quarto de banho. Ao sair do quarto, porém, deteve-se fitando a porta do cómodo de Melissa e não mais controlou a dúvida incerta que o acometera no dia anterior. Faz menção de entrar mas algo o impede de se mover. Laura sai do banheiro e vendo-o petrificado, interrompe-lhe os pensamentos.

Laura: Edgar!

Edgar: Ahm? – diz distraído olhando a esposa.

Laura: Você não vai entrar?

Edgar: Onde?

Laura: No quarto meu amor. Você não ia ver a Melissa?

Edgar: Sim, ia mas…

Laura: Edgar, independentemente do passado, o nosso presente inclui a Melissa. Você sabe o quanto me custou adaptar a tudo isso, à presença dela na nossa vida mas agora, ela faz parte dessa família. Não importa o sangue, e a gente nem sabe ainda ao certo, então, entre no quarto da sua filha e dê um beijo de bom dia nela. Eu vou me arrumar e espero você lá em baixo p´ra tomarmos o café da manhã.

Dito isto, a jovem se aproxima do marido e beija-lhe ternamente os lábios. Revigorado, o advogado abre a porta e vai em direção ao berço da menina.

Alguns minutos depois, estão ambos sentados à mesa tomando o café da manhã quando são interrompidos pela chegada de Guerra.

Guerra: Bom dia – cumprimenta alegre ao irromper pela sala.

Edgar: Guerra! Meu amigo, que bom te ver – fala contente erguendo-se rapidamente.

Guerra: Ah mas como você está mudado Edgar. O peso da responsabilidade parental te envelheceu meu caro.

Edgar: Ora Guerra, deixe-se de brincadeiras e me dê um abraço. Afinal, ainda não me cumprimentou direito pelo nascimento do seu afilhado.

Guerra: E eu lá sou de abraçar outro homem? Com todo o respeito, beijarei a mão de Laura, ela sim, está ainda mais bela e é merecedora de todos os cumprimentos – diz animado cumprimentando a jovem que se levantara também para recebê-lo.

Laura: Obrigada pelo galanteio. Nos acompanha no café da manhã?

Guerra: Aceito sim mas eu vim mesmo p´ra conhecer o meu afilhado, Francisco. Encontrei por acaso a Isabel esses dias e ela me disse que vocês voltavam nessa semana. Gabou tanto o menino que eu fiquei curioso. Segundo ela, puxou o pai mas eu ainda tenho esperança que ele tenha herdado a beleza da mãe.

Edgar: Mas hoje você acordou disposto a me enfrentar. Se contenha senhor jornalista, ou o processo por desrespeito à amizade.

Os três riem da brincadeira e conversam animadamente à mesa.

Guerra: Então, me contem, como vai a nova vida?

Laura: Vai bem, um pouco agitada e com bastantes noites mal dormidas mas estamos nos habituando.

Edgar: E você? O solteirão convicto não arranjou noiva nesse mês em que eu estive ausente?

Guerra: Deus me livre! Estou muito bem assim. Ser padrinho já me é suficiente.

Edgar: Mas eu ainda vou viver p´ra te ver subir no altar. E o jornal, como vão as coisas por lá?

Guerra: Temos tido bastantes matérias mas nenhuma que sobressaia. Estou ponderando contratar um novo jornalista para o “Correio da República” mas quero alguém que seja coerente e ao mesmo tempo polémico. Preciso de um jornalista que escreva com verdade sobre a verdade, entende?

Os olhos de Edgar brilham com as palavras do amigo que o remontam aos tempos em que fazia jornalismo em Portugal. Laura também se mostra interessada no assunto e elogia a ideia de Guerra.

Laura: Que ótimo Guerra. Você já tem alguém em vista?

Guerra: Pois é, – diz olhando Edgar de soslaio – eu até tinha pensado num velho conhecido que era perfeito para o que pretendo mas, não sei se ele está interessado.

Laura: E uma mulher? Você não acha que seria interessante e inovador ter uma mulher como jornalista? – pergunta entusiasmada.

Guerra: Ah Laura, isso seria possível se eu lançasse uma coluna sobre afazeres domésticos, o que não é o caso - ri desmerecendo a ideia de Laura e o papel das mulheres.

Laura: Não entendo porque ri. Por acaso não nos julga capazes de ter uma opinião e consciência social e política? – questiona aborrecida alterando o tom de voz

Guerra: Laura, não é bem assim. Eu…

Edgar: Melhor deixarmos essa conversa p´ra outra hora – interrompe prevendo uma discussão entre a esposa e o amigo. – Meu amor, porque não vai buscar o nosso filho? Guerra está com pressa, não é mesmo? fala encarando o jornalista.

Laura: É, eu vou lá, buscar o meu filho – diz levantando-se da mesa bruscamente e atirando com força o guardanapo de pano. – Mas não pense o senhor jornalista nem o senhor meu marido, que essa é a minha única função na sociedade. Eu sou mulher, sou esposa e sou mãe mas para além de tudo isso, também penso e não preciso que homem nenhum me diga o que eu posso ou não fazer. Com licença – conclui irónica e cheia de raiva do machismo declarado de Guerra e até da conivência de Edgar.

Guerra: Como ela é nervosa! Edgar, sua esposa tem pelo na venta – comenta estupefacto com a reação de Laura.

Edgar: Bem feito p´ra você. Quem mandou puxar esse assunto na frente dela? Ainda me arrastou junto e quase me denuncia.

Guerra: Você não contou p´ra ela?

Edgar: Claro que não. Era p´ro António Ferreira ter ficado em Portugal. Agora você me vem com esse convite… Se eu aceitar, vou ter que contar p´ra Laura e, nós já temos tantos problemas, eu não quero criar mais um.

Guerra: Tudo bem. Você é que sabe mas, se mudar de ideias, me procure no jornal.

Embora estivessem segredando, ao darem-se conta que Laura descia as escadas, ambos se levantam e se posicionam ao fundo das mesmas. Visivelmente zangada, a jovem pisa o último degrau segurando Francisco e os encara.

Laura: Francisco, esse senhor é um grande amigo do seu pai e será seu padrinho. Esse, senhor Guerra, é o seu futuro afilhado.

Guerra: Ele é encantador mas tão pequeno… – confirma a medo.

Laura: Óbvio que é pequeno. É um bebê com pouco mais de um mês. Ou achava que ele seria um homem do seu tamanho? – fala sarcástica.

Edgar: Laura, por favor. Não é p´ra tanto meu amor.

Laura: Se não está satisfeito, Dr. Edgar Vieira, pegue seu filho e faça as apresentações – diz estendendo os braços forçando o marido a tomar o menino. – Eu vou p´ro meu quarto ler. Se eu soubesse cozinhar, decerto iria p´ra cozinha mas, vejam bem, não sou uma mulher dada a prendas domésticas.

Com esta, sobe as escadas pisando firme e pesadamente cada degrau como se aquele gesto lhe acalmasse a fúria que sentia. Guerra e Edgar permanecem na sala por mais algum tempo e fazem por desviar o rumo da conversa. Depois de se despedir do amigo, o advogado leva o filho até ao andar superior e bate à porta do quarto anunciando-se à esposa. Como imaginara, ela não responde. Vendo que a porta estava destrancada, Edgar entra e fita Laura recostada na cama fingindo ler.

Edgar: Laura!

Laura: O que é?

Edgar: Vai ficar assim por causa de uma bobagem?

Laura fecha violentamente o volumoso livro de capa dura e o fuzila com o olhar.

Laura: Bobagem? Então eu não me enganei, você concorda com o Guerra. Você também acha que mulheres não podem ser jornalistas sérias?

Edgar: Não foi isso que eu quis dizer. Apenas entendo que uma mulher escrevendo sobre certos assuntos, não tem a mesma credibilidade de um homem – diz tentando justificar-se.

Laura: Como é que é? Desde quando o fato de eu ser mulher e você ser homem significa que você é mais credível do que eu?

Edgar: Não é nada disso. Você está entendendo tudo errado, me deixa explicar.

Laura: Você é que parece que não entendeu. Eu pensei que, ao menos nisso, você fosse diferente mas não. Pois ouça bem Edgar, eu não pretendo passar a minha vida dentro de casa ou dando aulas como voluntária na biblioteca. Até agora eu não falei sobre isso porque o Francisco é muito pequeno mas eu vou procurar uma escola e me tornar professora.

Edgar: Mas Laura, não há necessidade disso. Eu estou em começo de carreira mas já tenho bastantes e importantes clientes, posso muito bem sustentar nossa família.

Laura: E quem disse que eu quero ser sustentada? Eu quero trabalhar, você sempre soube do meu desejo de ser professora, de ter uma escola. Quero me sentir útil, ganhar o meu próprio dinheiro e eu vou fazer isso quer você concorde ou não.

Já de pé, Laura prepara-se para abandonar o cómodo sem dar tempo de Edgar responder mas é interrompida pela chegada repentina de Dr. Assunção que, junto à porta, presenciava o final da discussão.

Laura: Pai, o senhor estava aí?

Assunção: Recebi o seu recado e vim correndo ver o meu neto. A Matilde disse que eu podia subir mas, se adivinhasse, teria aguardado lá em baixo.

Edgar: Como vai Dr. Assunção? Nos perdoe, entre, por favor. – diz convidando o sogro para dentro do quarto e inclinando-se sobre a cama para deitar Francisco

Laura: Pai, eu pedi p´ro senhor vir porque desde cedo que ele chora quase sem parar. Já não sei mais o que fazer.

Assunção: Não deve ser nada de mais. Provavelmente o Francisco está com cólicas – diagnostica examinando cuidadosamente o menino.

Enquanto Assunção consulta o neto, Laura e Edgar trocam olhares num misto de incompreensão mútua embora, no fundo, o advogado também sinta orgulho e admiração na certeza corajosa da esposa. Incomodada com o olhar do marido, a jovem tenta abster-se e interroga o pai.

Laura: E D. Constância? Muito me admira que não tenha aproveitado sua vinda p´ra nos visitar.

Assunção: Também estranhei. Tomávamos o café da manhã juntos quando entregaram o seu bilhete, sempre pensei que ela me acompanharia mas parece que tinha um compromisso com Carlota.

Laura: Melhor assim. E o Francisco? O senhor já sabe ao certo o que ele tem?

Assunção: Tudo indica que são cólicas. Vou explicar p´ra vocês o que devem fazer para aliviar o desconforto dele.

Assunção segue dando alguns conselhos sob o olhar atento de Laura e Edgar enquanto que, do outro lado da cidade, na tecelagem Vieira, Constância visita Bonifácio em seu escritório. Como vinha sendo hábito nas últimas semanas, a baronesa pagava de forma peculiar a indicação para um cargo público que o senador fizera em bonança de Alberto Assunção.

Contudo, naquela manhã em que a hora se aproximava do meio dia, alguém mais presenciava de longe o compromisso inadiável de Constância, … Catarina Ribeiro.


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