O Caminho de Sandren - Livro 2 (Descaminho) escrita por Aviatorman


Capítulo 6
Cicatrizes a beira do caminho


Notas iniciais do capítulo

"Meu longo inverno veio e se foi e, com ele, o frio, o medo e a solidão. Não hibernei, mas me escondi nas profundezas mais quentes da gélida terra para continuar meu lento trabalho, planejando e criando, aguardando o retorno da primavera. E ela chegou. Que seja longa"
Minhas desculpas a todos que acompanham esta estória. Estive distante, mas pensei em cada um de vocês em minha ausência e na culpa que carrego por lhes ter abandonado. Tentarei recompensá-los, apesar da ciência de que não há redenção para mim...



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16

– Mas se é para Baltur que dirige suas preces, não é ele um deus, meu senhor? – as palavras de Adharn se fizeram acompanhar de um contínuo piscar de seus olhos claros, demonstrando que não havia compreendido o que ouvira – O deus dos Paladinos?

Midler sentiu a raiva querer apoderar-se dele uma vez mais, ardendo em seu peito e subindo quente pela garganta. Apertou com força a mão em torno da desgastada canga que empurrava, sentindo os dedos voltarem a doer. Seis dias inteiros já haviam se passado desde que Bharin quase os quebrara, mas a lembrança das lições que o anão lhe ensinara ainda estava lá, assim como em tantas outras partes de seu corpo. O discípulo tentou acalmar-se, repetindo silenciosamente que a culpa não era de Adharn, que aquelas palavras não eram dele. O experiente caçador era o mais velho entre eles, mas em seu íntimo era um homem simples, talvez simples demais. Havia se tornado um alvo fácil para os ardis que se escondiam atrás da aparente inocência das palavras de Uligan.

Apesar de guiá-los através das terras em que crescera e da oportuna caça que provia, Midler ainda acreditava que Adharn não deveria ter vindo, mas, assim como os outros, ele também estava em grande débito com Mesrian para recusar um pedido seu. Tentara argumentar sobre os perigos que poderiam encontrar e de como não seriam capazes de garantir nem mesmo a própria segurança, mas havia sido em vão. Suas palavras haviam caído em ouvidos já ensurdecidos para a razão. Ele sentia o sutil toque do diplomata a permear cada uma das decisões com que não concordara, mas que teve de acatá-las mesmo assim. Podia ouvir, por trás da rouca voz de Adharn, que aquelas palavras não pertenciam ao caçador e era isto que o irritava.

Por nove longos dias eles permaneceram na casa de Mesrian, aguardando que Uligan se encontrasse em condições de viajar. Sua recuperação fora lenta e dolorosa, mesmo sob os pacientes cuidados de Luciann e de suas duas filhas mais velhas. Ele não conseguira ingerir quase nada nos primeiros dias e debilitara-se ainda mais. Quando o diplomata havia recobrado parcialmente suas forças, Midler decidira que deveriam esperar por mais alguns dias, mas a vontade de Uligan prevalecera ao final, uma vez mais, motivada por uma urgência que parecia oscilar entre a prudência e o receio. No dia que se seguira, algo que debilmente se assemelhava a uma liteira fora montado sobre uma pequena carroça de madeira, normalmente usada para trazer o pouco que se conseguia tirar dos duros campos próximos às montanhas, para que ele pudesse viajar, enquanto os outros teriam de se revezar em duplas para puxar a rudimentar carruagem pelo pedregoso solo irregular. Com o inverno a bater em sua porta, Mesrian não consentira em dispor de nenhum de seus poucos animais de tração. Quando Uligan tomara seu assento, com a face marcada pela dor, o discípulo observou que nada mais restava da pompa ou da formalidade com que ele deveria ter cruzado os grandes portões de Caendlia, mesmo oculto sob o elmo de um simples soldado, mas o olhar obstinado certamente ainda era o mesmo.

E assim a estranha comitiva avançara, lenta e ruidosamente através dos pequenos bosques que cercavam as plantações de Mesrian, por entre arbustos que não ultrapassavam a altura dos anões e largos campos de folhagem alta, cujas estranhas flores selvagens ainda salpicavam o contínuo verde com suas muitas cores. Adharn indicava a direção que deveriam seguir e ele, Midler e Zartan se revezavam adiante dos demais, avaliando o terreno que se torcia aos pés das montanhas como a enrugada face de um ancião. Bharin e Brans seguiam silenciosamente em lados opostos do grupo, com o anão aparentemente recuperado de seus ferimentos e alheio a qualquer coisa que não estivesse à frente dos pequenos olhos semicerrados, sempre em profundo silêncio, enquanto a menina evitava olhar para o lado, permanecendo sempre tão próxima ao discípulo quanto possível.

As rodas entoavam seu contínuo lamurio pela relva e estalavam sobre as pedras secas, marcando a cadência da marcha e, por longas horas, este era o único som que se ouvia. Seguiram inicialmente para o noroeste, até que, ao final do primeiro dia de viagem, Uligan decidira revelar a Adharn, entre muitas desculpas polidas, que não se encaminhavam em verdade para a cidade de Vallerahn, famosa por suas músicas, pinturas e encenações, cujos mestres já haviam se apresentado para cada rei e imperador de Andhara, como inicialmente o diplomata dissera que seria seu destino. Midler também se desculpara com o caçador, sentindo-se envergonhado e enraivecido por ter-lhe escondido a verdade. “Uma verdade perigosa, quando não contada, não é uma mentira, mas um escudo, para proteger aqueles que queremos bem”. As palavras de Uligan continuavam a não lhe trazer qualquer conforto, mesmo agora.

Quando o sol do segundo dia se ergueu, encontrou o pequeno grupo dirigindo-se em sua direção, acompanhando o curso de um córrego que nascia nas distantes neves eternas ao sul, com a carroça agarrando-se penosamente ao umedecido solo macio de suas margens. Somente dois longos dias depois encontraram um pequeno vau de seixos a vazante para, finalmente, conseguirem atravessá-lo, seguindo então a curva que as grandes elevações faziam ao leste da Garganta. Uligan cerrava os dentes em um contido gemido a cada sulco, pedra e desnível, numerosos demais para que se conseguisse evitá-los a todos, enquanto Ohel caminhava fielmente ao seu lado.

O caminho que escolheram os mantivera afastados da larga trilha plana que seguia para o norte e os conduziria à movimentada estrada principal, o Caminho do Saber, e, a partir dele, à Caledhorn e à própria cidade dourada de Dantis, o coração do reino de Thimeran. Eram estes os caminhos que deveriam evitar para não despertarem suspeitas sobre quem eram e o que buscavam na extensa terra dos sábios. O discípulo se recordava que esta fora a última vez em que concordara com uma decisão do diplomata.

Midler também se recordava da primeira vez em que seguira à frente dos outros, com Brans em seu encalço como uma sombra. Abaixara-se sobre o topo de uma pequena colina pouco antes do sol se erguer, observando a terra que se dobrava até o horizonte em tons ainda escuros de verde, cinza e marrom, sem conseguir perceber quaisquer sinais de campos cultivados, cidades, vilas ou fazendas. Não conseguira divisar o último brilho de fogueiras em vigília a morrer ou colunas de fumaça a brotarem preguiçosamente de chaminés de terra batida, apenas uma silenciosa imensidão que se abria sob as primeiras luzes da manhã, perturbada apenas pelos gritos de distantes pássaros.

“Um belo reino de sábios e poetas, fechados em suas bibliotecas e debruçados sobre seus livros, capazes de enunciar distantes maravilhas que nunca viram como se eles mesmos as tivessem construído, mas tantas vezes ignorantes às belezas que os cercam”, pensara com tristeza, lembrando-se das palavras que ouvira de Laertes sobre o que encontrariam do outro lado das montanhas. Ao ver com um triste sorriso a beleza intocada de Thimeran aos pés das Montanhas do Gigante, soubera, uma vez mais, que seu mentor estava correto.

Midler então sinalizara aos outros, que aguardavam pouco abaixo, para que continuassem, dizendo a Brans para descer e seguir com eles. Permanecera ali por mais algum tempo, observando-os enquanto lentamente contornaram a colina. Adharn e Ohel conduziram a Uligan e os anões seguiram logo atrás, transportando os mantimentos e cobertas do último acampamento. Apenas as pesadas rodas haviam ousado queixar-se uma vez mais do esforço e do cansaço, enquanto todos os outros o faziam sem palavras. Midler sabia que os olhos de todos não mais se ergueriam pelo resto do dia, voltados para baixo em busca das armadilhas que se escondiam no solo macio, e o silêncio pesaria absoluto sobre cada um deles. Não lhe parecera naquele momento que aqueles eram os mesmos companheiros com que iniciara aquela viagem, apenas uma triste companhia de escravos, penando em um lento e doloroso avanço. E era Uligan quem segurava os grilhões daqueles que seguiam à frente, presos a sua vontade por pesadas correntes forjadas por amizade, promessas, e mentiras.

Mas Midler também se questionara se seria o diplomata o único culpado por estas correntes. Zartan e Brans estavam presos ao destino do discípulo por honra e inocência, sem que este tivesse o poder para libertá-los. Não poderia renegar a promessa feita a Uligan e sentia-se culpado também por isto. Não era este o caminho de um discípulo. Não era este o caminho de Sandren, mas estava preso a ele mesmo assim. Talvez apenas Bharin, em meio a toda sua selvageria e aparente estupidez, fosse verdadeiramente livre e senhor de seu destino, como um animal. Midler sentira inveja do anão naquele momento e questionara-se se seria, em toda sua retidão de preceitos e normas, realmente melhor do que ele ou o diplomata. E este pensamento ainda o assombrava.

– Senhor?

Adharn estava ao seu lado, puxando com ele a pequena paródia de uma carruagem, dividindo o fardo de conduzir seu feitor. Midler percebeu com crescente desconforto que esta era o único momento em que conversavam, quando estavam perto de Uligan.

– Baltur não é um deus, mas um exemplo a ser seguido – falava devagar, tentando controlar a respiração ofegante e as pernas doloridas, olhando sempre em frente. O sol já havia se escondido atrás das montanhas e o ar frio começava a queimar em sua garganta. Não faltava muito para descansarem e este pensamento o confortava, dando-lhe forças para continuar, mas havia tensão em sua voz – Minhas preces são por sabedoria e coragem, não pelas dele, mas para que eu encontre as minhas.

Midler percebeu Adharn girar ligeiramente a cabeça e olhar para trás, buscando por algo. Após um minuto de silêncio, o caçador se voltou novamente para ele.

– Mas de onde vem o poder dos Paladinos então, senhor, senão de suas preces?

Midler parou de caminhar, inspirando profundamente e batendo com força as mãos espalmadas contra seu lado da canga, fazendo-a tremer. Ouviu com satisfação o contido gemido que surgiu com o abrupto solavanco. Todos se detiveram ao ouvirem o súbito estalo de madeira e o silêncio das rodas. O discípulo respirava pesadamente. Estava farto daquilo, das perguntas de Adharn e dos jogos de Uligan. Estava farto de se sentir manipulado. Estava farto de si mesmo e de sua fraqueza. Virou-se, encontrando os olhos do diplomata sobre si. Ohel aproximou-se de seu amigo, receando o que lia no olhar do discípulo.

– Não sou obrigado a dizer-lhe nada, diplomata! Homens melhores do que jamais serei se obrigariam a responder a toda pergunta, sempre e com a verdade, mas não eu! – o grito de Midler deixava claro o que sentia. “A verdade não dita não é uma mentira”, uma voz sussurrou em seus ouvidos, aumentando ainda mais sua raiva. Teria caído uma vez mais nas armadilhas do diplomata? Virou-se para Adharn com o dedo em riste contra o rosto do caçador – E você confunde astúcia com inteligência e estupidez com virtude!

Zartan aproximou-se do discípulo com o semblante fechado pela reação do discípulo.

– Midler, não acredito que um Paladino agiria...

– Não sou um Paladino, senhor Zartan! – as palavras do anão pareceram apenas aumentar sua dor, umedecendo-lhe os olhos – Não sou o que espera de mim!

Midler afastou-se de todos, passando pelo anão e entrando no pequeno bosque que margeavam desde o começo da tarde. Zartan tinha um olhar severo sobre o discípulo, mas não tentou detê-lo, apenas impediu que Brans o seguisse.

– Deixe-o, menina. Ele deve ficar a sós por enquanto – voltou-se na direção de Uligan, que mantinha um estranho olhar sobre o discípulo que desaparecia por entre as árvores – Há momentos em que palavras podem ser mais traiçoeiras que uma adaga em nossas costas, mesmo as que não foram enunciadas.

Midler caminhou por várias dezenas de metros, até muito depois de deixar de ouvir os sons que os outros faziam ao descarregarem as provisões e prepararem o acampamento para a noite. Deixou-se cair pesadamente sobre um desnível do terreno, ao pé do qual um riacho seguia preguiçosamente, formando uma pequena lagoa. Sentia-se grato pela úmida quietude que o cercou, mas que não encontrava eco em seu interior. Segurou a cabeça entre as mãos trêmulas, tentando dar ordem à cacofonia que a preenchia. Ouvia as vozes de seu pai, de Laertes e de Zartan, assim como as risadas roucas de Bharin e as palavras dúbias de Uligan. Sentiu-se de repente muito cansado, mas sua raiva não iria permitir que descansasse, não agora. Desejou por um momento ser como o anão selvagem e dar vazão à ira sem preocupar-se com as conseqüências ou com as opiniões de outros, mas este pensamento apenas o fez sentir-se ainda mais fraco, sujo e indigno. Seu mentor o chamara uma vez de “filho de Sandren”, mas onde estavam estas virtudes agora? E onde estava agora seu mentor? Morto. Morto porque seu último discípulo fora imprudente, arrastando-o para a morte, para longe do caminho.

“Midler, esta não é sua luta! Não sabe o que está acontecendo!”

As palavras atravessaram novamente sua alma, fazendo as lágrimas finalmente descerem incontidas pelo rosto. Laertes estava morto e ele continuava a lutar em uma causa que não era sua. Laertes tentou avisá-lo, mas ele não lhe deu ouvidos. Desde aquele dia não havia sido mais a estrada para Sandren que trilhara, não havia mais pensado no caminho que deveria trilhar, mas as perguntas de Adharn trouxeram de volta as lembranças de quem deveria ser e de quem deveria almejar ser. Retirou as desgastadas luvas e baixou as mãos, olhando-as longamente. Estavam repletas de calos e escoriações, manchadas, sujas e endurecidas. Via nelas um reflexo de sua alma, de como se sentia. Nada poderia estar mais distante da imagem que guardava de Télan e dos outros Paladinos. Nada poderia estar mais distante da imagem que se esperaria de um discípulo de Sandren. Nada poderia estar mais distante do caminho. Procurou pelas virtudes que tanto admirava em seu pai, em Laertes e em Zartan, mas não as encontrou nas escolhas que fizera. Havia apenas medo, morte e mentiras a pavimentarem a estrada que trilhara desde Latani até ali.

Desembainhou a espada, desejando por um inimigo, alguém a quem pudesse direcionar seu ódio, mas não havia ninguém ali, apenas ele mesmo. Girou a lâmina no ar, andando de um lado para o outro pelo solo lamacento, como se estivesse entorpecido, tentando atingir os fantasmas que apontavam em sua direção em um silêncio acusador. Os golpes incertos cortavam os gravetos dos arbustos e arrancavam lascas das árvores que atingiam, até que, com um som oco, sua espada ficou presa contra um largo tronco escuro que se projetava sobre as águas da lagoa, como se para bebê-las. Midler tentou arrancá-la, mas a árvore não a libertou, parecendo se voltar para ele com a mesma acusação nos olhos que apenas o discípulo podia ver. Enfurecido, agarrou o cabo com ambas as mãos e apoiou o pé contra o tronco, puxando com toda a força. A lâmina se soltou com um grito do discípulo, que caiu pesadamente com as costas sobre um tapete de folhas mortas, praguejando.

Ainda caído, girou a cabeça e olhou através da úmida névoa que cobria os olhos para a espada em suas mãos. Uma seiva clara escorria pelo afilado gume, o sangue de seu inimigo derrotado. Um frívolo sorriso se desenhou em seus lábios, mas mesmo este tímido momento de alegria rapidamente se desfez, ao lembrar-se de que a arma que carregava também não era a espada com a qual deixara a Marca da Vitória, mas uma que Uligan havia escolhido para ele. Mesmo esta pequena vitória não havia sido sua. A lâmina de Sandren jazia partida em algum lugar longe do caminho que deveria trilhar, assim como ele. As vestes que usava agora também não lhe pertenciam, não eram as que seu pai lhe dera quando deixou a Marca, mas as que lhe foram dadas na Casa de Urm. Não havia nada mais que o recordasse do discípulo que fora. Ele era agora apenas mais uma mentira, uma falsa verdade torcida pela vontade dos diplomatas e clérigos de uma ambígua divindade.

Com um grito de raiva, ergueu-se em um salto e continuou a golpear com força a árvore que o desafiara, tentando parti-la, assim como à espada. Suas mãos doíam a cada golpe, o impacto ondulando pelos braços, mas ele não os sentia. Lascas de madeira e seiva espirravam em seu rosto, mas não se importava. Havia encontrado um inimigo para enfrentar. Havia agora em seu peito apenas a raiva. Raiva e lágrimas.

Caiu ofegante sobre os joelhos à margem da lagoa, finalmente vencido pelo cansaço, apoiando-se na lâmina que não conseguira quebrar. Acima dele a árvore jazia ferida e sangrava abundantemente, mas permanecia de pé, acusando-o em uma voz que apenas ele ouvia, enquanto o bosque voltava a se cobrir em seu manto de silêncio. Ao olhar para baixo, viu um rosto que quase não reconheceu refletido nas águas serenas, com as últimas luzes do moribundo dia a contorná-lo. Os cabelos indomados e uma curta barba desgrenhada escondiam os traços que um dia lhe foram tão familiares, enquanto a sujeira sob os olhos inchados era arrastada em escuras linhas. O rosto do valoroso menino parecia haver se perdido por trás do de um envelhecido estranho, embrutecido e selvagem.

Uma súbita risada rouca rasgou o silêncio, sobressaltando o discípulo que se voltou em sua direção. Bharin o observava, um largo sorriso a curvar a escura barba. Midler apenas expirou longamente, desanimado demais até para demonstrar a vergonha que sentia. O anão caminhou com passos firmes até onde estava, trazendo os dois curtos bastões de madeira com os quais treinavam.

– Com todo respeito, Bharin, – sua voz era fraca, sem força ou vontade – não estou disposto para treinamentos hoje.

Se o anão compreendeu aquelas palavras, não fez qualquer menção de tê-lo feito. Parou a três passos dele, arremessando um dos bastões e segurando o outro em uma linha horizontal, próximo ao corpo. Midler permaneceu sentado, observando com cautela o estranho olhar do anão e o sorriso que rapidamente derreteu em seu rosto, até desaparecer. Bharin estivera diferente desde que deixaram a casa de Mesrian, sem falar qualquer palavra, nem mesmo com Zartan, mas treinara com o discípulo todas as vezes que ele o procurara, dolorosamente ensinando-o a se defender de toda sorte de ataques traiçoeiros, mas Midler não havia mais presenciado sua ira, não havia mais visto aquele olhar que estava agora em seus olhos. Soube então que Bharin não estava ali para treinar com ele. Era a primeira vez, desde a Garganta, que o anão tornava a segurar uma arma com as duas mãos e o fazia sem demonstrar qualquer esforço ou dor.

– Kharar!

A voz rouca do anão transpôs com dificuldade os dentes cerrados, em uma respiração ruidosa. Midler teve dificuldade em entender o que ele dissera, sentindo o coração contrair-se em medo, mas percebeu que aquela palavra era a mesma que Zartan lhe dissera quando começaram a treinar, ainda na casa de Mesrian. “Lute”.

Bharin parecia estar novamente tomado por sua fúria e os pequenos olhos não se prendiam a nada, senão ao discípulo. Apesar de ser bem mais alto, Midler olhava de baixo o anão e sentiu-se intimidado como se estivesse novamente frente ao gigantesco mestre ferreiro Tallamir, mas sabia que, desta vez, seu oponente não se conteria.

– Senhor Bharin, eu...

O bastão do anão cortou o ar com um silvo agudo, dando ao discípulo apenas o tempo de se abaixar. A ponta atingiu a árvore atrás dele com um estrondo, arrancando-lhe um grande pedaço da casca rachada, aspergindo pelo ar do bosque minúsculas gotas que brilharam sutilmente sob o crepúsculo. Midler sabia que ele não tentara atingi-lo, ou não estaria mais vivo. Bharin havia apenas lhe dado um aviso.

Khararr! – sua voz agora era um urro de raiva, uma voz de comando à qual nenhum homem poderia contrariar.

Midler ergueu-se, apoiado em seu bastão, apenas para tê-lo arrancado das mãos por outro golpe ainda mais violento. Um gemido se fez ouvir quando a dor cruzou seus braços.

Mö! – o anão girou a cabeça de um lado para outro, deixando clara sua negativa. Apontava para o peito do discípulo com o bastão enquanto o circundava, pronto para atacar – Khararr!

– Não quero lutar com você, senhor Bharin!

Esta nova hesitação lhe custou um duro golpe na parte de trás do joelho, fazendo-o cair de volta ao chão. Bharin gritava palavras carregadas de ódio, mas o discípulo não conseguia compreendê-las. Quando tentou se erguer, o bastão desceu sobre suas costas, arrancando-lhe o ar dos pulmões. Um chute em seu flanco fez seu estômago revirar-se, elevando seu corpo momentaneamente no ar. Midler tentou apoiar-se em um dos joelhos e girar a cabeça para olhar o anão, mas um soco em seu rosto terminou por derrubá-lo uma vez mais. Tentou falar, mas as palavras se afogaram no espesso líquido que preencheu quente sua boca. Não tinha mais forças para se erguer, permanecendo deitado sobre folhas, lama e água. Quase não sentiu quando Bharin pressionou a ponta do bastão sobre sua garganta, falando-lhe com raiva próximo ao ouvido, como em uma maldição.

Irnuz dzurin Dhân, Rogaroth!

O bastão do anão permaneceu firmemente pressionado contra a garganta de Midler, no limite de destroçá-la. Parecia esperar por uma resposta do discípulo, mas este não sabia o que fazer.

– Deixe-o em paz! – o grito agudo de uma menina perturbou a tênue trégua que se fizera após as palavras do anão.

Ao se virar Bharin viu Brans segurando uma adaga a poucos metros deles, pronta para arremessá-la. Sua mão estava firme, como Alghor lhe ensinara que deveria sempre estar, mas havia um misto de raiva e pavor em seus olhos trêmulos. Lembrava-se da caverna escura na montanha, da dor e da selvageria do anão.

– Afaste-se dele! – a menina gritou novamente, tentando sem sucesso empregar firmeza à voz.

Bharin olhou longamente para ela e para o discípulo aos seus pés, analisando-os. Então, abriu um estranho sorriso e afastou o bastão, jogando-o por entre os arbustos sem qualquer cautela. Acima, o céu já começava a se fazer escuro, com as primeiras estrelas no leste a saudarem o perene Guardião. O anão levou rapidamente a mão esquerda atrás das costas, buscando por algo sem tirar os olhos da menina. Brans sentiu os pelos em sua nuca se arrepiarem com aquele movimento. Era o mesmo que ela o vira fazer antes de arremessar um machado na cabeça de um dos ladrões na montanha. Antes que pudesse pensar ou perceber, o medo já havia lançado sua adaga contra o anão. A pequena lâmina cortou veloz o frio ar do bosque, decepando uma ressecada folha em seu caminho certeiro. Sem mover o corpo, Bharin agarrou a arma da ladra com a outra mão em pleno ar, a afiada ponta parando a poucos centímetros do largo nariz, e seu sorriso aumentou.

Brans não se moveu, sentindo o ofegante respirar a queimar em seu peito. O tempo parecia haver se congelado a volta deles e apenas a pequena folha partida ousava se mover, pairando lentamente até o chão. O medo a havia tomado agora por completo. Sabia que o anão poderia matá-la com um único arremesso, que deveria tentar buscar a proteção de uma das árvores próximas, mas não ousava deixar Midler sozinho, certa de que o anão o mataria no momento em que desaparecesse. Seu corpo tremia, implorando para que fugisse, mas ela permaneceu onde estava.

Bharin abaixou devagar a mão que segurava a adaga, sempre sorrindo, e trouxe a outra mão para frente do corpo. Não carregava nenhuma arma e, ao abri-la, um pequeno embrulho de tecido cru se revelou, pouco menor que uma bolsa de moedas. Abaixando-se, colocou-o no chão, na frente do rosto de Midler, que apenas o observava, sem força ou ânimo para reagir. O anão apontou firmemente para o embrulho, até ter a certeza de que o discípulo o havia percebido.

Drarlin! Drarlin! – sua voz soava estranhamente suave.

Bharin ergueu-se e retesou o corpo, batendo firmemente com o punho fechado contra o peito. Em seguida, afastou-se sem esperar por uma resposta.

Brans viu o anão se aproximar de onde estava, sem que ele olhasse em sua direção. O medo ainda a dominava, mas havia agora também a curiosidade de saber o que ele pretendia. Ao passar por ela, Bharin se deteve, sorrindo, e lhe estendeu gentilmente o cabo da adaga, quase em uma reverência. Brans a pegou lentamente, sem conseguir perceber no sorriso do anão nenhum sinal de escárnio ou troça, o que o tornava ainda mais assustador. Bharin a cumprimentou com um aceno de cabeça e seguiu para onde os outros estavam, parecendo resmungar alegremente algumas estranhas palavras ritmadas. “Seria uma canção?”, a menina imaginou, incapaz de compreender ou mesmo acreditar no que havia visto.

Após um momento, Brans pareceu despertar e embainhou sua arma, correndo até onde Midler estava, encontrando-o já sentado e com os olhos voltados para o pequeno embrulho entre as mãos.

– Você está bem? – ela não sabia ao certo o que fazer, olhando para o rosto avermelhado do discípulo onde o anão o atingira. Não havia cuidado de um guerreiro ferido antes, apenas das pequenas escoriações que a fuga da guarda de Caendlia por vezes lhe causava ou a seus irmãos – Aquele desgraçado podia ter te matado!

– Mas não o fez – a voz do discípulo estava estranhamente distante, como se falasse com alguém que não estava ali, sem olhar para a pequena ladra – Mestre Zartan não estava aqui para impedi-lo, ele poderia ter quebrado meus ossos ou me ferido seriamente, mas não o fez. Ele não estava descontrolado, sabia o que estava fazendo.

– Eu não entendo... – Brans umedecera um pedaço de tecido de suas roupas e limpava com cuidado a lama do rosto do atônito discípulo, que não esboçou qualquer reação.

Midler se recordava de quando o desafiara pela primeira vez, na casa de Mesrian, e de como não havia compreendido a princípio a atitude do anão. Bharin o atacara covardemente, mas havia também se contido. “Anar dur kharar-em”, ele lhe respondera, fazendo apenas aquilo que o discípulo pedira a ele.

Kharar – Midler repetiu em um sussurro, falando consigo mesmo – Ele queria que eu lutasse, mas não era contra ele...

– O que ele lhe disse? – Brans tentava controlar as mãos trêmulas, retirando as folhas mortas que haviam se prendido ao cabelo do discípulo.

Drarlin... Ele tentou me dizer algo.

Midler abriu devagar o pequeno embrulho, sentindo os dedos doerem a cada movimento. Dentro havia apenas uma pequena placa entalhada em pedra clara, protegida por uma fina moldura em metal baço, já desgastada pelo tempo e pelo manuseio. Nela, a gravura de um pequeno anão curvado, com a barba já a enrolar-se pelo chão e debruçado em seu longo bastão, parecia apoiar outro, maior e mais jovem, que combatia com um grande machado uma horda de estranhas criaturas com cabeças de serpente. O guerreiro parecia muito ferido, mas o ancião, mesmo enfraquecido pela idade avançada, não permitia que caísse, sustentando-o. O discípulo não sabia quem eles seriam, mas a cena lhe era muito familiar.

– Desgraçado... – Midler sentiu as lágrimas voltarem aos olhos, mas estas não eram mais de raiva ou vergonha, apenas do vazio que sentia. Eram lágrimas de perda e de saudade.

“Não posso mais lhe dizer o que fazer ou que caminho trilhar, mas quero que tome a estrada que o conduz até o destino que escolheu”. As palavras de Laertes ecoavam em sua alma, deixando-o surdo para as inúmeras perguntas que a menina lhe fazia. Seus olhos estavam agora fechados, mas eles os via, entalhados na pedra que tinha nas mãos. Seu pai, Laertes, Oderen e Zartan. Estavam todos ali, na frágil figura do pequeno e curvado ancião, assim como ele também deveria estar, ferido e abatido, mas ainda lutando, ainda em seu caminho, não importando o inimigo.

– Brans, – Midler se voltou para a menina de repente, os olhos arregalados como se despertados de um transe, calando-a com o susto – preciso de sua adaga!

A menina não compreendeu aquele pedido, mas colocou rapidamente a mão sobre a bainha, protegendo-a. Estava assustada, subitamente com medo do que ele faria ou de que poderia tomar a lâmina se ela se recusasse a entregá-la. Não conseguia compreender o que via nos trêmulos olhos do discípulo. Havia agora apenas uma firme resolução neles, mas isto em nada conseguia confortá-la. Aos poucos, sua mão deslizou pela bainha até se fechar sobre seu cabo, puxando-a lentamente. Uma voz dentro dela lhe gritava para arremessá-la na lagoa, mas ela não teve coragem, sentindo-se pequena demais. Receosa, entregou a adaga.

– Agora volte para os outros, por favor – Em outro momento ele teria vontade de rir ao ver os olhos arregalados dela, mas não agora. Continuou em uma voz firme, mas desprovida de emoção – Não se preocupe. Prometo-lhe que tudo ficará bem, como há tempos não está.

Brans ergueu-se devagar, afastando-se sem nada dizer, mas apenas até onde ele não poderia mais vê-la, escondida entre as folhas do fim de outono que ainda agarravam-se aos arbustos ressecados. Sentiu o corpo tremer levemente, como se o frio vento da montanha houvesse alcançado a pequena clareira, mas as folhas se mantinham imóveis, em silencioso testemunho ao seu lado.

O discípulo olhou longamente para a lâmina, girando-a lentamente em suas mãos, parecendo perceber seus contornos pela primeira vez ou descobrindo neles detalhes que nunca havia visto. Passou os dedos levemente sobre o pomo em forma da cabeça curvada de uma pequena ave, símbolo de sua casa, como se o acariciasse. Apertou os olhos com força e uma pequena lágrima desceu por seu rosto imundo. Respirando profundamente, colocou a mão esquerda em torno da base do pescoço e ergueu a cabeça, encostando a afiada lâmina contra a pele retesada.

Brans quis gritar, mas as palavras morreram em sua garganta, paralisadas pelo medo.

E a adaga então deslizou.


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