O Caminho de Sandren - Livro 2 (Descaminho) escrita por Aviatorman


Capítulo 5
Interlúdio


Notas iniciais do capítulo

Um interlúdio. Uma pausa entre atos, aproveitando a parada que as personagens principais tiveram de fazer na casa de Mesrian para apresentar outros fatos que irão interferir na jornada de Midler e daqueles que o acompanham.

Peço desculpas pela demora. Foi um mês conturbado. Entre outros projetos, foi colocado um epílogo no livro um (Caminhada). Agradeço a compreensão de todos e peço desculpas novamente.



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Interlúdio

Os passos ecoavam alto nas paredes de claro mármore, desaparecendo na imensidão da grande casa. Há muito que o sol se fora e a noite se fazia tão escura por trás dos vitrais sem cor quanto a lua sem brilho no céu. O suave arrastar das sandálias do acólito que seguia ao seu lado quase não perturbava o silêncio dos corredores da catedral, assim como a estranha lanterna de vidros enegrecidos que ele carregava pouco fazia para iluminar o caminho à frente. “Para não perturbar sem necessidade as sombras, meu senhor”, fora toda a resposta que recebera. Para ele este era apenas mais um dos muitos mistérios que os seguidores do deus do equilíbrio mantinham em sua fé.

Sua convocação também havia sido um mistério. Quando o mensageiro chegou, escoltado pelos Feldaen e trajando as vestes claras da igreja e não o brasão do dragão de Nyothar, ele soubera que algo estava errado. O selo do patriarca e a assinatura do Grão-Diplomata lhe mostraram que este não era apenas um assunto da igreja de Urm, mas também uma questão de estado, apesar de estar claro que o rei não tomara conhecimento dela. Não havia pretexto para não atender ao chamado oficial, mas as motivações ausentes na carta o deixavam apreensivo, assim como também estavam ausentes nos corações daqueles que a portavam. Eles haviam sido bem escolhidos, ele notara. Quem os enviara sabia que seriam vistos através da Luz e que nenhuma mentira poderia permanecer oculta. Os mensageiros eram completamente ignorantes quanto ao conteúdo da carta ou às intenções de seu remetente, seguindo ao seu lado em um dedicado voto de silêncio pelos dois dias em que cavalgaram com poucas paradas.

Os soldados nyotharin designados para guardar os portões da Cidade Alta deveriam estranhar a aproximação de homens armados quando a noite já se fazia tão avançada, mas estranhamente não tentaram deter seu avanço. Ao passar pelas primeiras guaritas, viu três altos sacerdotes cinzentos em meio à guarda, parecendo orientá-los. Percebeu que não havia homens da igreja disfarçados entre os soldados, mas, mesmo assim, estes obedeciam sem questionar aos comandados que lhes eram dados. Havia mais do que era possível se ver a influenciá-los, ele sabia, havia algum poder a nublar suas mentes, olhos e ouvidos. Tinha a certeza que os homens que estavam agora em serviço não se lembrariam dele ou da escolta dos Feldaen quando a manhã chegasse. Quanto aos que os influenciavam, estava claro que lhes haviam sido dadas ordens incomuns para serem cumpridas, mas nenhuma palavra a mais fora dita. Não havia respostas para serem encontradas ali, ao menos não por ele e pela Luz, e isto aumentava suas suspeitas. Não sentia mais o frescor do ar noturno, agora carregado de segredos, suspeitas e de algo mais que lhe lembrava a traição, mas que tinha receio de descobrir.

Após os portões, um silencioso grupo de pajens em discretas roupas neutras aguardara os cavalos e os conduzira rapidamente para os estábulos assim que seus cavaleiros desmontaram. Ele fora então encaminhado a pé pelos Feldaen para a catedral, sem conversas ou hesitações, onde o acólito que agora seguia com ele os esperara. Pequenas flâmulas negras pendiam sobre as janelas mais baixas, cobrindo-as para mostrar aos visitantes que a igreja encontrava-se escurecida em luto. Alguém importante para a fé de Urm havia morrido, mas não havia sido seu patriarca. Os grandes vitrais não haviam sido cobertos.

Os Feldaen se despediram sem emitir qualquer som e desapareceram nas sombras. Suas ordens os levaram somente até ali, mas ele percebeu que alguns o seguiam, ocultos pela escuridão para além do curto alcance da lanterna. E havia mais, muitos mais. A Luz lhe mostrava fiéis soldados atrás de cada uma das muitas portas do corredor em que se encontrava e em uma grande área ao final do mesmo, onde inúmeras espadas se escondiam nas sombras.

Lembrou-se de quando fora designado para servir em Graeldar, há mais de vinte anos, pois Sandren passou a enviar um Paladino para proteger estas terras desde sua ruína frente aos Walcarin, e de como procurara aprender tudo que pôde sobre sua história. Lera uma passagem nos livros da biblioteca de Caendlia que narrava a morte do primeiro rei, Belenur, da ascensão do primeiro Jaendor e do trágico levante dos Destemerosos quando de sua coroação. Éradhen, o Paladino destas terras à época, estivera presente à cerimônia e, em seu relato a Torre de Marfim, dissera que a justiça fora feita contra a insurreição e que nenhum sangue inocente fora derramado.

Ele sempre nutrira dúvidas sobre esta passagem e sobre o relato de Éradhen, a quem a memória de Sandren citava como um Paladino austero e inflexível, não por questionar o que fora justo, mas pelo que não acreditava ter sido correto. A reivindicação de Jaendor ao trono fora legítima, apesar de questionável sobre certo ponto de vista, mas Valacar tornara tudo mais difícil para os graeldaras, praticamente entregando o reino aos nyotharins ao invés de clamar pela justiça de Baltur. Sua fronte se fechou ao perguntar-se se não estaria repetindo os últimos passos do rebelde comandante derrotado, caminhando para um julgamento já concluído. Apesar de perigosa, a comparação devia soar como algo parecido com justiça para os graeldaras que ainda guardavam memórias destes acontecimentos. Pensou em indagar o jovem acólito ao seu lado, mas logo percebeu que ele não teria as respostas que buscava.

Nunca encontrou nenhuma palavra de censura ou de indevida reserva na biblioteca de Caendlia sobre Sandren e sua aparente omissão na coroação, mas aqueles não foram os livros escritos pelos graeldaras e sim pelos representantes do império. Mesmo a História dos Campos Sempre Verdes fazia apenas uma pequena referência sem julgamentos, mas ele sabia que havia outro livro, um livro secreto que apenas a poucos escolhidos era dado o direito de ler, guardado por poderes que o ocultavam até mesmo da Luz, mas não precisava que ela lhe mostrasse como estes mesmos escolhidos ainda se sentiam em relação à Sandren. Podia percebê-lo por trás das amistosas palavras cuidadosamente escolhidas de cada um deles, mas não eram todos que agiam como dissimulados acusadores em sua presença. Apesar de sempre deparar-se com a mesma reserva em seus encontros com o Grão-Diplomata, não percebia nele os mesmos sentimentos que a suposta traição trazia.

Ele e Calligan sempre se respeitaram para além das formalidades e cortesias de seus cargos. Apesar de o Paladino ser simpatizante à causa graeldara e a sua condição, ambos sempre se abstiveram de discutir estes assuntos. O Grão-Diplomata nunca requisitara que ele aplicasse a justiça de Baltur sobre os assuntos de Graeldar, mesmo quando esta lhe parecera favorável, aceitando se submeter aos desígnios do império e do rei. Imaginava se Calligan acreditava que, mesmo após tantos anos, ainda existiam feridas mal cicatrizadas que deveriam ser deixadas em paz. Apesar da confiança que o patriarca parecia ter no julgamento do Paladino, este sabia que não era apenas ele quem norteava os caminhos de seu povo.

Teve de reduzir as decididas passadas para não deixar o acólito e a pouca luz que carregava para trás. Quase achou graça ao tentar imaginar o que deveria estar escrito em algum empoeirado livro sobre os misteriosos dogmas de Urm. “Nem rápido demais, nem vagaroso em demasia”, provavelmente.

Ele suspeitava da existência de um conselho velado, os chamados Nove Mestres pelo que soubera, do qual Calligan tomava parte e se submetia, cujos interesses e atos eram mantidos sempre distantes da corte ou de qualquer luz. Seu saudoso mentor lhe ensinara a sempre desconfiar da cordialidade de homens dissimulados e, acima de todos, dos diplomatas de Caendlia. Uma vez mais agradeceu por seus ensinamentos. A passagem dos anos apenas os deixava cada vez mais sábios e verdadeiros.

Uma porta se abriu ao final do corredor, mostrando o vasto interior da câmara central da catedral, sua clara beleza oculta nas muitas sombras que as poucas velas acesas, pendendo de finas correntes de um oculto teto muito acima, não conseguiam afastar. “A noite deve ser escura, como o dia foi feito para ser claro”, eram as palavras que os fiéis de Urm entoavam em suas preces noturnas.

– Por aqui, meu senhor – o acólito lhe indicou a porta aberta com um sorriso, deixando claro que não seguiria com ele.

Entrou devagar, com a cabeça levemente inclinada, não por temor, mas por respeito à fé que permeava aquele local. A crença em uma dúbia divindade poderia até ser considerada equivocada em muitos de seus preceitos pelas leis de Sandren, mas havia muitos homens nestas e em ouras terras que a compartilhavam, mesmo nas que foram dadas a ele, e respeitava esta fé, assim como qualquer outra. Acreditava que os homens precisavam acreditar em algo que estaria acima deles, para aspirarem e lhes inspirar, para terem um exemplo a seguir. Para ele nunca havia maldade para ser encontrada na fé, apenas naqueles que a corrompiam em nome de seus interesses. Assim era com todos os desuse, mesmo com o ambíguo deus do equilíbrio, que também era o virtuoso deus da natureza, assim como o sábio mediador, dependendo de como seus mistérios eram apresentados.

A porta se fechou silenciosamente atrás dele, sem nenhum som de chave, correntes ou trancas para ser ouvido, mas sabia que não conseguiria abri-la novamente. Não fosse a tensão quase palpável no ar da catedral, sentir-se-ia culpado por carregar uma arma, mesmo que abençoada, em um lugar sagrado, mas podia ver que não era o único. Havia uma centena de outras lâminas ocultas nas sombras.

– Aproxime-se, Télan Summerion, Senhor da Marca da Vitória e Paladino de Baltur – a voz era firme e respeitosa, ecoando nas paredes escondidas da catedral, mas ele percebeu que aquelas palavras não eram um pedido ou um convite.

Dez metros a frente da porta lateral por onde entrara, Télan viu quatro homens sentados atrás de uma comprida mesa de armar, logo abaixo do grande altar central, em forma de uma alta balança de pedra e metal com detalhes em ouro branco e negro em toda sua extensão. Seu braço não era visível, oculto em meio a escuridão que reinava sob o teto da catedral. Uma grande vela sustentava uma chama branca em um dos pratos enquanto o outro continha um prisma de vidro, negro como ébano, que parecia absorver toda luz que dele se aproximava.

Da base do altar partiam dois caminhos opostos, decorados com mosaicos de pedras claras e escuras. Um se dirigia para a direita do Paladino, na direção em que o sol nasceria dentro de poucas horas, tornando-se cada vez mais claro até desaparecer de seus olhos. O outro seguia para o oeste e escurecia até se fundir às sombras da noite. As grandes portas da catedral estariam ao fim de cada um destes caminhos, sendo aberta apenas uma de cada vez, a do leste no início do dia e a do poente ao cair da noite. Sob o altar não havia branco ou preto, tudo era cinzento, assim como o manto daqueles homens, cujas mangas terminavam em um tom mais claro sobre o pulso direito e mais escuro sobre o esquerdo.

Télan já vira quase todos nas muitas vezes em que esteve em Caendlia. Reconheceu dois altos sacerdotes de Urm e um regente dos feudos, mas acreditava que eles também deveriam ser membros dos Nove Mestres, pela sua autoridade e pela quantidade de Feldaen que permaneciam escondidos logo após o alcance das luzes. Deveriam ser mais de duas centenas, provavelmente todos os que serviam em Caendlia, o Paladino estimou, enquanto caminhava na direção dos homens cinzentos. Os dois sacerdotes eram o velho Inyllan, escondendo seu rosto sempre cortês e sorridente atrás de uma máscara de neutralidade, e o ainda mais velho Nolrart, o Condutor da Igreja de Urm em Caendlia. O regente se chamava Udhir, senhor da Casa Laind e do porto de Marahin, e de quem partiam os olhares mais incisivos e acusadores. O terceiro homem lhe era desconhecido.

Um pequeno pingente sobre o manto o diferenciava dos demais. Um semicírculo de prata polida preso em uma fina corrente de elos claros e escuros intercalados. Ele era alto, magro e completamente calvo, com finas veias azuis a lhe marcarem a cabeça. Télan não conseguia determinar facilmente sua idade. O rosto não estava ainda marcado pela passagem do tempo, mas os claros olhos eram penetrantes e carregados da sabedoria de muitos anos. Havia medo, desconfiança e raiva emanando dos outros três, mas não conseguia ler o que este sentia diante de um Paladino, como se sua presença ali lhe fosse totalmente indiferente. Ele era uma sombra que se mantinha impenetrável mesmo diante da Luz, deixando Télan ainda mais intrigado, com a certeza que não saberia dizer se estaria mentindo quando falasse. Sentiu a falta de Calligan entre eles, mas não queria acreditar que sua ausência fosse fruto de covardia. Não era esta a imagem que tinha do patriarca, mas poderia estar errado?

– Qual a acusação? – Télan parou a um metro da mesa, mantendo as mãos unidas em frente ao corpo, em sinal de paz. Percebeu que Udhir esforçava-se para conter a raiva, mas não era dele que emanava o maior ódio dirigido ao Paladino, mas de outra sombra escondida atrás do altar. Não a conhecia, então por que ela o odiava tanto?

Um longo momento de silêncio se arrastou na pesada atmosfera da catedral, até que a suave voz de Nolrart quase não a perturbou, como se falasse de algo insignificante, de uma pequena trivialidade.

– Traição e assassinato, meu bom Paladino.

– E qual seu fundamento, nobre Condutor? – o quarto homem continuava envolto em sombras, enquanto a Luz lhe mostrava que os outros três acreditavam nesta acusação. Isto bastava para que ele tivesse a certeza que não haveria outra saída da catedral que não tingisse de sangue o mármore em que pisava.

Com um movimento da mão de Nolrart, um Feldaen saiu das sombras e se aproximou, trazendo uma comprida caixa que depositou sobre a mesa e se retirou. O Condutor fez então um gesto para que o Paladino se aproximasse e a abrisse. Assim que colocou a mão sobre a caixa, Télan soube o que ela continha, para seu espanto e temor. Deteve-se por um momento, desejando não continuar, mas estava consciente de que teria de fazê-lo. Ao abri-la, viu uma espada longa que repousava em um berço de tecido cinzento. Fechou lentamente os dedos em volta de seu cabo, sentindo o calor que dela emanava, e a retirou da caixa, empunhando-a. Uma sutil sinfonia composta por luvas de couro que apertavam firmemente dezenas de cabos de espadas e lanças, arcos sendo retesados e sussurros orando por bênçãos de proteção se fez ouvir nas sombras. Udhir e Inyllan recuaram levemente em suas cadeiras e Nolrart disfarçou habilmente seu medo, mas apenas até onde os olhos dos homens comuns podiam alcançar. O terceiro sacerdote não se alterou, nem mesmo em seu sombrio interior.

Télan quase não percebeu o que ocorria a sua volta, examinando com crescente perturbação a espada que pulsava lentamente em sua mão. Ele a conhecera muitos anos atrás, quando era chamada de Alvorecer. Era uma lâmina de Sandren, forjada com o brasão da família do Paladino que a empunhara. Télan conhecera Khaedras quando retornara à Torre de Marfim para avaliar alguns discípulos a pedido de Lorde Mellanos e treinara ao seu lado, ensinando ao recém consagrado como coordenar ataques com um aliado e como se defender quando atacado por muitos. Khaedras demonstrara um grande potencial e Télan dera seu aval para que ele fosse autorizado a seguir com os Paladinos mais experientes nas patrulhas, no que ele saiu-se melhor do que poderia ter sido esperado, recebendo elogios até mesmo do rigoroso Jaard Ugun. Khaedras tornara-se em pouco tempo um instrutor como Télan e alguns Paleires acreditavam que ele estava pronto para ser submetido ao Teste do Círculo, mas, sem qualquer aviso, a chama de sua vida esmorecera em Sandren, mas não se extinguira por completo, algo nunca antes visto.

Nenhum dos Paladinos reunidos em Sandren soube explicar o que acontecera e nenhuma resposta fora encontrada nos escritos da Pedra Fundamental. A Luz estava cega pela primeira vez para o destino de um de seus escolhidos. Télan o buscara ao longo de dois meses, mas seu rastro havia desaparecido junto com ele. Recusava-se desde então a avaliar ou treinar outro discípulo ou Paladino e nunca mais soubera de nada que o lembrasse de Khaedras, a não ser sua culpa. Mas, para o crescente receio de Sandren, ele não fora o único, apenas o primeiro dos que desaparecerem ao longo dos cinco últimos anos, sem que suas mortes pudessem ser confirmadas ou seu paradeiro encontrado pela Torre da Vigília. Um segredo e uma vergonha haviam se instalado no coração de Sandren. Os Paladinos estavam sendo caçados e derrotados, mas não era a morte que os encontrava. Temiam secretamente por um destino muito pior.

– Onde a encontraram? – Télan inclinou o corpo a frente, apoiando as duas mãos na mesa de armar, aproximando seu rosto do de Nolrart. A raiva permeava sutilmente as palavras do Paladino, mas não era ainda direcionada aos homens cinzentos.

– Reconhece então esta espada, Senhor? – o Condutor tentava manter o medo longe de sua voz, mas não tinha mais certeza se conseguia fazê-lo.

– Eu perguntei onde a encontraram! – a voz de Télan se ergueu, ecoando pela catedral, Sua paciência para protocolos e formalidades havia se esgotado, assim como para com os jogos dos diplomatas – Onde?

No pesado silêncio que se fez, vultos aproximaram-se, saídos das sombras. Vários Feldaen, armados com espadas e lanças curtas, cercaram o Paladino com o suor marcando suas faces, apesar do frio ar da noite carregado de sussurradas orações. Os incensos e as águas aromáticas já não conseguiam disfarçar o acre odor do medo que permeava a catedral.

– Não a encontramos, Filho se Sandren – uma serena voz ecoou entre eles, marcada por uma estranha pronúncia que até mesmo os experientes diplomatas de Caendlia teriam dificuldade para identificar. O terceiro sacerdote se ergueu e as sombras a sua volta pareceram se adensar – Ela nos encontrou, trazendo morte e desgraça consigo.

“Filho de Sandren”. Esta expressão deveria soar como um elogio a qualquer discípulo, Paladino ou mentor, mas o deixava perturbado vindo daquele homem sombrio. Não era comum ouvi-la longe da Torre de Marfim ou dita por aqueles que não compartilhavam a doutrina de Baltur. A absoluta neutralidade na voz do sacerdote e a aparente cegueira da Luz não permitiram que ele percebesse o escárnio que acompanhava aquelas palavras. Colocou a longa espada sobre a mesa e recuou, unindo as mãos novamente em frente ao corpo. Não queria sentir-se tentado a usá-la novamente, não quando uma saída sem derramamento de sangue ainda poderia ser encontrada, mas suspeitou que esta não seria a última vez que o faria na longa noite que antevia.

– Chame o rapaz, Condutor – o sacerdote voltou a se sentar.

– Téhran, aproxime-se – Nolrart estava imbuído da maior autoridade junto à igreja após seu patriarca, mas obedeceu prontamente como se não passasse de um jovem acólito, permitindo que o estranho sacerdote comandasse o já sentenciado julgamento.

Após seu comando um Feldaen aproximou-se por detrás da mesa, circundou-a e se colocou ao lado do Paladino. Télan estranhou por um momento a falta de formalidade do Condutor ao se referir de forma tão simples ao soldado na frente de um estranho. Os guerreiros de Meodarûn eram sempre tratados por Lehr antes de seu nome, principalmente em situações formais como esta. O termo significava “irmão” em uma antiga língua que remetia a um tempo ainda anterior a Graeldar, o Destemido, e era o único título ao qual os Feldaen aspiravam, mas o Paladino viu que a bainha deste estava vazia, a espada de Meodarûn lhe havia sido tirada. Não era mais digno de carregá-la aos olhos deles, não era mais um Feldaen. O guerreiro fez uma sutil reverência e retirou o elmo, revelando seu jovem rosto. Télan não o conhecia, mas seus belos traços o denunciavam como sendo um Laind. A Luz o revelou como um homem honrado, fiel e sincero, uma escolha perfeita para acusá-lo. Podia ver que ele estivera gravemente ferido, pela dor que ainda sentia, apesar de não demonstrá-la e das bênçãos dos clérigos terem tratado de suas feridas.

– Conte-nos o que viu e viveu, Téhran – o trêmulo timbre na voz de Nolrart era quase imperceptível.

– Primeiro exijo saber quem é este sacerdote – Télan apontou firmemente na direção do homem calvo. Sabia que era ele o adversário naquele julgamento e quem escondia o real motivo para o Paladino estar ali – Não serei acusado por uma voz sem nome!

Os claros olhos se voltaram para Télan, que julgou ver neles um lampejo de raiva por ter sido desafiado, para logo se cobrirem novamente de uma inquietante neutralidade mordaz.

– Não sou eu quem o acusa, Senhor, mas a verdade, e não é você o réu, apenas a representa. Sandren tem assuntos a esclarecer para com esta terra e para com seus filhos – a voz se mantinha distante, isenta de emoções, enquanto os longos dedos tamborilavam suavemente sobre a mesa – mas, quanto a sua solicitação, é meu o prazer em atendê-la. Eu sou Fenhlirs, humilde servo de Ahlirs, a senhora do céu noturno, amiga e admiradora de Urm, e hoje ela volta sua face escura sobre o inocente sangue derramado pelas lâminas que juraram protegê-lo.

Um dos Filhos da Lua, mais inconstantes e dúbios do que os próprios seguidores de Urm. Télan estava certo, não sabia dizer se Fenhlirs estava mentindo nem se este era realmente seu nome. A lua era considerada uma divindade por vários homens, assim como o sol e as estrelas, recebendo diferentes nomes nas terras conhecidas, mas não se recordava de haver ouvido o nome de Ahlirs antes. Mas havia outro mistério, maior e mais premente. Por que os exaltados clérigos de Urm se curvavam diante deste estranho? E por que permitiam que usasse suas vestes mais sagradas? Era algo mais do que respeito o que eles sentiam, Télan podia ver. Havia uma grande parcela de admiração, mas também havia medo. O Paladino sentiu ainda mais a falta de Calligan naquele momento. Onde ele estava, pelas profundezas sem fim do Abismo? Télan tinha certeza que o patriarca não se dobraria nem seria tão facilmente persuadido.

– Algo mais que queira esclarecer, Senhor, ou podemos continuar?

Com o silêncio do Paladino, Téhran saudou seus senhores e assumiu uma postura formal, relatando sobre o ataque à caravana de Uligan. Apesar de o jovem ser objetivo e direto, sem permitir que seus sentimentos moldassem as palavras, o Condutor Nolrart pontuava seguidamente sua narrativa com colocações para enfatizar quem Uligan era, neto do Grão-Diplomata de Caendlia e do próprio Patriarca de Urm, sendo sua morte uma agressão tanto a Graeldar como contra a Igreja. Téhran falou sobre o misterioso espadachim que surgiu para ajudá-lo e de quando caiu, mortalmente ferido, mas não mencionou o grande pássaro de sombras, pois não o vira, tendo sido derrubado de seu cavalo no primeiro ataque e ficado aturdido durante o início da batalha. A humilhação de ter falhado em sua missão marcava seu rosto, mas ele continuou, impassível até o fim. Suas últimas palavras foram sobre o que lhe foi relatado pelo Condutor de Latani, Ardlan, de como fora o único sobrevivente entre todos os que tinham a missão de proteger Uligan, não sendo considerado digno nem mesmo de ser morto em combate pelo assassino.

Télan quase sentiu pena do guerreiro, não o estivessem usando como uma ferramenta para atacá-lo, apesar da inocente participação que o jovem desempenhava. Podia ver que sua dor só não era maior que a vergonha que o consumia, sentindo-se culpado por estar ali, vivo, mas, mais importante e doloroso para o Paladino, era saber que Téhran não havia mentido, assim como nenhuma força nublava ou comandava sua mente. Apesar de não conseguir aceitar o que ouvira, havia apenas a verdade nas palavras do jovem guerreiro.

Nolrart olhou discretamente na direção de Fenhlirs que lhe respondeu com um leve aceno afirmativo. O Condutor apontou então para a longa lâmina sobre a mesa a sua frente.

– Pegue esta espada, Téhran. Empunhe-a.

O jovem guerreiro adiantou-se para cumprir a ordem, mas Télan agarrou seu pulso com força, impedindo-o. Olhou para os quatro homens cinzentos, detendo-se longamente sobre o misterioso servo de Ahlirs.

– Sei o que tenta mostrar, sacerdote, – ele se perguntava como poderiam saber que nenhum homem que não fosse abençoado pelo poder de Baltur poderia empunhar as espadas de Sandren, sendo queimado por seu poder se tentasse – mas as bênçãos e as leis a que sirvo não são o espetáculo de um bufão itinerante para seu divertimento ou de mais ninguém.

– Está dizendo que os seguidores de Baltur não se dobram a nenhuma vontade ou lei que não a sua, carregando espadas e punhais onde ninguém mais pode ou ousaria, Senhor? – a inocente surpresa em sua voz irritou o Paladino. O sacerdote sabia a resposta, todos ali sabiam, mas queriam ouvi-la de Télan, como uma confissão de culpa. Fenhlirs se ergueu, colocando as ossudas mãos sobre a mesa e inclinando o corpo à frente, na direção do Paladino. Sua voz estava agora diferente, clamando com raiva por justiça – Diga-me, Senhor Télan, Filho de Sandren! Diga-me pelo que crê! Alguém mais poderia ter empunhado esta espada e matado o filho do patriarca e nove dos melhores guerreiros destas terras com ela que não um Paladino?

– E quase ter matado meu filho? – Udhir ergueu-se de um ímpeto, gritando, mas não era coragem que Télan via nele, era apenas raiva e covardia. O regente acreditava que o Paladino estava encurralado, sem ter mais como negar o crime que era atribuído a Sandren.

– Não – a resposta não foi mais do que um sussurro a princípio, enquanto os punhos de Télan se fechavam, um dentro do outro. Inspirou profundamente, tentando controlar a raiva que sentia. Não acreditava que Khaedras poderia tê-los traído, mas não podia negar as verdades em que aprendera a acreditar mais do que em si mesmo. Ninguém mais poderia ter empunhado sua espada, apenas outro Paladino. Talvez o regente estivesse certo, talvez estivesse sim encurralado, pelos Feldaen e pela verdade. Por mais hábil que sua espada fosse, por mais guerreiros que pudesse agora vencer, sabia que não conseguiria escapar, não da verdade – Não poderia.

Fenhlirs olhou então para Nolrart, aguardando impacientemente pela ordem do Condutor, mas este precisou de alguns momentos para reunir a coragem para dar-lhe voz.

Lehr Yllain, prenda o Paladino Télan Summerion, Senhor da Marca da Vitória, pelos crimes de sua Ordem contra Graeldar e contra Urm. Que ele permaneça em ferros até que os atos de Sandren sejam respondidos.

Ao ser chamado, o segundo em comando dos Feldaen de Caendlia, Yllain, se aproximou, acompanhado por uma dezena de seus guerreiros, mas se detiveram quando Télan se virou em sua direção e desembainhou Vorukan, que ressoou com o límpido som de um cristal pela catedral. A clara lâmina pareceu brilhar contra a escuridão, marcando o rosto do Paladino com profundas sombras, dando-lhe uma aparência feroz.

– Eu disse que acredito no envolvimento de um Paladino neste crime, Condutor, mas não sou o assassino que procura e não responderei por ele! – Télan apontou Vorukan na direção de Nolrart, sentindo o coração apertar-se em seu peito. Havia chegado o momento pelo qual temera, quando razão e verdade não mais importavam – Chame-os de volta! Agora!

Mais Feldaen saíram das sombras, cercando-o. Vários já se colocavam entre ele e o sacerdote, protegendo seu superior com curtas lanças de lâminas largas como folhas. Télan acreditava que conseguiria passar pelos guerreiros e chegar até o Condutor, mas ao custo de muito sangue inocente, seu e dos Feldaen. Eles não eram seus inimigos, não perpetraram mal algum, tentava lembrar-se. Eram apenas guerreiros cumprindo ordens, assustados em sua maioria, jovens em grande número, mas acima de tudo, leais, e a lealdade não era uma justa razão para morrerem, não quando tantos já haviam morrido sem motivo, mas as leis de Sandren o deixavam sem escolha. Jamais permitiriam que um inocente pagasse pelos crimes de outro, mesmo que este inocente fosse um dos seus.

Voltou-se para a mesa uma vez mais, buscando por sanidade, mas encontrou apenas uma tênue esperança em Udhir de que os Feldaen pudessem matá-lo e o medo tomando por completo o coração de Nolrart e de Inyllan. O Condutor tinha os angustiados olhos trêmulos voltados para Fenhlirs, balbuciando algo inaudível, enquanto o sacerdote de Ahlirs apenas sorria levemente, oculto em suas sombras.

Télan percebeu então o que havia acontecido. Fenhlirs os convencera de que o Paladino se renderia quando confrontado pelas provas e pelos soldados, mas ele desejava secretamente pelo combate, não importando seu resultado. Se Télan vencesse ou morresse, o início de uma guerra entre Sandren e Graeldar seria inevitável e acabaria por envolver todo o império de Nyothar. Seria o fim das antigas alianças e dos tratados de paz. Seria o começo do reinado do caos e provavelmente o fim dos próprios Paladinos.

– Sacerdotes, nós todos iremos morrer se continuarem com esta loucura! – Télan buscava por uma saída, mas todas que encontrava teriam de ser abundantemente tingidas de vermelho. Por que eles não o escutavam? Por que não viam o que estava diante de seus olhos?

– Parem, tolos! – a imponente voz continuou a ecoar no tenso silêncio que se fez e um homem curvado pela passagem de muitos anos surgiu por trás da base da grande balança. Suas vestes eram também cinzentas, mas sem as distinções que os outros envergavam, demonstrando que não compartilhavam da mesma hierarquia, mas nenhum entre os graeldaras que estavam sentados ousou questionar sua autoridade. Télan não o conhecia, mas era dele que emanava o ódio que a Luz lhe mostrara quando entrou, escondido até então nas sombras do altar.

– Perdoe-me, Condutor Ardlan, – Fenhlirs se virou para ele, escondendo habilmente a raiva que sentia por sua interrupção – mas estes são assuntos que não...

– Cale-se, idiota! Já falou demais para alguém que não tem voz neste conselho – Ardlan o repreendeu como se falasse com um de seus alunos. Télan não precisou que a Luz lhe mostrasse o que Fenhlirs sentiu. O olhar que dirigiu ao ancião deixou claro o que se passava em sua mente. Ele não permitiria que Ardlan vivesse um dia a mais por sua vontade, mas, se o Condutor de Latani se sentiu ameaçado, não deixou transparecer. Sua vida não parecia lhe importar mais, apenas este momento – Há uma opção que quero apresentar a este Paladino.

Télan permaneceu em silêncio, sentindo partir daquele pequeno homem uma ameaça ainda maior do que das espadas que o cercavam. Ardlan passou pela mesa, sem ser importunado pelos que ali estavam, e entre os Feldaen, colocando-se a frente do Paladino.

– Você vai se ajoelhar, homem de Sandren – havia ódio e prazer em seus olhos e em sua alma, saboreando imensamente as palavras que havia guardado por décadas – Vai se ajoelhar, renegar seu título e suas terras, e render sua espada. Tenho sessenta homens leais apenas a mim no limite da Marca, aguardando apenas uma ordem minha para que retornem para Latani ou para que matem todos os homens que lá se encontram e se divirtam com as mulheres e as crianças, se receberem apenas meu silêncio. Arrastarão seu filho pelos joelhos até esta cidade e cortarão sua garganta no momento em que virem o primeiro sinal de um seguidor de Baltur.

– Condutor Ardlan, isto não foi autorizado pela Ordem! – Nolrart parecia horrorizado.

– Este não é um assunto da Ordem, é meu! O que vai fazer, Nolrart? Expulsar-me da Ordem? Confiscar minhas terras? Eu não me importo! – o grito do ancião fez o Condutor se sentar. Ardlan tinha uma chama de ódio doentio no olhar que Télan nunca vira, enquanto a Luz lhe mostrava que ele não havia mentido. Ardlan se voltou novamente para o Paladino e um sorriso perverso se abriu em seus lábios enrugados – Sei que nos mataria a todos e se sacrificaria para proteger sua preciosa Sandren, mas que glória há em fazer familiares e tantos inocentes pagarem pelos erros de outros?

Télan permaneceu em silêncio, querendo acreditar que não sabia o que deveria fazer. Tinha certeza que Ardlan os estudara, que os conhecia mais do que deveria, e isto o assustava. Se pudesse, teria achado graça ao pensar que havia certo alento na armadilha em que o ancião o colocara. O olhar de Fenhlirs demonstrava o ódio que o corroía, mesmo oculto por suas sombras. Seus obscuros planejamentos haviam sido frustrados por alguém que ele certamente considerara inferior e incapaz, nada mais que uma pequena peça para ser usada em seu jogo. Planos dentro de planos dentro de planos. Laertes lhe alertara sobre os diplomatas, mas nem mesmo os sábios conselhos do velho mentor poderiam prepará-lo para isto. Uma primitiva imagem lhe veio à mente, a deusa Yarnirën, a serpente que devora a própria cauda para não morrer de fome e acaba morta por seu veneno. A traição, o desespero, o que tem de ser feito sem se importar com o custo. Seria este o legado final de Sandren?

Todos prenderam a respiração quando Télan ergueu Vorukan, menos Ardlan. Ele sabia que havia vencido. Com um momentâneo brilho que pulsou da lâmina, dissipando as sombras da catedral, o Paladino a enterrou profundamente entre as pedras cinzentas do piso.

– Quero sua palavra de que nenhum mal acontecerá às pessoas que vivem na Marca da Vitória por quaisquer crimes que julguem aqui que Sandren tenha cometido! – a voz de Télan deixava claro que não aceitaria nada além da verdade.

– Eu não tenho nada contra eles, Paladino. Eu juro que nada lhes acontecerá.

– Jure por sua Ordem, pelos Nove Mestres, por Graeldar e por Urm em seu solo sagrado, em frente a todos os Feldaen!

A fronte de Ardlan se fechou, fazendo seu sorriso desaparecer por um momento. O Condutor acreditava que seu juramento morreria junto com ele e que sua alma se veria livre de qualquer grilhão que a prendesse a sua vingança. Planos dentro de planos, mesmo abominando-o, o Paladino também sabia jogar este jogo. Os sacerdotes na mesa se entreolharam, incomodados por Télan saber tanto sobre eles e se perguntavam o que mais ele saberia.

– Eu juro pela Ordem de Hilnos, pelos Nove, por Graeldar, pela Cadeira Cinzenta e por Urm em sua catedral – Télan viu que, apesar de contrariado, ele falava a verdade.

O Paladino ajoelhou-se em frente a Vorukan, orando silenciosamente a Baltur por um perdão e pela sabedoria que sabia que nunca viriam. Estendeu os pulsos unidos, em sinal de submissão a Ardlan.

Lehr Yllain, cumpra as ordens do Condutor Nolrart – Ardlan voltava a sorrir, dando um passo para trás para que os Feldaen cercassem o Paladino.

Télan não reagiu quando os Feldaen o amarraram como um ladrão e assassino, colocando suas mãos às costas. As adagas de sua família lhe foram retiradas, assim como sua capa e armadura, mas ninguém ousou tocar em Vorukan, que permaneceu fincada no piso rachado da igreja, ressoando levemente. Os sacerdotes à mesa suspiravam aliviados, enquanto Udhir sentia-se frustrado e Fenhlirs praguejava internamente, absorto em seus planejamentos sombrios. Durante todo este tempo Télan manteve os olhos sobre o sorriso do ancião a sua frente, vendo sua raiva dar lugar ao júbilo da vitória.

– Por que nos odeia tanto, Condutor Ardlan?

Ele aproximou-se do Paladino ajoelhado, abaixando-se para que seus olhos ficassem na mesma altura dos de Télan. Sua voz era pouco mais que um sussurro.

– Meus irmãos mais jovens acreditaram nas palavras de um louco chamado Valacar, seguindo-o como seus Destemerosos e sendo assassinados diante de meus olhos, enquanto um maldito homem de Sandren, designado para proteger-nos e nos fazer justiça, apenas assistiu! Eu fui apresentado à justiça dos Paladinos naquele dia, sei como ela funciona. Esta é a minha justiça, maldito! Este é o meu equilíbrio! Mas não se preocupe, não estará sozinho. Para onde vai, farei com que todos os parentes de Valacar o sigam em breve – o prazer de Ardlan pareceu aumentar, despertando um temor em Télan pelo que viria a seguir – Mas ainda falta algo, um presente que Sandren me deu e que agora retribuo.

Ele bateu palmas e um servo em roupas claras se aproximou vindo das sombras da catedral, trazendo um saco de tecido grosso.

– Não lhe disseram antes, mas outra espada foi encontrada entre os mortos da caravana – Ardlan se ergueu, retornando para as sombras atrás do altar – Acredito que a conheça.

O servo abriu o saco e despejou seu conteúdo a frente dos joelhos de Télan. Os sons dos pedaços de uma clara lâmina partida atingindo as pedras do piso ecoaram nas distantes paredes ocultas, trazendo terror ao coração do Paladino.

– Por Baltur... Midler...

Em uma pequena sala de orações, afastada da câmara principal da catedral, Calligan sentiu os joelhos doloridos, enquanto o resto do corpo o implorava uma vez mais para que lhe fosse permitido descansar. O dia já iria amanhecer. As mãos tremiam pelo esforço, tentando acender mais uma vela de cera negra. Já eram em número de quatro, representando as manhãs que vira nascer sem ter dormido, orando ao sábio mediador pela sabedoria que lhe faltara. O patriarca quase não repousara desde que os mensageiros foram enviados para a Marca da Vitória contra sua vontade, mas os outros haviam decidido.

– Maldito seja por toda eternidade, Fenhlirs. E oito vezes maldito seja Ardlan.

O sacerdote da lua chegara pouco depois da partida de Uligan, no último dia do Cervo, sendo recebido como um amigo pelos devotos de Urm, apesar de muitos anos haverem se passado desde a última visita de qualquer seguidor da deusa Ahlirs. Ela era uma divindade antiga, trazida de além do Deserto sem Fim, encontrando rápido abrigo entre os pobres e os simplórios. Apesar de ter viajado até ali pelas mãos dos Novos Homens, mesmo os clérigos de Graeldar a receberam após a Batalha dos Campos Vermelhos. A alternância de sua face, eternamente verdadeira na oscilação de sua luz e sombra, estava refletida em suas leis e crenças, aproximando-a da filosofia de Urm por não se deter em nenhum extremo, tornando-se bem vinda entre seus seguidores.

Fenhlirs se mostrara humilde e simpático à causa graeldara, mas sua face mais marcante, que procurou esconder de todos nos primeiros dias como a lua agora o fazia no escuro céu acima, era de um exímio negociador. Participou respeitosamente dos cultos da igreja, ajudando no que podia e pedindo por conselhos, mas em verdade buscava pelos Nove Mestres, mas, por uma efêmera sorte para Graeldar, apenas três se encontravam em Caendlia.

Ele contou a todos de como os homens de Sandren os haviam perseguido durante a última lua nova, matando os que conseguiram encontrar porque os Filhos da Lua haviam difundido a revelação que receberam de sua deusa, de que chegaria em breve o dia em que a noite iria se fundir ao dia, em um período de longo crepúsculo, e todo aquele que vivesse apenas da luz ou da escuridão perderia sua força e pereceria. Os Paladinos se sentiram ameaçados e os chamaram de inimigos e de demônios, caçando-os para calar a verdade que não queriam que ninguém ouvisse.

Fenhlirs alegava que esta verdade ainda estava com ele e viera a Caendlia em missão de misericórdia, arriscando a própria vida para pedir aos poderosos devotos de Urm que enfrentassem aqueles que os poucos Filhos da Lua não podiam mais. Calligan desconfiava que, em verdade, Fenhlirs conhecia os sentimentos dos outros Mestres em relação aos Paladinos, tentando discretamente convencê-los de que o segredo que carregava poderia ser usado para trazer os homens de Sandren aos seus pés e à justiça.

Calligan não acatara este pedido, recusando-o tão polidamente quanto sua diplomacia o permitiu, o que muito lhe custou. Apesar de suas convicções, mesmo para o experiente diplomata fora difícil não ser tocado pela sedutora voz do sacerdote da lua. Ela embalava as palavras em uma cantiga entorpecente, quase mágica, deixando seu ouvinte completamente a sua mercê. O patriarca se reuniu secretamente com os outros Mestres para ajudá-los a desfazer a influência desta sedução sobre eles, mas esta também não se apresentara como uma tarefa fácil, pois Fenhlirs soubera plantar a semente da dúvida entre eles. Havia mais do que apenas sabedoria e valimento em sua voz, havia algo que não poderia ser traduzido em nenhuma das línguas que o patriarca conhecia, mas se fazia presente nas mentes dos que o ouviam, agarrando-se firmemente a elas. Mesmo Udhir, que sempre temera os Paladinos e nunca ousara encontrar-se com Télan quando este vinha à Caendlia, cogitava suas propostas.

O esforço fora grande, mas Calligan os convencera um a um de que o momento de se fazer justiça não havia ainda chegado. Teve de lembrá-los do muito que já haviam conseguido, dos planos que tinham para seu povo, dos preparativos que já estavam prontos e de muitos outros que estavam em andamento. Assim como os outros Mestres, o patriarca também não confiava totalmente na visão e na justiça de Sandren, mas preferia tê-los ao seu lado quando o momento chegasse. Muito poderia se perder em um prematuro confronto aberto com a Torre de Marfim e ninguém conhecia Télan como ele. Apesar do que Fenhlirs afirmava, o patriarca sabia que o convicto Paladino não se renderia apenas pelas acusadoras palavras de um forasteiro, por mais que a verdade que alegava estivesse com ele.

Por dez dias Fenhlirs vagara pelos corredores da catedral, sussurrando em cada ouvido que lhe era apresentado, como um espírito sedutor, com o patriarca e seus enviados discretamente em seu encalço desfazendo suas ações, em um perigoso jogo secreto de influência, de torpor e despertar. Por fim, o derrotado Filho da Lua assumira uma posição mais recatada, sua raiva incontida começando a corromper a melodia de sua voz e a perturbar suas palavras, não mais encontrando eco no interior da catedral. Calligan chegara a acreditar que ele partiria em poucos dias, mas então Ardlan chegou.

O Condutor de Latani veio a Caendlia em um cortejo fúnebre, escoltado por uma longa comitiva de meia centena de homens armados. Desde que fora afastado da Ordem, se recusava a ser protegido pelos Feldaen, como se temesse alguma traição por parte deles. Seguiram direto para a catedral, sem que a identidade dos corpos que levavam fosse revelada, apesar de alguns boatos já correrem entre a multidão quando os portões da Cidade Alta se fecharam atrás deles. Calligan tivera tempo de se preparar para aquele momento, tendo recebido a carta oculta de Uligan dois dias antes. Ele sabia que Ardlan também conhecia a verdade, mas o velho Condutor não fez qualquer menção sobre seu neto ainda estar vivo, mesmo quando ficaram sozinhos. O patriarca não soube dizer se Ardlan tinha conhecimento sobre a carta ou seu conteúdo, preferindo manter seus segredos consigo.

Os cinco dias de luto foram respeitados por toda Caendlia e o próprio Jaendor lhe oferecera suas condolências, participando das cerimônias na catedral e das homenagens aos Feldaen mortos, marcadas profundamente pela ausência de Udhir. O corpo quase sem vida de seu filho, que mesmo Ardlan não pôde curar, fez o regente envelhecer muitos anos em dor e sofrimento, culpando o patriarca uma vez mais pelas desgraças que caíam sobre sua família. Calligan sabia que Téhran gostaria de ter seguido com o cortejo que levou seus companheiros caídos em sua última jornada para Meodar, onde guardariam eternamente as ruínas de Marelvian, mas suspeitava que Udhir retardara propositalmente a cura de seu filho para que ele não pudesse acompanhá-los.

Cinco fúnebres dias se passaram, entre a fumaça negra dos incensos diurnos e a névoa cinzenta que cobria o piso da catedral durante a noite, com suas grandes portas sempre fechadas. Apesar da cansativa máscara de dor e pesar que teve de usar, Calligan gostaria que estes cinco dias tivessem durado por toda a eternidade ao invés do que encontrou após eles.

Fenhlirs quase não fora visto durante os dias de luto, mas sempre que os atentos olhos que Calligan cultivava dentro e fora da igreja lhe traziam notícias sobre o sacerdote da lua, Ardlan estava com ele, mas nenhum ouvido conseguiu perceber o que falavam.

Dois outros Mestres chegaram à capital durante aqueles dias, o velho Inyllan e o imenso Jormerund, eternamente acompanhado por seu séquito de jovens acólitos, belos e perfumados, parecendo a Calligan ainda mais gordo do que da última vez que o vira, se isto era possível. O patriarca os acolheu na grande casa ao lado da catedral, mantendo-os longe de Fenhlirs até o limite de suas habilidades de diplomata e nunca os deixando sozinhos com o sacerdote da lua quando seu encontro se tornava inevitável.

Assim que o luto foi erguido da cidade e as portas da catedral foram novamente abertas, Calligan foi surpreendido por uma convocação da Ordem de Hilnos para tratar sobre o ataque à caravana de Uligan. Quando entrou no salão não se surpreendeu com a presença de Ardlan e Fenhlirs entre os Mestres, apesar de não ser permitida a presença de estranhos nos conclaves da Ordem. Sabia que o sacerdote da lua tentaria novamente persuadi-los, mas fora Ardlan quem falara, defendendo veementemente seu pedido.

O patriarca o contrariara habilmente, com a relutante ajuda dos outros Mestres, usando veladamente o receio que estes tinham da Torre de Marfim e de seus Paladinos, mas toda a esperança se desvanecera quando Ardlan apresentou a espada que matara a Uligan e aos Feldaen, uma lâmina de Sandren, e um a um os Mestres se perderam. A memória de seu filho fez Udhir e seu ódio se entregarem de bom grado às fileiras do Filho da Lua. Inyllan fora seduzido pela tênue promessa de justiça, enquanto Nolrart se rendera à chance de finalmente vingar seu pai, Nillart, o único entre os Destemerosos que fora morto pelo Paladino Éradhen. Apenas o imenso medo de Jormerund, maior do que o próprio Mestre, o mantivera vacilante ao lado de Calligan, mas apenas até que, sob as ordens de Ardlan, um de seus servos empunhou a maldita espada e teve todo o braço coberto por indomáveis chamas brancas, antes de soltá-la e cair no chão, contorcendo-se em espasmos até aquietar-se aos pés de seu senhor, que abrandou seu sofrimento.

Um agudo grito afeminado se uniu aos gritos de dor do moribundo servo e Jormerund desfaleceu, escorregando de sua imensa cadeira e esparramando-se sobre o tapete cinzento abaixo. Seus acólitos não estavam presentes para ampará-lo e ali ele permaneceu.

Calligan fora derrotado e esta certeza doera em seu peito naquele dia como ainda doía enquanto fazia suas orações na pequena sala em que se encontrava. Olhou para as estrelas que brilhavam fortemente no escuro céu que se mostrava por trás da pequena abóboda acima, não mais ofuscadas por uma lua que se mostrava agora negra e sem misericórdia por entre os pináculos das torres da catedral. Seria este o último céu sobre uma Graeldar que ainda ousava ter esperanças de ser novamente soberana? Seriam estas estrelas as testemunhas de sua queda final? Calligan não tinha estas respostas e voltou a orar por elas. Orava também por Télan, para que Urm concedesse àquele que não era um fiel seguidor a sabedoria que faltava aos seus.

O som de um apressado arrastar de sandálias no corredor para além da pequena porta da sala o despertou. “Urm me julgue, adormeci”, repreendeu-se em silêncio. Estava cansado, muito mais que seu velho corpo poderia suportar, mas o acelerado coração em seu peito lhe avisava que a hora havia chegado.

A porta se abriu sem emitir nenhum som e um homem alto trajando uma pesada armadura de combate dos Feldaen entrou carregando o elmo sob o braço esquerdo. O cabelo já rareava na parte superior de sua cabeça e se encontrava tingido pelas neves do inverno de seus anos em suas laterais, mas o orgulhoso bigode ainda mantinha a escura cor da juventude. Seu nome era Hirdaelin, Primeiro-Comandante dos Feldaen e um longevo amigo do patriarca. Calligan permaneceu de joelhos, apenas girando a cabeça para olhar a mão direita do guerreiro. “Vazia! Graças a Urm, vazia!” Os olhos pesados se avivaram, tremendo sutilmente em um úmido reflexo. Uma espada na mão do Feldaen significaria que o pior acontecera e Calligan ordenara a seu fiel amigo que lhe tirasse a vida se a morte fosse o resultado da loucura da Ordem. Não desejava viver em uma Graeldar sem esperanças, mas, apesar dos temores que o patriarca ainda sentia, Télan havia se rendido.

– Meu senhor, com sua permissão – Hirdaelin curvou-se, sempre mantendo uma postura formal quando estava em serviço, apesar da amizade que dividia com o patriarca desde muito antes de sua nomeação – O Paladino foi colocado a ferros sem que nenhum sangue fosse derramado.

Calligan sentiu-se triste e aliviado com esta notícia. Desejou mais uma vez de todo seu coração ter estado lá para defendê-lo, mas o Paladino veria através dele e descobriria que Uligan ainda vivia. Neste segredo repousava a segurança de seu neto e de Graeldar e ambos eram mais importante para o patriarca que sua própria vida ou honra. Sentia-se fraco também em seu espírito por evitar Télan e seu olhar, assim como parte das responsabilidades que acreditava que lhe caberiam, mas ainda havia uma solução, não importando que ameaças os Mestres tenham feito ou que juramentos tenham arrancado dele. Calligan ainda era o maior representante de Graeldar e da igreja de Urm. Tinha a autoridade para desfazê-los e libertar o Paladino, mas apenas quando estivessem a sós. Desceria para as celas durante as primeiras luzes da manhã, quando todos os Mestres estariam na catedral para a abertura das Portas Brancas e se desculparia eternamente com Télan por sua omissão. Depois, e apenas depois, se permitiria finalmente descansar.

Hirdaelin ajudou-o a se levantar, enquanto os velhos ossos estalavam e reclamavam, mas Calligan não se queixou. Apesar do sol ainda não ter nascido, a angustiante noite havia acabado para ele. Sentiu-se muito cansado, talvez como nunca se sentira. Dentro de poucas horas a escuridão lá fora daria lugar às luzes de um novo dia, uma nova esperança.

– Leve-me aos meus aposentos, meu amigo – a voz estava tão fatigada quanto seu corpo.

– Imediatamente, meu senhor. Tem sede?

Calligan anuiu com a cabeça. O ar noturno sempre ressecava sua garganta. Hirdaelin retirou do cinto o pequeno odre que trazia, abriu e bebeu um longo gole, aguardando por alguns instantes antes de passá-lo ao patriarca, que sorriu levemente. Mesmo entre amigos, o comandante mantinha-se fiel aos protocolos de seu cargo.

O patriarca bebeu a água e apoiou-se no braço do Feldaen, saindo da sala de orações com ele. Este era um dos cômodos mais sagrados da catedral, construído entre as bases das suas duas torres e com o vitral em forma de arco de sua abóboda voltado para o caminho que o sol descrevia no céu durante o solstício de verão. Sob o pequeno altar onde o patriarca rezara por quatro dias inteiros, construído com pedras que vieram das ruínas da antiga catedral de Marelvian, estava escondido o Livro dos Campos Vermelhos, que contava a história de Graeldar sob a visão sem reservas de seus filhos, onde muitos segredos permaneciam ocultos desde muito antes dos dias de Hilnos.

Ao passar pela pequena porta, Calligan viu que outros dois Feldaen o aguardavam para acompanhá-lo. Era comum o patriarca ter sempre homens armados consigo quando se deslocava, fazendo parte do protocolo de sua posição, mas estes estavam trajados para a guerra, não para a escolta. As armaduras eram formadas por pesadas placas sobre uma intrincada cota de malha e havia manoplas articuladas sobre as luvas. Os elmos fechados possuíam apenas uma viseira, sem adornos. Uma túnica branca com o desenho do curso do Lorun em azul sobre o lado esquerdo do peito os cobria, terminando em um curto saiote acima dos joelhos para não atrapalhar seus movimentos. Levavam um pesado escudo em prontidão no braço e uma lança curta nas mãos, com uma espada e punhais embainhados, permanecendo imóveis como duas estátuas gêmeas.

Calligan olhou para eles e um calafrio percorreu sua espinha. Talvez fosse o cansaço, o frio ar da noite no amplo corredor ou o pensamento de que aqueles eram graeldaras que estavam trajados para enfrentar e morrer pela espada de um Paladino, como na rebelião de seu pai. Ele não soube dizer, apenas sentia que algo não estava certo.

– Quero ver seus rostos – o cansaço desapareceu por um momento da voz de Calligan, comandando firmemente aqueles homens.

Os Feldaen foram surpreendidos pela estranha ordem e se voltaram sutilmente para Hirdaelin, mas não esperaram pela anuência de seu comandante, retirando os pesados elmos.

Calligan sorriu ao ver o conhecido rosto de Fralnin, um Feldaen já com mais de quinze anos de serviço em Caendlia, protetor pessoal do patriarca e também um amigo querido, mas seu semblante se fechou ao se voltar para um jovem rosto que nunca vira. O cabelo ruivo preso em uma curta trança e os olhos claros eram os traços típicos dos Valahir que viviam no distante nordeste de Graeldar, sob as encostas das Montanhas do Gigante, próximos à nascente do Lorun, um lugar venerado pelos graeldaras. Os filhos desta Casa se tornavam quase sempre Guardiões do Bosque Sagrado, lavradores, escribas e devotos, mas raramente guerreiros de qualquer fama. Calligan nunca soubera de um Valahir que havia se tornado um Feldaen antes.

– Com a sua permissão, meu senhor, este é Illan, o filho mais novo de Lorde Piatrun – Hirdaelin conhecia Calligan muito bem para saber o que se passava em sua mente – Está conosco há alguns meses e, apesar de ainda não ser um Lehr, é um rapaz capaz e muito dedicado. Insistiu para estar ao lado do patriarca quando nenhum Feldaen fora designado para protegê-lo, meu senhor.

– É uma honra para mim e minha Casa, meu senhor – o jovem abaixou a cabeça e abriu os braços, em sinal de submissão. Apesar de tentar controlá-la, sua voz estava pontuada de emoção. Calligan observou que ele deveria ser ainda mais novo que seu neto, embora maior e mais forte.

– Os Feldaen não falam na presença de seus senhores sem permissão, rapaz! – a voz de comando de Hirdaelin era severa e temida pelos seus comandados.

O jovem permaneceu em curvado silêncio, aguardando, enquanto Calligan mantinha os pensativos olhos sobre ele. Todos os Feldaen haviam sido convocados pela Ordem e estavam agora na catedral, ao serviço da loucura dos outros Mestres. Apenas seu Comandante tinha a autoridade para decidir como melhor poderia servir a Graeldar e declinar seu chamado. Quanto a Fralnin, que conhecia como poucos cada cômodo da casa de Urm, Calligan tinha a certeza de que ele não fora encontrado pelos enviados da Ordem e alegaria ignorância à convocação quando fosse chamado para responder por sua ausência. Estes eram seus leais protetores e amigos, mas, apesar do imenso respeito que percebia no jovem, quase como uma veneração, sua presença era algo que lhe deixava intranquilo.

– Deveria ter atendido ao chamado dos outros Mestres, jovem guerreiro – a voz de Calligan era firme, mas não estava carregada de austeridade como a de Hirdaelin – Quem almeja se tornar um Feldaen deve aprender a obedecer aos seus superiores sem questioná-los.

– Não fui convocado, meu senhor. Sou um Valahir – o rapaz mantinha-se curvado, mas Calligan não precisava ver seu rosto para perceber a vergonha em suas palavras – Sei que já ouviu tantas vezes que não se deve procurar por guerreiros no Bosque Sagrado, meu senhor, mas imploro que não me mande embora.

“Aqueles que guardam as árvores para que elas não fujam”, era como os Guardiões do Bosque Sagrado eram conhecidos pelos outros guerreiros de Graeldar, mesmo entre os Feldaen e os nyotharins. Ser um Guardião era um título tradicional de honraria à Casa Valahir, pelo apoio que dera a Hilnos antes mesmo de Graeldar, mas este não era oriundo de qualquer mérito em combate. A obstinação do jovem fazia Calligan lembrar-se de Téhran, assim como seu pedido, mas também o recordava do ódio de Udhir por sua intervenção.

– Não irei julgá-lo, jovem, pois não sou eu quem deve avaliar os Feldaen, mas seu competente comandante – voltou-se para seu amigo, que apenas anuiu com a cabeça – Se Lehr Hirdaelin o julga capaz, lhe será dada a oportunidade para calar muitas vozes que desmerecem o nome de sua Casa. Deixem aqui seus elmos, não irão precisar deles. Agora sigamos. Quero descansar um pouco antes do sol se erguer.

Illan ergueu os olhos umedecidos para o patriarca, com um agradecido sorriso a marcar seu rosto, reassumindo em seguida a postura que se esperaria de um Feldaen frente a um Mestre. Calligan apoiou-se novamente no braço de Hirdaelin, falando-lhe discretamente antes de seguirem.

– Fique atento a ele – o comandante assentiu sutilmente e começaram a caminhar.

Os corredores estavam escuros e silenciosos, com apenas o movimento das placas das armaduras e os pesados passos ecoando levemente em suas paredes. O patriarca observava os conhecidos vitrais quando passavam por eles, as imagens das paragens de Graeldar escurecidas pela noite. Apesar do alívio que sentia, elas também o deixavam inquieto, como se a cor que lhes fora roubada fosse um presságio de dias negros para sua terra e seu povo. Inspirou profundamente, sentindo-se velho e cansado. “São apenas sombras”, pensou. “Um novo dia está a caminho”.

Os aposentos do patriarca não eram distantes da sala de orações e em poucos minutos suas portas estavam diante deles. Hirdaelin as abriu e entrou, indicando para que os outros guerreiros ficassem e protegessem Calligan. O patriarca observou o jovem dar-lhe as costas e vigiar o corredor, segurando o cabo de sua espada ainda embainhada, atento e diligente em sua missão. Não havia nenhum indício da ameaça que Calligan sentira, mas a inquietação ainda estava dentro dele, apertando seu coração. “Estarei me tornando como Ardlan, vendo inimigos e ameaças em cada sombra e pessoa?” Este pensamento o assustava.

Hirdaelin retornou e colocou-se de lado para que o patriarca entrasse. Calligan sabia que ele ficaria de guarda em sua porta até que o chamasse, apesar de ser quase humilhante o Primeiro-Comandante dos Feldaen exercer a função de um mero soldado, e era grato por isso. Em todo seu receio, era nele que Calligan encontrava a segurança que lhe faltava.

O quarto se encontrava envolto em uma penumbra, iluminado pelas poucas velas que se encontravam perfiladas sobre a longa bancada de mármore, como condizia à filosofia de Urm. Calligan sentiu o corpo tremer sutilmente quando entrou. Estava frio ali, como se o inverno que ainda se encontrava a quatro dias de seu início já se fizesse presente naquele quarto. As cinzas da lareira estavam frias e mortas desde o dia em que se recolhera para orar. Pensou em pedir para que o fogo fosse acesso, mas sabia que o cômodo era muito grande para estar aquecido antes de o sol nascer.

Um afogado grito de dor de Fralnin quebrou o silêncio sepulcral, calando-se rapidamente. O som de uma lâmina sendo desembainhada as suas costas fez os pelos de sua nuca se eriçarem, enquanto se virava, praguejando ao som das espadas em combate e de uma pesada armadura que se chocava contra as tapeçarias do piso.

– Maldito Valahir! Demônios, eu sabia!

Hirdaelin enfrentava furiosamente Illan, enquanto o corpo de Fralnin tremia em seus estertores no chão com uma crescente poça de sangue tingindo o belo tecido sob ele. Um punhal se projetava da parte de trás de seu pescoço. Calligan deu um passo em sua direção, mas se deteve ao perceber que não havia mais nada que pudesse fazer. Seu amigo estava morto. Ergueu os olhos em fúria para o jovem.

Illan não tinha a experiência de Hirdaelin, mas era muito mais ágil e rápido, além de usar uma proteção mais adequada que seu comandante. Apesar de ser atingido algumas vezes, o escudo e a armadura o protegeram, dando a ele a chance de atingir o braço esquerdo de Hirdaelin, que começou a sangrar abundantemente. Calligan viu que o jovem era realmente um guerreiro, apesar do que se falava sobre os Valahir.

– Maldito dissimulado! – o patriarca invocou uma dolorosa maldição sobre Illan, antes que ele pudesse atacar novamente Hirdaelin, que já arfava pesadamente, sentindo o peso dos anos e do profundo ferimento.

O jovem curvou-se em um espasmo de dor, deixando a espada cair da trêmula mão, mas não gritou. Virou-se para o patriarca, tentando falar algo, mas sua voz estava muito enfraquecida pela dor. Deu um passo para trás, cambaleando atrás de um apoio. Agarrou-se à longa bancada de mármore, derrubando duas das velas que se apagaram. Com uma ruidosa inspiração, conseguiu reunir as poucas forças que ainda possuía.

– Corra... meu senhor... fuja!

Calligan se surpreendeu com aquelas palavras, incerto se as havia compreendido corretamente. Inúmeros pensamentos digladiavam-se em sua mente quando a espada de Hirdaelin cortou velozmente o ar, decepando a cabeça de Illan, que voou pelo quarto enquanto o corpo caía inerte entre jorros vermelhos que salpicaram o peito e o rosto de seu ofegante comandante.

Os olhos do patriarca se voltaram imediatamente para Fralnin e seu coração se apertou dolorosamente no peito ao reconhecer o cabo do punhal que o matara. Fios de metal preto e branco entrelaçados subiam por ele, terminando em um pomo em forma de uma esfera de luz e sombra. Calligan dera esta lâmina de presente ao Primeiro-Comandante dos Feldaen quando de sua promoção.

Hirdaelin deu um passo na direção do patriarca, que recuou. O rosto do Feldaen estava inerte, sem qualquer expressão, parecendo não se importar com o profundo corte em seu braço ou com o rio rubro que corria por ele, enquanto lágrimas desciam de olhos umedecidos que tremulavam de dor e desespero. Havia alguma força sobre ele, forçando-o contra sua vontade.

– Roubaram-lhe o equilíbrio – Calligan fechou os olhos, tentando se manter sereno e voltando sua fé para Urm e para todos os poderes que comandava por sua graça. Inspirou longamente e estendeu a mão trêmula na direção de Hirdaelin, em uma benção de purificação – Eu liberto seu espírito, meu amigo.

Uma leve brisa se fez presente no quarto, apesar das janelas estarem fechadas, partindo do patriarca e atravessando o corpo do Feldaen, inflando suas vestes e fazendo os curtos cabelos dançarem em torno do pescoço. O comandante deteve seu avanço e assim permaneceu, com o corpo retesado como se o suave toque possuísse uma força que não podia ser medida pelo que se via. Apesar do sangue que ainda gotejava de seus dedos, o ferimento em seu braço lentamente fechou, até desaparecer sem deixar qualquer cicatriz, como se nunca houvesse existido. O próprio sangue de Illan que cobria a espada e as vestes do Hirdaelin empalideceu e ressecou, caindo como uma fina neve sobre a tapeçaria, mas o rosto sem expressão do Feldaen não se alterou.

Uma leve risada feminina ecoou na mente de Calligan, fazendo-o tremer, mas não perturbou o silêncio do cômodo. Não era um som para ser ouvido, mas algo que se fazia presente dentro dele.

“Velho tolo!”, ele não sabia dizer de onde a voz vinha, parecendo partir de todas as direções a sua volta. “Este é um poder que não compreende, que não pode enfrentar.” Calligan olhou avidamente para as sombras que o cercavam, mantendo-se ainda atento a qualquer movimento de Hirdaelin, mas nada viu. O quarto pareceu-lhe ainda mais escuro e frio de quando entrara.

– Eu não temo a sombra, demônio! Eu a conheço e a venero, assim como à luz – Calligan ergueu os braços com uma palavra sussurrada nos lábios e, quando os abaixou, um ofuscante clarão se fez presente, fazendo a escuridão recuar imediatamente, mas aquela claridade não era como a simples luz de uma fogueira ou de uma lanterna. Ela preenchia cada canto e fresta escondida, atrás e debaixo de cada móvel. Não havia mais sombras em sua presença, desvelando-lhe todo o quarto que conhecia tão bem, mas, mesmo assim, não conseguiu revelar a presença de seu inimigo.

Uma nova risada preencheu sua mente, agora mais forte e vibrante, fazendo seu coração acelerar sem controle. “A luz não pode revelar o que a sombra não escondeu, velho!” Um inquietante instante de silêncio se perpetuou, fazendo Calligan temer o que viria a seguir. Quando se fez novamente presente, a voz estava carregada de sarcasmo. “Comandante, seus serviços não são mais necessários. Eu o liberto.”

– Não... – o patriarca voltou-se para Hirdaelin, com a fria certeza do que aconteceria.

O Feldaen elevou a espada e a encostou no pescoço, rasgando-o em um contínuo movimento. Caiu de joelhos, com o sangue e as lágrimas correndo abundantes por seu peito, mas tinha no rosto uma estranha serenidade, um alívio por se ver livre de seu tormento. Não emitiu um grito de dor ou qualquer som de agonia enquanto desabava como a marionete sem cordas em que havia sido transformado, unindo-se silenciosamente na morte aos dois irmãos em armas que havia matado.

Calligan sentiu suas forças se esvaírem, tomado pelo medo e pelo frio que corroíam sua alma. Nenhum outro clérigo de Urm comandava um poder maior que seu patriarca, assim como nenhuma força que conhecia poderia ter resistido às bênçãos que invocara, mas mesmo ele não conseguira impedir que Hirdaelin tirasse a própria vida com um simples comando.

– Você é meu, velho, e seus segredos também! – uma voz surgiu atrás de Calligan. Não era um som que ecoava dentro de sua mente, mas uma cruel voz de mulher.

Ao se virar, ele viu a silhueta de uma mulher envolta em longas vestes negras onde apenas suas mãos e o rosto muito pálidos eram visíveis, com olhos grandes e escuros sobre o patriarca, onipresentes.

– N’jarin... – a voz de Calligan saiu em um tênue sussurro, para logo se intensificar com a raiva que sentia – Seu último erro foi sair das sombras, bruxa. Volte para elas!

Ele estendeu as mãos na direção da mulher, como se lhe lançasse algo, com uma maldição a escapar-lhe com fúria dos lábios. Ela teve apenas tempo de erguer os braços para tentar proteger o rosto quando uma densa nuvem negra a envolveu, como uma selvagem besta faminta, adentrando pelas fendas em suas roupas e por cada orifício de seu corpo, dissolvendo tecido, pele, carne e ossos, devorando vorazmente a luz, os gritos e alma da mulher. Em um instante, não havia mais nada que indicasse sua presença ali, apenas uma indefinida sombra de seu contorno na parede oposta do quarto, cuja luz de suas velas retornou timidamente, como se tivessem medo de ocupar o lugar da escuridão que desvanecia.

Calligan apoiou-se em uma cadeira próxima, exausto. Suas mãos tremiam e a cabeça latejava, o coração ainda batendo descompassado em seu peito. Queria acreditar que vencera, mas sua experiência lhe dizia que não. A risada muito próxima ao seu lado apenas confirmou seus temores.

– Velho tolo! – N’jarin olhava para ele com infinita malícia no olhar – Não pode me vencer. Seu deus não está com você esta noite.

Calligan se virou e amaldiçoou a mulher uma vez mais, antes que ela pudesse se mover. Uma silenciosa escuridão ainda mais densa a envolveu e a janela que ficava para além dela explodiu com o impacto de uma força que não poderia ser contida, em meio a uma chuva de pedra, vidro e madeira, permitindo que a gélida mordida do ar da noite invadisse o quarto, apagando as poucas velas que ainda resistiam acesas.

O patriarca caiu de joelhos em meio à escuridão, sentindo o ar lhe faltar. O suor ardia em seus olhos, apesar do frio que o fazia tremer.

– Urm... me ajude... – queria gritar, mas não tinha mais forças.

– Ele não pode – a voz era agora um sussurro tão próximo de seu ouvido que Calligan quase podia sentir o hálito de N’jarin – Seu deus e o Outro já ousaram enfrentar minha senhora antes e não puderam vencê-la.

Sutilmente Calligan pegou a pequena faca que carregava escondida sob uma faixa em sua cintura e tentou agarrar a fugaz imagem da mulher, mas não havia ninguém ao seu lado, apunhalando apenas o frio ar que o cercava. Estava sozinho em seus aposentos

– Velho tolo – a risada era agora leve, quase divertida, cercando-o – Eu estou dentro de você.

Os olhos do patriarca se arregalaram. “A água de Hirdaelin!”, pensou, mas era tarde demais para ele. Desde cedo fora ensinado a abençoar e purificar toda comida e bebida antes de suas refeições, tornando isto um hábito quase inconsciente para ele, mas estava muito cansado e entre amigos quando tomou o odre do comandante.

A dor começou não em seu estômago, mas cortou lancinante por sua mente, terminando por derrubá-lo no chão. As mãos trêmulas agarravam-se à cabeça, como se tentassem arrancá-la, enquanto o corpo se contorcia sem controle. Sentia N’jarin dentro dele, procurando, vislumbrando seus pensamentos, mas não havia nada que pudesse fazer. Calligan comandava um enorme poder, pela graça de Urm. Podia fazer o coração de um grande cavaleiro deixar de bater em seu peito com um único toque, transformar a carne em pó, curar aquele que se encontrasse às portas da morte e neutralizar toda sorte de veneno ou maldição, mas não podia voltar as bênçãos para si mesmo. Queria pôr fim à própria vida antes que a bruxa o tomasse em sua vontade, mas não tinha este poder. Podia apenas tentar resistir com todas suas forças.

– Você é forte, velho, mais forte do que esperava, mas nenhum homem pode resistir à vontade de minha senhora!

Os pensamentos de Calligan começavam a se abrir para ela, apesar do esforço que fazia para escondê-los. As três noites insones e as poderosas invocações cobravam pesadamente seu preço, fazendo-o clamar pela piedade de Urm com o pranto a preencher seus olhos.

N’jarin viu os segredos da Ordem se revelarem através da densa névoa da mente de Calligan. Os acordos secretos com os emissários de outros reinos, planejando o deslocamento dos grandes exércitos de Nyothar para matá-los de fome quando os carregamentos de grãos não chegassem a eles. Viu o treinamento oculto dos soldados de Graeldar, já contando com três mil homens leais em suas fileiras, disfarçados entre o povo de Caendlia, enquanto muitos mais eram preparados em segredo.

Calligan enfiava as unhas no próprio rosto, dilacerando sua carne e olhos, tentando cegar N’jarin dentro dele, mas não conseguia detê-la. “Mais, mais!”, ele a ouvia comandar, se aprofundando cada vez mais em sua mente.

Ela ouviu os antigos Mestres planejando o envenenamento de Rei Belenur quando decidiram que Mavlish estava pronto para assumir o trono e seu ódio por Jaendor e Valacar. Ela soube dos esforços de Calligan, usando de toda sua influência junto à Ordem para que Ardlan fosse afastado, retirando de seu caminho o último empecilho para sua nomeação como patriarca de Urm.

Calligan encolheu o corpo no chão, segurando as mãos firmemente sobre os ouvidos. Seu rosto estava pegajoso com o sangue que corria em finas linhas por ele, trazendo um sabor acre de ferro aos lábios. Não via ou ouvia mais nada, apenas sentia dor, medo e frio. E a cruel presença dentro dele, rasgando-o, possuindo-o.

– Por que ainda resiste velho? O que tenta esconder que lhe é tão precioso? – N’jarin destilava cada palavra, saboreando o momento. Nunca havia encontrado tanta resistência, tanta vontade a ser vencida, e isto a excitava. Havia medo e prazer na conquista, na tomada do que não lhe pertencia. Não fosse a fraqueza do patriarca, tinha a certeza de que não conseguiria subjugá-lo.

De repente o corpo de Calligan se aquietou, finalmente vencido. O quarto foi novamente encoberto por um frio silêncio quando dois grandes olhos se abriram subitamente em um cômodo ao lado. O suor escorria abundante pela testa da mulher, entre finas veias saltadas. Sua respiração estava ofegante e a cabeça latejava e doía, mas N’jarin quase não a sentia, tinha apenas um pensamento em sua mente.

– O mensageiro está vivo...


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