O Caminho de Sandren - Livro 2 (Descaminho) escrita por Aviatorman


Capítulo 7
As muitas sombras da estrada




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17

A madeira começou a estalar sob as chamas, o que fez um sorriso acompanhar a luz e o calor que banhavam o rosto de Adharn. Temia que a úmida madeira que encontraram na orla do bosque se apresentasse como um desafio muito mais difícil para acender a fogueira, mas ele quase não teve trabalho. As primeiras faíscas de sua pederneira rapidamente arderam por entre as folhas, como se estas fossem palha seca sob o sol de verão. Ergueu os claros olhos cheios de orgulho e viu Ohel do outro lado das chamas com as mãos levemente estendidas sobre elas, felicitando-o com um aceno de cabeça. Adharn devolveu o cumprimento e tornou a baixar os olhos, sentindo-se estranho. Era para ser Aghord do outro lado da fogueira, como em tantas outras noites frias de caçadas por entre matas e florestas, mas o irmão havia ficado em casa, assim como o resto de sua família.

Era a primeira vez que se afastava tanto de casa sozinho. Não queria ter vindo sem o irmão. Na verdade, não queria ter vindo, mas seu pai insistira que um deles deveria ir com o jovem senhor Summerion, para reviver a honra esquecida da família. Ele não compreendeu estas palavras, como era comum quando Mesrian lhes falava dos tempos de sua juventude e sobre coisas que os gêmeos não compreendiam, como cavalaria, pajens e escudeiros, mas ele jamais contrariaria uma ordem do pai. Sua família sempre teve uma vida simples e difícil por entre os duros vales aos pés das montanhas, mas Mesrian sempre exigira que seus filhos e filhas fossem corretos e respeitassem a autoridade. Olhou uma vez mais para as chamas a dançar e sentiu-se um pouco melhor, voltando a sorrir timidamente.

O pequeno acampamento estava pronto para a noite, aquietando-se em torno da pouca claridade da fogueira. Ela havia sido preparada em um buraco , dentro de um círculo de pedras soltas que a cercava. Quando Adharn recolocou a pedra que havia tirado para acendê-la, seu brilho quase desapareceu, sobrando a eles apenas as últimas luzes do crepúsculo. O calor iria demorar a atravessar a pequena muralha e chegar até os que o buscavam, mas não seriam vistos por olhos fora do acampamento. Era um truque para não chamarem a atenção de outros caçadores, ladrões e do que mais poderia se esconder nas sombras da noite. Não que houvesse muito para se ver ali, além de um amontoado de peles e sacos dispostos em torno da fogueira, protegidos dos ventos da montanha por algumas árvores próximas.

Adharn abriu o manchado saco onde guardara os restos da última caça, uma pequena corsa que demorara demais para perceber sua aproximação. Uma flecha em suas ancas fora o suficiente para derrubá-la e a lâmina do caçador fizera o resto. Esfolou-a com habilidade, preservando intactas tanto a pele como a pouca carne do animal. Não era muita, mas seria melhor que a carne salgada e o pão duro que comeram nos últimos dias. Mesrian os entregara um pouco do abate de alguns de seus porcos para o inverno, mas provavelmente não iria durar toda viagem, agora que o destino deles ainda lhe era desconhecido. Adharn não sabia para onde iam, mas não queria contrariar a vontade de seu pai, apesar de por vezes ter dúvidas se estava fazendo o que era certo. Ele evitava ponderar sobre isto, sentindo-se confuso e perdido quando o fazia.

“A caça vai ficar escassa quando deixarmos a floresta”, pensou, procurando pensar apenas no que lhe cabia saber. Deveria guardá-la para os próximos dias, mas o cheiro que começava a emanar do saco lhe dizia que a carne se perderia se não a comessem logo. “Devia ter trazido mais sal da montanha”, descobriu sem ânimo. Pegou seu velho espigão de ferro e espetou os pedaços de carne, preparando-os para assar, enquanto observava o que os outros faziam.

Zartan era ainda menor que suas irmãs mais velhas, mas era tão largo quanto o mais forte homem que já havia visto e, apesar de parecer sempre nobre e correto, conseguia intimidar o caçador apenas com um olhar. Disseram-lhe que era um anão, um guerreiro de um bravo povo que vivia sob distantes montanhas, mas a palavra trouxera pouco esclarecimento consigo. Adharn apenas sabia que não desejava enfrentá-lo, nem mesmo em treinamento. O anão desenrolara suas peles um pouco mais afastadas do fogo e tomara seu posto de vigília, como sempre fazia enquanto o acampamento era montado, mas, desta vez, caminhava de um lado para outro, inquieto como um animal enjaulado. Este não era um bom presságio, mas a saída repentina de Midler havia deixado a todos desassossegados.

Uligan aparentava ser o senhor da caravana, apesar de muitas vezes suas ordens serem contestadas pelo jovem guerreiro que deveria ser seu protetor. Estava agora sentado com as costas apoiadas em uma das rodas da pequena carroça e envolto em peles extras, mas tinha a cabeça inclinada para trás e os olhos bem abertos e apreensivos, parecendo buscar nas estrelas que começavam a surgir no céu acima por algo que teimava em lhe fugir.

Ohel, agora sentado ao lado do diplomata, tinha uma aparência mais tranquila, com as mãos repousando juntas sobre as pernas cruzadas, o tronco ereto e os olhos fechados, mas, o que quer tentasse fazer, seu cenho franzido era testemunha de seu fracasso. Para Adharn, ele era o mais misterioso entre todos, apesar de sempre lhe dirigir uma palavra ou um gesto amigável quando seus olhos se cruzavam.

Bharin não lhe dirigira nenhuma palavra, assim como também não falara com ninguém mais desde que deixaram a casa de seu pai, e Adharn era grato por isto. O anão o amedrontava, mesmo calado, mantendo-se a parte de tudo e de todos. O único momento em que o via erguer os olhos era quando treinava com Midler, sempre para humilhá-lo e tornar a sentar-se, como se nada houvesse ocorrido. Não conseguia vê-lo agora em nenhum lugar, apenas seu grande machado que repousava entre uma pilha desordenado de peles e sacos, mas não era incomum o anão afastar-se do grupo sem dar quaisquer explicações, por vezes reaparecendo apenas ao amanhecer.

Quanto à pequena...

– A menina Brans não está aqui! – Adharn ergueu-se sobressaltado, mas os outros não o acompanharam. Como já havia se tornado habitual, seu alerta se mostrara atrasado.

– Acalme-se, meu amigo, ela está bem – apesar das dores que Uligan ainda sentia, sua voz já havia retomado a força e o carisma perdidos – Ela está onde gostaria de estar, onde acredita ser seu lugar.

Adharn não compreendeu o que o diplomata quis dizer com aquilo, mas voltou a sentar-se ao lado da fogueira, colocando o espigão sobre o fogo. Sentia-se um estranho em meio àquele estranho grupo. Ele havia sido criado longe das grandes cidades e nunca havia convivido com nobres ou grandes senhores. Havia aprendido com o pai a reconhecer os números e algumas letras, mas nada mais além disto. Seguia com o irmão durante o início da primavera e ao final do verão para a vila de Feirn, para trocar o pouco que colhiam aos pés das montanhas por ferramentas, utensílios e tecidos. Sabia lidar com os comerciantes e soldados da vila, mas não compreendia boa parte do que seus novos companheiros conversavam entre si, apesar de aparentemente falarem a mesma língua que ele. Apenas Brans parecia ser como ele, mas seu pai lhe dissera várias vezes para nunca se aproximar dela. Se a distância seria para a proteção da menina ou para a sua, Adharn também não compreendera.

O silêncio do bosque, tão familiar ao caçador, não estava lhe trazendo a tranquilidade de outras noites. Havia tensão no ar, um receio quase palpável do que estava por vir. Deveria ser assim que suas presas se sentiam quando ele estava próximo, imaginou, sem saber ao certo de onde este pensamento teria vindo. Apenas o chiado da gordura a derreter caindo sobre as chamas se fazia ouvir.

Todos se voltaram quando ouviram os passos que se aproximavam sobre as folhas caídas, vendo a solitária imagem de Bharin emergir por entre as árvores, murmurando uma estranha canção. Havia algo diferente nele. Parecia, de alguma forma, mais leve e menos endurecido. Parecia quase agradável.

– E Midler? – Ohel sabia que estas palavras o anão entenderia.

Bharin apenas deu de ombros e sorriu, continuando a cantarolar enquanto cruzava o acampamento para sentar-se entre suas coisas, próximo à pequena fogueira, passando a língua pelos lábios quando cheirou a carne a assar. Zartan acompanhou-o com um olhar inquisitivo que o outro anão pareceu não notar, mas que estava bem consciente dele.

Um pesado silêncio voltou a reinar, enquanto as chamas crepitavam e a gordura estalava. Mesmo quando decidiu sentar-se, Zartan parecia ainda mais impaciente, olhando a todo o momento para o já escuro bosque. Adharn retirou o espigão do fogo e cortou a carne em porções iguais, entregando-as a cada um com uma grossa fatia de pão, mas, a não ser por Bharin, todos a mastigaram sem vontade. O anão estalava cada dedo na boca, saboreando sua refeição com gosto, parecendo muito satisfeito, mas seria com o que comera ou com ele mesmo?

Zartan rolava um pedaço de osso com carne já fria entre as mãos, enquanto os três homens permaneciam calados, apenas aguardando. Todos estavam esperando, mas não sabiam ao certo o que aguardavam. Com uma forte expiração, o nobre anão arremessou com impaciência o osso contra o solo e estava para erguer-se, quando o suave som de folhas pisadas emergiu do bosque, trazendo uma pequena silhueta consigo de dentro das sombras. A menina surgiu por entre a folhagem, com um estranho sorriso curvando seus lábios. Pareceu assustar-se quando os viu, para em seguida baixar os olhos, como que sem coragem para fitá-los. Permaneceu calada por alguns segundos, ciente dos olhares inquisidores sobre ela.

– Ele está vindo – foi tudo que conseguiu dizer, em uma voz que quase não ouviram, enquanto ela sentava-se ao redor do fogo, mantendo os olhos baixos. Parecia haver um discreto rubor em sua face, mas talvez fosse apenas o calor do fogo.

Poucos tempo depois, passos decididos anunciaram a chegada do discípulo. Na penumbra que ainda resistia no limiar da claridade, ele fincou no solo a espada que trazia nas mãos e colocou um joelho no chão, abrindo os braços e inclinando a cabeça, em sinal de subordinação.

– Peço a todos que me perdoem, – a voz de Midler estava serena, sem raiva ou dor, como há muito não se ouvia – principalmente ao nobre Adharn, filho de Mesrian. Minha atitude não foi digna ou devida.

Uligan voltou-se para o caçador, que lhe devolveu um olhar confuso, sem saber como deveria proceder. O diplomata fez-lhe um sinal para que respondesse, mas a voz de Adharn tropeçava em palavras incertas.

– Meu senhor... eu não... quero dizer...

– Erga-se, discípulo! – o comando de Zartan foi firme, terminando com o desconfortável impasse. Estava satisfeito com aquelas humildes desculpas e não queria prolongar a submissão de Midler frente aos outros – Venha! Aqueça-se e se alimente.

O discípulo pegou respeitosamente sua espada e se aproximou. A pouca luz do fogo revelou que sua barba havia sido raspada, assim como os cabelos estavam ausentes, evidenciando a pele alva de sua cabeça que desaparecia nas sombras que as chamas formavam. A sujeira em seu corpo também havia sumido, levada pelas águas da pequena lagoa, e a face que viam era novamente a do jovem guerreiro que haviam conhecido na estrada para Thorion, mas estava ao mesmo tempo mais firme e serena.

Zartan cerrou levemente a fronte ao ver a marca de um duro golpe no rosto de Midler e seu rosto se virou na direção de Bharin, que parecia totalmente desinteressado com o que ocorria, mas o discípulo rapidamente interveio, antes que o nobre anão dissesse algo.

– Eu agi como uma criança caprichosa, mestre Zartan. Mereci ser tratado como tal. Foi-me recordado quem eu era e, mais importante, quem deveria ser – ficou olhando na direção de Bharin por alguns segundos, pensando o que deveria fazer, mas sabia que havia apenas uma resposta digna – Como se agradece formalmente na língua de seu povo?

Zartan baixou os olhos por um momento, hesitante, mas logo voltou a firmar-se.

– Ader nur kar ti, Narodak! – disse, tão discretamente quanto pôde.

O discípulo repetiu as palavras em um sussurro, até estar satisfeito com sua pronúncia. Passou então pelo nobre anão e se colocou à frente de Bharin, que, permanecendo sentado, apenas ergueu os olhos e sorriu. Não era mais o sorriso carregado de deboche e maldade que tantas vezes o discípulo vira e odiara, mas um sorriso franco e leve, que até então não acreditava que o anão seria capaz. Ergueu a espada e a trouxe a frente do rosto, saudando novamente o guerreiro à maneira dos homens de Sandren, como fizera na casa de Mesrian. Ao abaixar a arma, repetiu as palavras que Zartan lhe havia ensinado.

O sorriso de Bharin se desfez em surpresa e seu rosto se tornou mais sério, quase formal, quando ele acenou firmemente com a cabeça de forma positiva, sem nada dizer. Midler embainhou a espada e retornou até Zartan.

– Peço que perdoe também as palavras rudes que lhe disse antes, mestre Zartan.

– Sei que elas não eram verdadeiras, jovem Midler, e ofendeu apenas a si mesmo – sua voz mantinha o tom sóbrio, mas não carregava severidade – Deveria pedir desculpas por mentir, isto sim, mas não há o que perdoar, se você já se perdoou.

O discípulo olhou uma vez mais para Bharin, que parecia continuar alheio a todos, olhando agora para as estrelas que pontilhavam a escuridão sobre eles. Midler seguiu seu olhar para o céu noturno, vendo o Guardião brilhar entre fiapos de nuvens, banhando-o em sua luz. A lua ainda não havia nascido. Um curto suspiro lhe escapou. Sentia que havia novamente serenidade para ser encontrada na tranquila noite que se apresentava, como em sua infância na Marca.

– Mestre Zartan, se for de sua vontade, gostaria que me ensinasse a compreender as palavras de seu povo – o anão o olhou intrigado, sentindo-se desconfortável com o pedido do jovem. Os Dundhâner possuíam um zelo que outros considerariam exacerbado por suas obras, tradições e por sua língua, não falada por nenhuma outra raça – Acredito que Bharin ainda tenha algumas lições a me ensinar e gostaria que estas se tornassem menos dolorosas.

Após um momento de hesitação, um tênue sorriso se desenhou no rosto do anão, refletindo timidamente o que marcava o rosto do discípulo, mas sem abrandar seu receio. Um firme soco no braço de Midler marcou sua resposta.

– Venha! Divida o primeiro turno de vigília comigo e iremos conversar – voltando-se para os outros, falou-lhes em uma voz que não aceitava contestação – Ficaremos acordados para que descansem, então considerarei inimigos todos os olhos e ouvidos que encontrar despertos e os tratarei como tal – voltou-se para Brans, que havia se colocado furtivamente ao lado de Midler, escondida por sua sombra – Você também, menina.

Brans lançou um olhar suplicante para o discípulo, mas este lhe devolveu um simples meneio de cabeça, concordando com o anão. Zartan e Midler caminharam em silêncio para além de onde a claridade das chamas não mais alcançava e se voltaram para o pequeno acampamento, observado os preparativos de seus companheiros para a noite. Bharin simplesmente deitou-se onde estava, colocando o braço esquerdo sob a cabeça e o outro sobre o largo machado em frente ao corpo. Brans esperou que ele se aquietasse, para então deitar do lado oposto da fogueira, mas sem permitir que as chamas escondessem o anão de seus olhos. Adharn ajudou Ohel a dobrar as mantas sobre as quais Uligan deitaria, mas, pela primeira vez desde a Garganta, o diplomata também ajudou, parecendo estar quase recuperado de seus ferimentos, apesar de seu semblante ser testemunha da dor que ainda sentia.

Zartan aguardou que os corpos se aquietassem para a noite, observando as folhas escurecidas das árvores próximas agitarem-se lentamente. O terreno ao redor do acampamento erguia-se suavemente para o norte e o oeste, para onde as estradas dos homens deveriam estar, dificultando que a luz da pequena fogueira fosse avistada à distância. Isto era bom, decidiu. Girou lentamente a cabeça, buscando algum ruído que não fosse oriundo da mata que os cercava, mas nada chamou-lhe a atenção. A brisa era suave e fria, trazendo consigo um cheiro úmido de carvalho e terra. As estrelas acima começavam a esconder-se sob as primeiras nuvens que vinham lentamente do leste, tingindo de cinza o alvo descontentamento de Krinumsaz, que surgia no horizonte e tentava atravessá-las sem sucesso, escurecendo ainda mais a orla do bosque. “Ele sabe de nosso infortúnio. Encontraremos chuva à frente”, pensou, sentindo-se estranhamente pesado. Soltou o cinturão e abriu as grossas alças de couro nos flancos, retirando a pesada camisa de elos e colocando-a ao seu lado, na pedra em que haviam se sentado. Sentia-se quase desconfortável sem ela, mas lhe fazia bem retirar este peso dos ombros. Suspirou fortemente, desejando que pudesse livrar-se dos outros fardos que o atormentavam tão facilmente.

O anão tentava calar a inquietação que o assolava, mas não conseguia. Ao fechar os olhos, nítidas imagens lhe vinham à mente, lembranças de quando caminhou ao lado do pai, por entre as grandes colunas de Khedzaer. Zartarian recitara para ele os profundos entalhes gravados em cada uma, preenchidos cuidadosamente com um alvo metal que parecia intensificar a pulsante luz refletida das Pedras-de-Fogo que levaram. Aquelas colunas eram as páginas da Lhürr, a lei sagrada dos Dundhâner, escrita por Mananam há mais de oito mil invernos, para que seu povo jamais esquecesse quem era, para que jamais fraquejassem. Zartan as conhecia desde sua infância e podia recitá-las sem qualquer esforço.

Eu sou opilar de pedra nas profundezas. Eu sou o alicerce da montanha. Eu sou guardião de seus segredos. Minha palavra é rocha a que não pode ser quebrada. Minha casa está sobre meus ombros e a minha volta. Quando eu cair em desgraça, a montanha ruirá!”

Estas são as palavras que compõe a Nez Adarr, “Quem eu sou”, a primeira parte da Lhürr, que define quem o anão é, durante seu juramento e sua maioridade.

O vento assobiou um pouco mais forte, inflando a grossa camisa do anão e eriçando os pelos de seus braços com seu toque. Era uma sensação familiar e agradável, mas mesmo este pequeno alento lhe pareceu distante. O ar frio era um velho amigo de seu povo, guiando-os pelos túneis rochosos que chamavam de lar, passando através dos finos cortes dos portais e revelando em sua voz o nome de cada passagem, corredor e galeria no emaranhado que formava as cidades que nunca paravam de crescer. Ele atravessava os entalhes de sua casa, assim como os entalhes dos martelos e machados brandidos em batalha, cantando a única música que lhes era familiar, uma canção de estímulo, sangue e vitória.

O anão viu o discípulo cruzar os braços a frente do corpo, esfregando-os em silêncio. Com certeza Midler desejava estar mais próximo do calor da fogueira, mas Zartan não ousaria. Nascidos e criados nas profundezas de suas moradas, os anões estavam habituados com a escuridão, enxergando nela o que nenhum homem jamais conseguiria. A luz do fogo poderia esconder algum perigo de seus olhos e acreditava que haveria ouvidos atentos em volta das chamas, mesmo que aparentassem dormir profundamente. A fogueira estalou como se em resposta, chamando sua atenção. Viu quando um pequeno galho já enegrecido partiu-se sob o peso de outros, consumido pelas chamas, e uma fagulha saltou sobre as pedras que a cercavam, caindo na terra escura. O vento da montanha soprou-a, dando-lhe vida e intensificando sua luz, que brilhou por um momento como um diminuto sol em meio às trevas que a cercavam, trazendo um sorriso quase involuntário aos lábios do anão. Sabia agora o que deveria fazer.

– Há quase dois mil invernos, se as histórias que ouvi estiverem precisas, – a voz de Zartan era pouco mais que um sussurro, fazendo Midler ter de se voltar para ao anão para conseguir ouvi-lo – um nobre guerreiro tarizem, que é como nos referimos aos homens, esteve em Khedzaer, nossa maior montanha e saudou meus antepassados em nossa própria língua, provocando suspeita e receio com sua chegada. Ele solicitou uma audiência com nossos maiores comandantes, dizendo representar um grande poder que desejava colocar-se ao serviço dos Dundhâner, meu povo, para lhes trazer paz e justiça, entre eles e com todos os outros reinos. Era este mesmo poder que o permitia falar e nos compreender, como se aquele tarizem houvesse nascido em um ventre de pedra. O Senhor-da-Guerra à época, Murbül, o recebeu e ouviu o que ele tinha a dizer, mas, apesar de acreditar em suas palavras, recusou a oferta, enviando-lhe de volta aos seus com os agradecimentos de nossa casa. Ao longo de muitas estações, sempre que as neves eternas recuavam, outros vieram e partiram, sempre com a mesma oferta, sendo sempre recebidos por nossos comandantes e recebendo destes a mesma resposta. Eu mesmo já os vi algumas vezes, dentro e fora de nossa morada. Encontrávamos acostumados com suas visitas, mas já se passou muito tempo desde que o último fora visto dentro de nossas fronteiras.

Midler ouvia atento às palavras do anão, ponderando sobre elas.

– Acredito que estes homens eram Paladinos, não senhor Zartan?

– Sim, eles eram, mas apenas depois de deixar Khedzaer eu vim a conhecê-los por este nome. Meus irmãos os chamam de Meliwiren, os “Arautos do Sol”, pelos símbolos que portavam e por sempre antecederem nossos curtos verões, que podem demorar vários dos seus para se apresentarem.

– Mas se os Paladinos estavam levando aos Dudaner a...

Dundhâner! – o anão o interrompeu, em uma voz mais firme – Não permitirei que adultere algo que me é tão caro.

– Desculpe-me, senhor Zartan – assentiu o discípulo, humildemente – Pelo que me disse, os Paladinos tentaram, por diversas vezes,levar a proposta da aliança que Sandren mantém com todos os outros reinos aos Dundhâner, – falou pausadamente, observando a reação do anão, que pareceu satisfeito – mas seu povo nunca a acolheu.

– Honra e unidade já existem em nossas moradas desde os dias de Mananam, o primeiro, e não acreditamos que a paz possa ser dada ou imposta, apenas reconquistada quando ela lhe é negada. Por mais legítima que pudesse ser, a justiça que nos foi oferecida não era a nossa, pertencia a outros. Você aceitaria ser julgado por preceitos que não compartilha ou condenado por verdades que não professa?

– Não, creio que não – Midler respondeu devagar, hesitante. Não havia para ele dúvidas quanto à verdade ou às intenções das leis de Sandren, mas reconhecia também a sabedoria que permeava as palavras do anão – Mas por que está me contando isto, senhor Zartan?

– Apenas para acalmar meus próprios receios, eu acredito – Midler sentiu sua sobrancelha erguer-se, quando o anão se voltou para ele com um sorriso – Se é verdade que quando se tornar um Paladino será capaz de conversar com um Dhân em sua própria língua, talvez não seja um grande erro meu ensiná-lo algumas palavras antes disto, não acredita?

O anão sorria agora sem reservas, fazendo o discípulo esquecer-se também de seus receios e dos acusadores fantasmas que o assombraram. “Existem verdades que não estão em livro algum de Sandren e que nenhum Paladino do Círculo irá concordar enquanto o céu estiver sobre nossas cabeças”. Não tinha certeza se compreendia agora as palavras que Laertes lhe dissera em Caendlia, mas elas já não lhe causavam tanto temor ou desconfiança.

– Então, por onde deseja começar?

Midler entregou um pequeno objeto embrulhado em tecido cru para o anão.

– Bharin me entregou isto quando estávamos longe dos outros, repetindo insistentemente uma única palavra, “Drarlin”. O que ele queria dizer, senhor Zartan?

O anão desenrolou o pacote, a fronte cerrada indicando não compreender o significado daquilo. Quando a pequena placa se revelou, seus olhos se abriram surpresos e vagaram sem foco, os lábios curvando-se algumas vezes em efêmeros sorrisos, enquanto sua mente divagava em um turbilhão de pensamentos sem ordem ou coerência. Arrancou as luvas, os dedos correndo ávidos pela pequena gravura, frustrando-se ao não encontrar o que buscava. Toda parte de trás da pedra parecia ter sido raspada com força, terminando por deixar os pequenos entalhes que a marcavam ilegíveis.

Zartan expirou longamente, deixando-se curvar à medida que o ar lhe saía, observando a pequena peça deitada sobre as palmas das mãos. Midler queria perguntar-lhe em que pensava, mas aguardou calado pelo anão, que se alongou demasiadamente em silêncio.

– Drarlin – disse finalmente, em uma profunda voz – Está não é uma palavra mundana ou fácil de se traduzir em qualquer língua – Zartan olhava em frente, mas não parecia focar em nada, como se falasse com alguém que não estava ali – Ela é dita aos jovens guerreiros por seus pais e comandantes, quando estes os julgam dignos e prontos para empunharem suas próprias armas, e para os que estão caídos em batalha, para que se recordem de seu juramento, ergam-se e continuem a combater. É um chamado à responsabilidade maior de um Dhân, para que lute e defenda aquilo que lhe é mais precioso, ao preço da própria vida, se necessário – o anão fez uma pausa, olhando novamente para a pequena peça em suas mãos. Quando ergueu os olhos para o discípulo, este percebeu neles um leve tremular – Erga-se! Renasça! Acredite! É o mais próximo que a língua dos tarizem pode chegar de seu significado, mas é muito mais vasto que isso.

Midler olhava na direção de Bharin, vendo-o remexer-se ruidosamente em seu sono, incerto se o anão que sempre se mostrara tão selvagem teria consciência de toda a extensão que seu ato poderia ter.

– Não tome por pouca medida o que Bharin fez, Midler – Zartan podia ler no ferido rosto incrédulo do discípulo o que este pensava, pois igual desconfiança também ecoava em seu interior – Apesar de bem conhecer seu lado mais visível, você ainda não o conhece. Talvez nem mesmo eu o conheça totalmente, agora vejo – permaneceu calado por um momento, observando seu irmão em armas – O agradecimento que lhe fez não poderia estar mais adequado, assim como eu também já o fiz, por mais vezes do que ouso contar, mas com menos formalidade. Ader nur kar ti, Narodak! “Minha vida lhe pertence, nobre senhor!”

O silêncio voltou a imperar entre os dois guerreiros, enquanto mantinham seus olhos voltados para o pequeno acampamento. Bharin estava realmente diferente, em mais aspectos do que poderia ser encontrado apenas pelo que se via. Midler se recordava de quando esta mudança se iniciara, ainda na casa de Mesrian.

– O que lhe disse, quando retornou das cavernas sob a Garganta, senhor Zartan?

O anão voltou os pesarosos olhos uma vez mais para o a pequena placa em suas mãos, antes de responder em uma pesada voz.

– Algumas palavras que já deveria ter-lhe dito há muitos anos e outras que não deveriam ter sido jamais pronunciadas...

Um pesado suspiro marcou o fim da fala do anão, deixando claro o que sentia ao lembrar-se do que dissera.

– E o que isto representa? – apontou para a pequena placa nas mãos de Zartan, tentando desviar os pensamentos do anão de sua penitência.

– Este é um presente para o guerreiro que prova estar pronto, quando ele recebe seu nome e o de sua família. Representa sua maioridade e lhe mostra que a força que estava naqueles que vieram antes dele está agora nele também – Zartan examinou mais uma vez a placa com as pontas dos dedos, mas a vaga esperança que nutria se mostrou frágil demais – Apesar de acreditar, ainda mais do que antes, que Bharin é mais merecedor desta honraria do que muitos dos irmãos que conheço, não consigo discernir como a conseguiu. O nome da família à qual ela pertence foi removido.

– Dada por seu pai, talvez?

– Não – sua voz soou profundamente triste, um lamento sem qualquer esperança de justiça – O grande Bheran jamais faria isto... – enrolou-a novamente com cuidado, entregando-a ao discípulo – Guarde-a com muito cuidado, jovem guerreiro. Que seja este o marco de seu Drarlin.

Midler assim o fez e um pesado silêncio incômodo voltou a pesar entre os dois, deixando claro para o discípulo que o anão não desejava mais falar sobre aquele assunto, sobre um passado que acreditava agora ser ainda mais injustiçado. O vento voltou a soprar, fazendo as chamas dançarem ao seu comando. Os dois guerreiros assim permaneceram por um longo tempo, olhando em direções opostas. Midler viu as nuvens se adensarem, cobrindo uma lua que, apesar de faltarem poucos dias para que se apresentasse em sua plenitude, não conseguia mais atravessá-las. O Guardião também não podia mais ser avistado no oculto céu noturno e as sombras terminaram por engolir tudo que existia sobre as terras de Thimeran, parecendo tornar a pequena fogueira ainda menor.

– Há outra coisa que Bharin me disse, senhor Zartan - uma tênue névoa acompanhava as palavras do discípulo – Ele fez questão que eu ouvisse, mas havia muita raiva em sua voz. Não me recordo claramente das palavras, apenas da última, Rogaroth.

Rogaroth? – ergueu os olhos inquisidores, vendo o discípulo concordar com convicção.

Quase involuntariamente, Zartan bateu com a bota contra o chão, torcendo-a como se esmagasse um inseto. Voltou a olhar para baixo, sentindo nos ossos o frio que aquela palavra lhe trazia. Entre seu povo ela era quase proibida, a maior ofensa à honra que poderia existir para um Dhân. O nome de Rhogar, o sem-honra, fora mencionado pela última vez nos anos que se seguiram à derrota em Vrun, a única cicatriz em toda a história registrada nas Colunas do Tempo, mas sua memória era mantida viva entre seus comandantes, como uma lembrança maldita, para que jamais se esquecessem do que poderia acontecer se fossem novamente afastados da Lhürr.

– Bharin foi muito injusto, Midler, é tudo que deve saber – Zartan falava devagar, tomando cuidado com as palavras que escolhia. Sentia muita raiva, mas não apenas de Bharin, pois, se ele sabia sobre Roghar, algum outro Dhân o havia chamado assim – Não deve jamais repetir o que ele lhe disse! A ninguém!

O discípulo ficou calado, percebendo no tom do anão a gravidade do que ele dizia. Havia afinal, mesmo entre os nobres anões, histórias que não deveriam nunca vir à luz. Histórias que os enchiam de fúria e vergonha. Não pôde deixar de imaginar se assim também não seria com Sandren e os Paladinos, alguma verdade escondida entre as sombras que Laertes lhe alertara. E assim um incômodo silêncio voltou a reinar entre os dois guerreiros, até que Zartan levantou-se da pedra e retesou o corpo.

– O fogo está a apagar. É chegada a hora de que nos substituam em vigília – as estrelas acima há muito já haviam desaparecido por trás de um véu cinzento – Acredito que teremos chuva pela manhã e as peles ficarão ainda mais pesadas para aqueles que não descansarem.

Midler olhou com atenção para as sombras que cercavam o pequeno acampamento enquanto Zartan despertava Adharn, mas não havia nada para ver ou escutar. Indagava-se o quanto elas já poderiam também ter ocultado dos olhos e dos ouvidos dos que aqui passaram, como eles. Prontamente imaginou esconderijos de ladrões e emboscadas de assassinos, mas as imagens de uma frágil presa escondendo-se de seu caçador, de antigos segredos guardados para proteger a inocência de outros e de amantes em fuga, tentando viver um amor proibido, também lhe vieram à mente. Sombras que escondem e ocultam, mas que também guardam e protegem.

O discípulo aprendera nos livros de seu pai que as sombras representavam a completa ausência da luz, uma vã tentativa de ocultar o que não se queria descoberto em um tênue abrigo que não perdurava na presença da menor claridade. Midler não tinha dúvidas quanto às doutrinas de Sandren, mas se questionava agora se seriam todas as sombras ruins, se carregariam sempre alguma maldade em sua essência. A escuridão sob a Garganta do Gigante os abrigara do frio e guardara os segredos dos anões dos olhos de todos, assim como as sombras de Thorion também os protegera. Seria então o único caminho correto terem perecido sob o fio da espada ou sob o gélido toque da montanha? Seria este o caminho de Sandren?

Midler suspirou, balançando a cabeça para afastar estes pensamentos. Não iria encontrar facilmente estas respostas, ele sabia. “Por mais sinceros que sejamos, sempre haverá duras verdades que não desejaremos ver, por inocência, fé ou arrogância. Talvez por temer a desilusão e a dor que elas trazem consigo, talvez porque elas nos tornem mais fracos e mundanos do que desejamos.” As palavras de Laertes tomavam agora um sentido de que seu último discípulo nunca se apercebera.

Desatou o cinto da espada, colocando-a próxima às peles que Brans arrumara para ele, ao lado dela. A menina dormia serena, sorrindo levemente em seus sonhos. Midler também sorriu, mas era da ironia que lhe vinha à mente. A pequena ladra estava em paz com sua consciência e o seguiria por qualquer estrada que ele tomasse, enquanto o discípulo de Sandren, de quem se esperaria uma firme liderança, encontrava tantas dúvidas dentro de si e não sabia o caminho a seguir.

Deitou-se com cuidado para não acordá-la e ficou a contemplar o escuro céu acima, sentindo-se vazio. As palavras que dissera a Adharn antes de seu rompante lhe voltaram à mente e tentou se recordar de quando havia sido a última vez que orara a Baltur, pedindo para encontrar a sabedoria e coragem que precisaria na estrada à frente. Teria sido em Latani, antes de partir ao lado de Laertes? Ou ainda mais distante, nas forjas de mestre Tallamir?

Midler ouviu-se sussurrando as palavras antes de conseguir encontrar a resposta. Não era a culpa ou a absolvição que buscava, mas a força para seguir adiante. Sabia que aquele não era mais o momento de procurar respostas para as perguntas que haviam ficado para trás. “O ontem carregará a culpa se no hoje houver o propósito de corrigi-lo”. Seu pai dissera estas palavras a um jovem cavalariço da Marca que fora trazido a sua presença por ter deixado o cavalo de seu senhor fugir dos estábulos, quando Midler ainda era um menino, mas nunca as compreendera totalmente até agora. As nuvens acima seguiam lentamente para o oeste, cobrindo em sombras o caminho que o trouxera até ali. Se havia nelas um sinal, o discípulo não sabia dizer. Apenas continuou a acompanhá-las, pois os homens de Sandren nunca oravam com os olhos fechados, para que suas palavras não nascessem cercadas pela escuridão.

– Baltur, aqui estou e rogo por tua força. A escuridão mais densa não pode diminuir tua luz – o juramento da Torre de Marfim, o mesmo que um dia deverá fazer em Sandren, lhe era tão familiar quanto seu próprio nome, mas não ousava seguir adiante, enunciando quem um Paladino era perante Baltur e afirmando seu compromisso para com ele. Um discípulo não poderia fazê-lo, a não ser no dia de sua consagração. Um dia que ainda lhe parecia muito distante, mas que ousava novamente acreditar que o veria – O passado está feito, o amanhã é que precisa de cuidados – a frase lhe veio sem pensar, mas calou fundo dentro dele. Não se recordava se alguma vez a ouvira ou se a havia lido nos livros da Marca – Drarlin – a última palavra lhe saiu dos lábios em um longo suspiro, levando muitos de seus receios consigo.

Agradeceu a Baltur, ao pai e a Laertes, por ainda estarem com ele, por ainda lhe falarem à alma quando estava em paz para ouvi-los. Quando se virou para dormir, viu que Zartan, enrolado apenas em um fino manto para não deixar de sentir a dura pedra sob ele, também contemplava o céu acima, os olhos irrequietos buscando em suas sombras por algo que insistia em lhe fugir. Os atos e palavras de Bharin também o haviam tocado, mais do que o anão deixaria que o discípulo percebesse.

– Senhor Zartan? – o anão girou a cabeça na direção de Midler, sem nada dizer. Seu olhar parecia carregar tristeza e cansaço – O que significa “tarizem”?

Um tímido sorriso se formou no rosto do anão e seus olhos se avivaram por um momento.

– Pernas compridas – virou-se para o lado, conseguindo finalmente dormir.


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