O Caminho de Sandren - Livro 2 (Descaminho) escrita por Aviatorman


Capítulo 4
Inquieta calmaria




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15

            A cidade continuava a verter sangue de suas feridas, sem esmorecer ou morrer. Os portões estavam fechados, metal e madeira apodrecidos pela corrupção que a tudo tomava, mas o viajante continuava a se aproximar, atraído como um inseto noturno pela luz invisível da cidade. Não queria estar ali, mas precisava. Era sua missão. As sentinelas o atravessaram novamente com olhos inumanos, mas havia algo diferente desta vez. Ao olhar em volta, viu que não estava só. Cinco vultos seguiam com ele, diferentes entre si, altos e baixos, esguios e fortes. Não deviam estar ali, era sua a missão e apenas sua. Queria mandar que voltassem, que a morte os aguardava, mas não tinha voz e eles não tinham medo, protegidos pela ignorância do que aconteceria. Mas ele sabia.

            A corneta infernal gritou uma nota estridente, seu hálito ardente queimando o rosto dos que se aproximavam. As chamas sobre as muradas se intensificaram e arcos foram retesados. Em breve o céu tomado por fumaça e cinzas se tornaria ainda mais negro por trás das incontáveis flechas, mas uma ordem foi dada, espalhando-se como uma onda sobre os muros da cidade morta, e as armas foram abaixadas. Um pesado silêncio se instalou, mas não era a quietude da paz, apenas a intranquilidade da espera.

O som de um único arco disparando se ouviu, onipresente, seguido por um silvo agudo e pelo baque seco do impacto. Uma das sombras ao seu lado caiu, uma haste de madeira azulada firmemente encaixada em sua fronte, onde os olhos deveriam estar. Uma fina fumaça escura marcou momentaneamente o ar, por onde a flecha voara, desvanecendo-se em seguida. Antes que seu sombrio companheiro tocasse sem vida o chão, outro disparo, outro silvo e outra sombra o seguiram. A mórbida sinfonia se repetiu três vezes mais, deixando-o sozinho como deveria estar desde o começo.

Queria gritar, chorar e fechar os olhos, mas a vontade não era sua. Viu o arqueiro surgir entre as sentinelas, ovacionado por elas e saboreando o momento. Elas gritavam um nome, mas os ouvidos do viajante estavam surdos de medo. O arqueiro tinha a pele abrasada por um sol que nunca se mostrava, com os longos cabelos caindo-lhe pelos ombros como um capuz de ébano, mas não era possível ver suas feições, apenas uma névoa dançante a cobrir-lhe o rosto. O arco que carregava era enorme, belo e atemorizante, feito de uma clara madeira entalhada com sombrios desenhos de uma era esquecida. Quando foi novamente retesado, a fina névoa escura pareceu brotar da flecha apontada para ele, sinistra e fantasmagórica. Uma gélida voz lhe sussurrou em uma estranha língua que nunca ouvira, mas que lhe tocou dolorosamente o coração. “Sua alma é minha”. Não era o arqueiro que lhe falava, mas seu arco! Começou a sentir frio, um frio que nunca sentira, nem quando morrera.

O borrão azulado voou, atingindo-lhe entre os olhos que não deixaram de ver. O frio se intensificou quando a névoa passou da flecha para ele, tomando seu corpo. As pernas dobraram e ele caiu, olhando fixamente para um céu obscurecido por trás da longa haste.

“Sua alma é minha!”

O frio era absoluto, mas a dor não vinha do rosto perfurado ou das costas esmagadas contra o chão, mas de seu peito. A respiração lhe doía e cada batida do coração era torturante, mas não deveria haver dor, já estava morto. Não encontraria alento para o sofrimento nem mesmo na morte? Onde estava o equilíbrio que tanto buscara em vida? Sentiu uma lágrima escorrer lentamente pelo lado da face e preencher seu ouvido.

Os olhos finalmente se fecharam e tudo escureceu, porém a morte não veio.  O frio e o medo se foram, mas a dor ainda tocava-lhe o peito. Tentou se mover, mas seu corpo continuava adormecido, apenas sua mente despertara do vívido pesadelo. Sentiu o grosso tecido do rústico lençol que o cobria como se fosse uma mortalha com as costas da mão, assim como uma cama de palha seca sob as costas. Estava deitado, com o rosto descoberto e o tronco justamente enfaixado. Ouviu uma indistinta voz de homem e outra a lhe responder com um curioso sotaque, mas não conseguiu compreender o que falavam. Também ouvia o som de animais próximos e seu cheiro. A boca tinha um gosto estranho, algo entre a madeira e o carvão e a garganta ardia.

- Pode abrir os olhos se puder – uma conhecida voz lhe falou – estamos sozinhos agora.

Quando o fez, apenas um grande clarão o recebeu. Piscou seguidamente, tentando levantar as mãos para proteger os olhos, mas elas não o obedeceram, erguendo-se timidamente da palha. Vultos sem forma surgiram em meio à luz e aos poucos tomaram a aparência de um teto de palha forrada, divisórias, colunas e paredes de madeira, com uma larga entrada e um pequeno portão suspenso. O canto de um pequeno estábulo surgiu diante dos olhos, onde estava deitado rente ao chão em uma cama de palha sem estrado. Ao seu lado, sentado em um pequeno banco de ordenha, estava Ohel.

Uligan quase sorriu, sentindo os lábios secos e rachados arderem quando tentou dobrá-los. Tentou falar, mas a garganta dolorida lhe trouxe uma brusca tosse que lhe doía terrivelmente o peito.

- Não tente falar ainda – Ohel levou uma pequena concha de madeira aos lábios de seu amigo, de onde ele bebeu sofregamente, devolvendo o líquido em uma tosse engasgada, quase se afogando – Sei que tem sede, mas beba devagar.

Um pequeno gole foi tudo que conseguiu beber, sentindo a garganta arranhar com as poucas gotas sorvidas. Se aquele líquido tinha algum sabor, não conseguiu senti-lo. Sua língua estava queimada, grossa e áspera, parecendo-lhe não caber na boca.

- Muitas coisas aconteceram e tenho certeza que tem perguntas, mas por enquanto deve apenas escutar, se estiver se sentindo disposto.

Um tímido aceno afirmativo foi toda resposta que conseguiu dar. Ohel então lhe contou o que acontecera, sobre a emboscada dos ladrões e a aparição de Brans, sobre como Uligan se defendera, ao que ele tinha apenas uma vaga lembrança, a reação de Midler e o abrigo na montanha encontrado por Zartan, mas, principalmente sobre a decisão do discípulo em salvar a vida do diplomata ao risco das outras, apesar do que ele acreditava que Uligan fizera a Shirian e independente do juramento feito.

- E nossas vidas realmente estiveram em risco, meu amigo, mas não por algum perigo externo – ele fez uma pequena pausa para beber, colhendo com a mão em concha a água de um simples balde ao seu lado. Quando voltou a falar, sua voz estava mais fechada.

Narrou o ataque de Bharin sem nenhuma provocação na câmara de pedra e de como o discípulo resistiu bravamente, mas o anão parecia não poder ser derrotado, mesmo com apenas um braço e embriagado como estava. A pequena ladra tentou ajudar Midler, mas um violento golpe com a chapa do machado de Bharin a deixou desacordada, com metade do rosto ainda coberto por hematomas. Ohel não podia afirmar, mas teve a impressão que o anão lutava com lágrimas a lhe escorrerem pelos bigodes desgrenhados. Quando o destino deles parecia selado, um forte rangido ecoou vindo das sombras e um apequenado anão surgiu. Estava dobrado e com o corpo coberto por neve e gelo, apesar de não haver se ausentado das cavernas onde estavam, os pequenos olhos azul-pálidos piscando à luz do fogo. Todos se detiveram perante aquela figura, observando seu hálito se transformar em névoa, apesar do convidativo calor da câmara. Ohel não reconhecera Zartan em um primeiro momento, apenas quando, ao se voltar para Bharin, seu olhar se avivou e ele retesou o corpo, esquecendo-se do frio e da dor que sentia. O gelo caiu dos ombros com suas decididas passadas, a raiva e a intensidade em sua voz aumentando conforme se aproximava de Bharin, até estarem com os rostos a menos de um palmo um do outro, gritando como se eles estivessem separados por várias centenas de metros. Bharin tentou retrucar alguma coisa e Zartan atingiu seu rosto com o punho fechado, partindo os seus lábios em uma explosão de sangue, fazendo-o recuar um passo para recuperar o equilíbrio. Quando ergueu o grande machado para revidar, com os olhos cheios de raiva incontida, Bharin encontrou apenas as costas de Zartan a se afastarem, em direção aos outros.

- O rosto do anão se desfez como a neve da manhã sob os primeiros raios do sol – Ohel continuou – Confesso que quase senti pena de Bharin quando olhou para o chão, sem qualquer sinal de raiva, certeza ou orgulho. Havia algo que nunca imaginei que veria nos olhos de um anão. Eu vi medo...

Uligan fitava o teto enquanto tentava desenhar em sua mente as cenas que lhe eram descritas. Muito havia realmente se passado desde que perdera os sentidos na Garganta e novas verdades e alianças haviam surgido, assim como outras pareciam ter sido destruídas. Ele estava ciente que deveria ponderar com cuidado sobre elas para saber como agir, mas seu interesse pelo desenrolar dos acontecimentos sobrepujava perigosamente seu instinto de diplomata. Acenou com a cabeça, para que seu amigo continuasse.

- Zartan abriu com dificuldade a mão direita, onde uma pequena pedra de gelo azulado repousava, e a atirou no fogo, quase apagando-o. Luz e calor pareceram desaparecer da câmara quando as grandes chamas lutaram para não morrer. Apesar da visível fraqueza que o abatia, Zartan não se permitiu descansar, distribuiu ordens rapidamente sem espaço para ser contestado.  Mandou que eu retirasse as mantas que o envolviam enquanto Midler devia colocar a menina deitada sobre elas, o mais confortavelmente possível e ajoelhar-se ao seu lado. Ele colocou a mão no fogo e retirou de lá uma pequena semente, cuja casca parecia mal ter sido tocada pelo fogo. Posso jurar que as chamas agradeceram aliviadas quando se viram livres dela. Ela parecia congelar o ar a sua volta em uma suave névoa, tingindo de branco a pedra onde o anão a colocou. Dias depois, consegui arrancar do anão o nome pelo qual eles a chamam, rëaghardük, a flor-dragão. Parece-me que suas raízes podem penetrar na rocha sólida e roubar todo o calor da própria montanha, guardando-o dentro de suas pequenas sementes. Imagino se elas poderiam... – Ohel olhava para a palha acima, mas sua mente vagava por lugares e tempos ainda distantes, até que pareceu despertar, voltando-se para Uligan – Desculpe, irmão. Falamos do passado, não do futuro. Como lhe dizia, com a ponta de sua adaga, Zartan a abriu, ao que a lâmina se congelou quase imediatamente em tons de branco e azul. Estou convencido que se ela houvesse sido forjada pelas mãos dos ferreiros que conhecemos, teria se partido ao menor esforço. Dentro da grossa casca, o núcleo da semente se revelou em poucas gotas de um líquido viscoso como um espesso vinho, a dançar em tons de um rubro vivo como fogo.

Um sorriso sem vontade marcou o rosto de Ohel por um momento e seu olhar se desviou como se estivesse envergonhado, sem saber ao certo o que sentia.

- Ele então mandou que nós lhe segurássemos, Uligan. Quando disse para deixá-lo em paz porque já estava morto, ele apenas respondeu que era melhor assim, ou você não resistiria se estivesse vivo – Uligan ficou surpreso ao descobrir que era assim que Ohel reagia quando acreditava que havia errado, algo que o diplomata nunca vira antes – Zartan despejou cuidadosamente o líquido em sua boca inerte e sem vida. Após um silencioso instante em que tenho de dizer que não ousei ter esperanças, ele esmurrou seu peito com força duas vezes, fazendo todo seu corpo tremer. Quando gritei para que parasse, ele esmurrou-lhe uma vez mais, com o som de algumas costelas a se partirem. De repente seus olhos se abriram como se estivesse em desespero, tomados por uma vermelhidão que nunca vi. Seu corpo começou a convulsionar violentamente e foram necessários os três de nós para segurá-lo, enquanto gritava como se algum demônio o devorasse por dentro. Quando finalmente se acalmou, seu coração quase não batia e a respiração estava fraca e irregular – Ohel bateu levemente a mão sobre a de Uligan – mas estava de volta ao mundo dos vivos. Mais uma morte e poderemos chamá-lo de Whurdan.

Ohel sorriu sem reservas agora, contagiando Uligan por um momento. Três-Vezes-Morto Whurdan era uma difundida lenda infantil que as mães de vários reinos usavam para assustar os filhos. Contava a estória de um homem que morrera três vezes. Primeiro mataram seu coração, depois seu espírito e por último seu corpo, mas, mesmo assim, ele se recusou a sucumbir, vagando eternamente em busca de vingança contra seus assassinos e atrás de crianças desobedientes, segundo a versão mais conhecida nos lares de Andhara.

- Como... – a tosse ameaçou voltar e encobrir o enfraquecido sussurro rouco de Uligan, mas ele conseguiu controlá-la – Como... saímos?

- Zartan passou algum tempo estudando estranhas gravuras em uma parede do outro lado do fosso. Sei que era um mapa, mas seu olhar deixou claro que nenhum de nós deveria se aproximar se queríamos continuar vivos. Ele nos guiou por passagens estreitas e escuras e por outras tão largas que o eco de nossos passos não podia ser ouvido, apenas nos detendo quando e como nos era ordenado, sem nunca acender qualquer fogo. Racionamos a pouca carne do lobo e bebemos a água que brotava de cuidadosos entalhes em colunas de rocha sólida, como nascentes de rio. Eu e Midler o carregamos em uma liteira improvisada com lanças e lonas que o anão nos entregou. Aquela era uma antiga morada de seu povo, não tenho dúvidas, mas havia sido há muito abandonada ou perdida e Zartan não respondeu nenhuma das perguntas que lhe fiz, deixando claro que não devia mais fazê-las. Dormimos três vezes dentro da montanha, sem ver o sol ou as estrelas, sem saber se era dia ou noite, sempre descendo, por vezes de forma abrupta, até emergirmos sob um escuro céu noturno, abaixo das neves e por entre árvores de folhas douradas, em uma encosta mais suave da montanha. Após alguns metros de descida, olhei para trás e a abertura por onde saímos havia se escondido dos olhos, como se nunca existira. Acredito que nenhum homem ignorante aos seus segredos poderia encontrá-la novamente. Quando chegamos à planície abaixo, o sol começava a se erguer e vimos uma fina linha de fumaça, que descobrirmos após poucas horas de caminhada que saía da casa de um camponês chamado Mesrian e de sua família. É no pequeno estábulo dele que repousa por dois dias agora. Não é uma acomodação com a qual esteja acostumado, mas é asseado e mais confortável do que o espaço onde os outros estão dormindo.

- Onde... – Uligan tentou erguer o tronco quando sentiu os braços mais firmes, mas as costelas partidas fizeram-no desistir, soltando um gemido de dor.

- Ainda vai doer por muito tempo, meu amigo, mas ainda assim deve ser grato. Não poderá viajar por alguns dias, assim como acredito que estamos há muitos outros de encontrarmos uma cidade que comporte um templo com uma sala de cura adequada. Por falar nisso, se insistir em procurá-la, lembre-se que deste lado das montanhas Urm é mais conhecido como Urain.

Thimeran! Uligan se permitiu um momento de alegria, suspirando aliviado, Haviam conseguido cruzar a Garganta afinal. Parecia-lhe que os deuses estavam finalmente sorrindo para eles, tanto Urm quanto o deus dos Paladinos, Baltur, e qualquer que fosse a divindade que os anões acreditassem. O primeiro obstáculo estava vencido e, pela primeira vez desde que deixara Caendlia, sentiu que a urgência de sua missão poderia esperar.

- Os outros têm ajudado Mesrian nos afazeres diários, cortando e carregando lenha e o que conseguem tirar do solo, como forma de pagar pela comida e abrigo. A família dele é grande, então o desconforto causado por nossa fome é pequeno. Seus filhos mais velhos, Aghord e Adharn, são fortes como touros e hábeis caçadores, mas não são guerreiros. Apesar de nossa ajuda, Mesrian claramente receou nossa presença quando chegamos, mesmo feridos e enfraquecidos, mas quando soube que Midler é um discípulo de Sandren, pareceu apaziguar seus temores, apesar de manter sempre um olhar cauteloso sobre os anões. Acredito que ele ficará muito feliz com a partida deles. E com a nossa.

Mais uma dívida que tinha para com o discípulo. Uligan concordou com um aceno de cabeça, fechando os olhos. Sentia uma tranquilidade que acreditava haver lhe abandonado nas últimas semanas, mas o som de um combate próximo o deixou receoso.

- Não se preocupe, devem ser Zartan e Midler treinando. As mãos extras têm proporcionado algum tempo livre dos afazeres e o mestre anão insiste que o discípulo use-o para este fim. Mesmo os filhos de Mesrian têm treinado com ele, mas, sabiamente, nunca contra os anões – Ohel levantou-se – Deve descansar agora, irmão. Não direi ainda aos outros que despertou.

- Pelo contrário... – a voz de Uligan ainda era pouco mais que um sussurro, mas estava mais firme, apesar de falhar por vezes – Quero falar... com Midler.

Ohel hesitou por um momento, mas assentiu. Apesar de não concordar com a urgência de Uligan, acreditava assim como ele que outras feridas deveriam ser sanadas antes dos ossos do diplomata.

- Tente beber algo. Goles pequenos, ou colocará para fora o pouco que conseguir ingerir.

Ohel retirou-se do estábulo para um claro fim de tarde dos estertores do outono aos pés das Montanhas do Gigante, sentindo o duro vento que o fez enrolar-se na gasta capa de peles que pendurara ao entrar. Poderia afastar facilmente o frio que arrepiava sua pele com os segredos que Yezmerin o ensinara, mas este era diferente daquele que encontrara sobre a montanha, que o desafiou e o ameaçou com morte e desespero. Este frio o fazia sentir-se vivo, alerta aos pequenos detalhes e sensações da vida. Por um momento sentiu-se farto de mistérios e manipulações, feliz apenas por estar vivo. Um largo sorriso marcou lábios desacostumados a ele. Questionou-se se era assim que se sentiam os homens sem amarras, dívidas e segredos. Se fosse, invejou-os por isto.

- Não pergunte, não questione, herdeiro de Djyandris. Pelo menos uma vez, aceite o bálsamo da ignorância e aproveite o que lhe foi dado – ninguém que o conhecesse acreditaria que era sua a voz que o repreendia, mas ele também não se importava, pelo menos não neste dia.

Encontrou Zartan e Midler treinando, como imaginava. Para sua grata surpresa, o discípulo ainda estava de pé, segurando o longo cabo de uma ferramenta de camponês como se fosse sua espada. O anão estava desarmado, mesmo assim Midler se mostrava cauteloso, uma dura lição aprendida rapidamente.

Logo antes do sol se pôr no dia anterior, quando as tarefas haviam terminado, Zartan disse para Midler acompanhá-lo até onde Mesrian guardava as ferramentas, escolhendo uma cujo cabo tivesse o tamanho e o balanço aproximados de uma espada, entregando-a ao discípulo.

- Esta será sua arma – o anão atou ao braço a tampa arredondada de um grande barril na qual já havia trabalhado mais cedo – Deve tentar me acertar com toda força que puder. Se conseguir me atingir, eu merecerei os ferimentos – não havia qualquer alegria na voz ou nos olhos do anão.

            O primeiro golpe hesitante de Midler foi facilmente bloqueado e respondido com um duro soco em seu abdômen, derrubando o atônito discípulo.

            - Achei... Achei que estávamos treinando... – Midler sentiu o estômago revirar-se e o tardio almoço querer galgar por sua garganta, procurando liberdade.

- Seus adversários não irão treinar com você, discípulo! Annar dur kharak-en, kharak dur annari! Treine como irá lutar, lute como treinou, ou eu poderei matá-lo antes que outros o façam.

            Midler lembrou-se de Tallamir, enquanto respirava fundo, esforçando-se para ficar de pé. O anão compartilhava da mesma nobreza e fúria do gigante, mas não era o ferreiro. E não era Oderen. Zartan era um guerreiro muito mais experiente, veterano de inúmeras batalhas, não seria ludibriado facilmente e nem merecia sê-lo. O anão se colocara como seu instrutor, a rigidez era sua ferramenta e a dor seria sua recompensa. E o discípulo aceitara a todos quando aceitou Zartan.

            Mas isto fora ontem, entre ferimentos, escoriações e hematomas a marcarem a pele de Midler como lembranças das duras lições, mas, pela maneira que Zartan suava, elas haviam sido aprendidas. Uma pequena platéia os observava, em uma crescente e silenciosa tensão. A pequena Brans tinha as mãos sobre os olhos, mas os dedos espaçados não a impediam de continuar assistindo aos esforços do discípulo. Ao seu lado Aghord e Adharn empunhavam mudos compridos bastões de combate, como duas estátuas gêmeas, fazendo Ohel se questionar se haviam se esquecido de respirar. Mesrian, a esposa e três filhas mais novas observavam de mais longe, sob o humilde beiral da varanda da casa principal. As meninas pareciam maravilhadas, como se assistissem a algum torneio em um distante castelo que nunca veriam. A mulher mais velha estava assustada, mas o senhor daquela casa tinha um olhar diferente, algo entre o respeito e a saudade, que deixou Ohel ainda mais curioso, mas não era este o momento para questionamentos. Decidiu aguardar com os outros o fim do treinamento.

O combate continuou por alguns minutos, sem uma clara vantagem de nenhum dos dois, apesar de Zartan continuar desarmado. Após uma rápida sequência de golpes, tentando aproveitar uma abertura na defesa do anão, o discípulo se desequilibrou com um empurrão do escudo e tombou uma vez mais, batendo um dos joelhos no chão. Amaldiçoou-se por ceder à estratégia do anão, fazendo-o acreditar que estava em vantagem. Ergueu a mão esquerda para proteger o rosto, aguardando o merecido golpe de Zartan, mas nada aconteceu. Quando abriu os olhos, encontrou a mão estendida do anão para ajudá-lo a se levantar, com um tímido sorriso a marcar seu rosto, tão frágil e oportuno quanto uma tênue chama em uma fria noite de inverno.

- Encerramos por hoje, Midler – o anão apertou com força sua mão, não apenas como um apoio para que ele se erguesse, mas em um cumprimento de um guerreiro a outro – Saiu-se bem, discípulo.

Midler agradeceu com um firme aceno de cabeça, retesando o corpo doído. Inspirou profundamente, sentindo os pulmões arderem com o esforço. Os irmãos batiam com os bastões no chão, saudando-o, e Brans lhe sorria aliviada, a metade esquerda de seu rosto ainda inchada e escura pelo hematoma. O olhar do discípulo se voltou então quase inconsciente por cima de Zartan, onde, há uma dezena de metros, viu Bharin sentado sobre o que sobrara de uma árvore há muito cortada. Mantinha os olhos voltados para os sulcos que antigas raízes marcaram na terra, não demonstrando qualquer interesse no que os outros faziam, o braço esquerdo pendendo inerte, enfaixado em sujas ataduras. Desde que lutaram na câmara de pedra, o anão não havia falado mais nada, mesmo para Zartan. Em verdade, o nobre anão também o evitara desde então, mas Midler já o vira olhando para Bharin quando este não se apercebia, algumas vezes com raiva, mas tantas outras apenas com uma profunda tristeza.

“Use o medo, o seu e de seu inimigo, fortaleça-se com sua raiva e com a dele” – as palavras de Zartan durante o treinamento ressoavam em sua mente. Acreditava que o anão era o melhor mestre-de-armas que poderia encontrar em todos os reinos, mas Zartan era um nobre guerreiro e sempre lutaria de maneira honrada, diferente daqueles que teria de enfrentar quando se tornasse um Paladino. Havia lições que ele não poderia ensiná-lo. Respirou fundo, tentando não dar ouvidos ao medo e a prudência que gritavam dentro dele.

- Bharin! – todos se calaram, como se o discípulo houvesse dito uma maldição. O anão apenas ergueu os olhos sob as grossas sobrancelhas desgrenhadas. Midler ergueu a haste em direção ao anão, em desafio, tentando repetir a expressão que Zartan dissera na língua dos anões, ciente que a pronunciava de forma tosca, mas que Bharin a entenderia.

Zartan pensou em demover Midler de seu intento, mas não poderia contestar suas escolhas, se realmente o considerava um guerreiro capaz, mesmo que não concordasse com elas. Manteve-se em silêncio, mas com um atento olhar sobre os dois. Brans prendeu a respiração, assim como os gêmeos também o fizeram, quando Bharin se ergueu displicentemente, caminhando desarmado na direção do discípulo.

Parou a um passo de Midler, aguardando. Zartan arremessou-lhe o escudo, que caiu aos pés do anão. Bharin olhou para o braço quebrado e então para a proteção improvisada no chão, sem qualquer interesse, afastando-a com um chute. Sem tomar posição, fez um sinal para o discípulo, indicando que estava pronto.

Normalmente Midler hesitaria em atacar um adversário desarmado, desprotegido e aparentemente desatento, mas Zartan lhe ensinara que não havia indulgência a ser encontrada ao se treinar com anões. E este era Bharin, o menos indulgente de todos. “Treine como irá lutar, lute como treinou”, foi esta a dolorida lição que aprendeu com o mestre anão. Suas dúvidas desapareceram quando as lembranças da câmara de pedra voltaram a sua mente.

Sem aviso, Midler atacou, procurando acertar o rosto do anão, assim como ele atingira Brans, mas Bharin simplesmente girou o corpo e agarrou o bastão com a mão direita, arrancando-o do discípulo, que levou um segundo para entender o que havia acontecido. Neste momento, Bharin atingiu-lhe o peito com o bastão, fazendo-o dobrar-se em dor. Então uma forte pancada nas costas terminou por derrubá-lo sobre os joelhos. Midler tentou proteger a cabeça, mas seus braços não responderam, abraçados contra o peito. Também não conseguia ver nada, aturdido com os golpes, ouvindo o distante grito apavorado de Brans, quando outro som mais próximo, de madeira batendo contra o chão, lhe chamou a atenção. Viu em um borrão a haste com que Bharin o atingira caída em frente aos joelhos, com uma extensa rachadura marcando todo seu comprimento. Ao erguer os olhos, o anão já havia se virado e retornava para onde estivera, sem dizer uma palavra.

Respirar doía, mas a raiva que sentia lhe doía mais. Quase não percebeu quando Brans e Zartan se colocaram ao seu lado, ajudando-o a se levantar.

- Isto não foi justo! – Brans falava rapidamente, alto o suficiente para que Bharin também a ouvisse – Ele não pode pegar uma espada assim, pela lâmina! Se fosse um combate de verdade, ele teria perdido os dedos!

- Não - Midler esforçava-se para falar, o ar chegando com dificuldade ao peito – Se este fosse um combate de verdade, eu estaria morto!

- Tem razão, Midler, mas mesmo assim não foi correto o que ele fez – Zartan olhava com severidade para o outro anão, que continuava alheio a todos.

- Eu que errei em não reagir quando ele me surpreendeu, mas não mais – o discípulo pegou a haste rachada e caminhou em firmes passadas em direção a Bharin, sentindo o ódio o consumir. Ódio pelo anão e por si mesmo.

- Midler! – Zartan tentou segurar seu braço para detê-lo, mas o discípulo foi mais rápido que ele, não deixando ao anão outra opção senão tentar acompanhar suas largas passadas.

Bharin apenas ergueu os olhos, vendo Midler se aproximar ameaçadoramente, sem se mostrar preocupado. Quando o discípulo estava a um metro dele, o anão ergueu-se e bateu o punho direito fechado sobre o próprio peito, como era a saudação dos guerreiros de seu povo.

- Annar dur kharak-en!

Midler deteve-se ao ouvir aquilo, como se houvesse sido esbofeteado pelo anão. Seus olhos se avivaram e sua raiva pareceu sumir, imediatamente substituída por algo que não compreendeu inicialmente. Fora ele que lançara o desafio, para que Bharin treinasse com ele da mesma maneira que lutava, de forma suja e desonesta, pois fora isto que o discípulo buscara. E ele se deteve quando a dura lição acabou, sem que ninguém precisasse domá-lo. Olhou para o anão como se o visse pela primeira vez, pasmo com a atitude dele e quase envergonhado pela sua. O anão o havia surpreendido novamente e mais uma vez ele não soube como reagir. Um estranho sorriso se formou no rosto de Bharin, sem sua contumaz fúria ou desdém.

Ohel se aproximou, perturbando a inusitada atmosfera antes que esta se tornasse demasiadamente embaraçosa para os dois guerreiros.

- Se já saciou sua vontade de atentar contra a própria vida, Midler, talvez gostasse de saber que Uligan despertou e gostaria de lhe falar, se sua urgência de que tenhamos outro osso quebrado não for maior – a voz jocosa de Ohel deixava clara sua zombaria, mas em nada pareceu desanuviar o espírito do discípulo. Em verdade, a notícia pareceu tornar seu semblante ainda mais sombrio.

Com uma forte expiração, jogou a haste no chão e seguiu para o estábulo, sem nada dizer. Ohel e Brans o acompanharam com o olhar, mas Zartan continuava voltado para Bharin, que se sentou novamente, mantendo o mesmo sorriso nos lábios. O nobre anão não concordava com os métodos de seu amigo, mas, assim como o discípulo, também fora surpreendido por ele. Não sabia ao certo o que pensar, mas, por precaução, não se permitiu entusiasmar ou esperar pelo melhor.

Midler passou entre os atônitos filhos de Mesrian, mais velhos, maiores e mais fortes do que ele, mas estes sempre o tratavam com o respeito devido a um cavaleiro por ordem do pai, o que costumava deixar o discípulo pouco à vontade.

            - Achei que os anões eram seus amigos, meu senhor – a voz de Aghord demonstrava sua preocupação, assim como o constante balançar afirmativo de Adharn às palavras do irmão.

            - São os mais sinceros deste grupo, meus amigos, e em quem eu mais confio – a voz séria do discípulo não deixava margem para ser interpretada como uma brincadeira.

Ele deixou os gêmeos se entreolhando com olhos arregalados, incertos do que fazer. Quando se voltaram para Zartan e ele apenas cruzou os braços, olhando-os firmemente, largaram rapidamente os bastões que carregavam e voltaram para a casa do pai.

Ao entrar no pequeno estábulo, Midler viu Uligan deitado sobre a simples cama de palha, parecendo dormir tranquilamente com as mãos repousando sobre o peito, em volta de um pequeno copo de madeira. Pensou em acordá-lo, mas a lembrança dos duros golpes com os quais Zartan o trouxera de volta fez com que o discípulo quase sentisse pena dele. Quase, mas a lembrança de Shirian sempre se sobrepunha às outras. Ele esforçara-se nos últimos dias para não julgá-lo, mas o fantasma da ladra não o permitia, sussurrando em seu ouvido sempre que o nome dele era falado, lembrando-lhe do que queria esquecer. E o que mais Midler buscava, quando olhava com suspeita para Uligan? Queria respostas, mas em seu âmago também queria entender, queria acusá-lo, julgá-lo e sentenciá-lo, mas não eram seus o poder e a autoridade. Não era um Paladino e cada vez mais se questionava se algum dia o seria. No lugar da confiança, sentia dúvidas, no lugar da força, sentia-se fraco. E se o poder e a autoridade lhe pertencessem agora, teria o direito de julgá-lo?

- Entre, Midler – Uma débil voz rouca o tirou de seus pensamentos, mas não de sua inquietação.

- Não queria incomodá-lo – o discípulo se manteve cautelosamente sob a larga entrada.

- Como pode... me incomodar... se fui eu quem o chamou? – Uligan tentou novamente sorrir, mas o sorriso se mostrou tão débil e falho quanto sua voz. Com um leve movimento da mão, indicou o banco de ordenha ao lado da cama.

Midler aguardou por um momento, receoso de cair em algum ardil do diplomata, mas pensou em seu combate com Bharin e o quanto sua hesitação o custara. Não poderia fugir das batalhas que tinha de enfrentar se quisesse um dia se colocar diante dos Portões Dourados. Caminhou em direção a Uligan, prometendo não se deixar influenciar pelo seu estado ou pela frágil voz

- Não dormia – Uligan continuou assim que Midler se sentou. A voz soava frágil, sem qualquer entonação, soando perigosamente neutra aos ouvidos do discípulo, mas se esta era fruto da fraqueza ou das artimanhas do diplomata, ele não sabia – Já dormi por... por tempo demais. Estava orando... e agradecendo. Nunca o vi... em oração. Os discípulos... de Baltur não oram?

Um incômodo silêncio seguiu a pergunta de Uligan, enquanto Midler tentava adivinhar para qual caminho tortuoso o diplomata tentava conduzir a conversa. Não podia demonstrar fraqueza ou submissão. Receava que Uligan se aproveitasse delas para arrancar-lhe outro juramento e escravizá-lo em sua palavra novamente. Laertes lhe advertira sobre os diplomatas e sua enganosa arte. Mais uma vez, sentiu-se apequenado pela ausência do velho mentor.

- Chamou-me aqui para falar de fé? – Midler decidiu que não seria o diplomata a conduzir a conversa.

- Não – Uligan fora treinado por toda vida para este tipo de confronto, onde a confiança e a verdade mantinham-se sempre a uma distância segura para não serem feridas, mas se sentia cansado demais para batalhar com o discípulo. Ou seria outro sentimento que o fazia negligenciar os ensinamentos de seu avô? – Chamei-lhe aqui... para agradecer.

- Agradeça a Zartan, que deve ser o único que o ajudou sem estar preso a você! Ou também o ludibriou para acorrentá-lo a sua vontade? – Midler não conseguiu evitar o momento de raiva, mas se culpou imediatamente por ele. Não por crer que o diplomata não o merecesse, mas por acreditar que estava reagindo como ele queria.

Uligan tentou responder, mas uma crise de tosse engoliu suas palavras e o ar que respirava, deixando-o sem fôlego. A dor no peito contorceu seu rosto e fez todo o corpo tremer, mas Midler não se impressionou, assistindo impassível. Tinha de ser outro ardil. O discípulo acreditava que Uligan poderia curar seus ferimentos se quisesse ou ao menos abrandar a dor com pouco esforço. Vira suas bênçãos na Garganta, sabia do que era capaz. Quando a tosse cessou, o rosto do diplomata estava vermelho e sua respiração ofegante. Bebeu com dificuldade um pouco de água, enquanto Midler aguardava em silêncio.

- Irei agradecê-lo também... Acredito... – a respiração chiava quando deixava seu peito – Acredito que lhe devo...  desculpas, meu amigo.

- Você deve desculpas a Shirian – Midler tentou manter a voz tão neutra quanto a do diplomata. “E não sou seu amigo”, pensou, mas preferiu guardar estas palavras para si.

- A ladra? – Uligan piscou lentamente. Sentia o corpo fraco e cansado, mas seu espírito estava mais – Não me recordo bem... mas Ohel me contou... sobre ela... sobre o que fiz... Não me arrependo, Midler – fez uma pausa, para respirar, olhando fundo nos olhos do discípulo, vendo claramente que o julgamento já havia sido feito – Você não a mataria?

-Sim, assim com fiz com os outros – Midler escolhia com cuidado as palavras – mas nenhum fim pode justificar todo e qualquer meio para realizá-lo.

- Então eu deveria... ter morrido... É o que acredita? – Uligan continuou, não dando tempo de Midler responder – E a ladra... Shirian, seria então morta... por você. Esta é a nobre... justiça de Sandren?

Midler permaneceu em silêncio, pensativo. As palavras de Uligan carregavam mais do que as afrontas que inflamavam sua raiva. Também havia verdade a ser encontrada nelas. Lembrou-se das lições de Laertes na Cidade Baixa de Caendlia. “Por muitas vezes, a única diferença entre o certo e o errado está simplesmente na intenção de quem age e em respostas que somente a passagem dos anos dará”. Mas ele também dissera que nenhum Paladino concordaria, mas, ainda assim, aquela havia sido uma verdade para o velho mentor.

- O frio quase matou... dolorosamente a todos nós – Uligan viu a dúvida no olhar do discípulo. Apesar de verdadeiramente sentir-se em débito e de começar a nutrir uma afeição por Midler, tinha uma escolha a fazer. Queria a confiança dele, mas a continuidade de sua missão era sua prioridade – Você julga o frio?

- O frio não tem consciência, não pode escolher! – o discípulo agarrou-se a esta afirmação como se fosse seu último refúgio para não sucumbir ao jogo do diplomata, mesmo sabendo quão frágil ela era.

- Nós temos... e mesmo assim... não podemos escolher. – a dor cobrava alto seu preço, tornando cada palavra ainda mais difícil - Eu não posso... se quero ser sincero... com meu compromisso... Você verdadeiramente... pode escolher, Midler?

- Posso – o discípulo se recordou do ladrão que havia se rendido e da opção por salvar a vida de Uligan – Eu posso!

- Então eu o invejo – um suspiro chiado acompanhou as últimas palavras e outra pontada de dor atravessou seu peito – Talvez tenha razão... Mesmo acreditando... que agi corretamente... estou sendo... castigado por ousar... estar vivo.

- Sua penitência não é desígnio de nenhuma divindade e acredito que a prolonga por capricho seu! O deus que segue lhe concedeu o dom da cura, o mesmo dom que corrompeu!

Uligan olhou para Midler, encontrando raiva e descrença em seu olhar. Estava agora claro o motivo da resistência e da raiva do discípulo. Apesar de sua dor, sentiu ao mesmo tempo vontade de gargalhar e esmurrá-lo, se tivesse forças para isso, mas outro acesso de tosse foi tudo que conseguiu, aumentando ainda mais a raiva de Midler.

- Mesmo os clérigos... mais exaltados de Urm... não podem curar... a si mesmos... ou aplacar sua dor... Este é o nosso... equilíbrio – respirou longamente, tentando acalmar a respiração, vendo a sobrancelha de Midler se erguer e as linhas de seu rosto oscilarem – Os clérigos... de Baltur podem?

- Baltur não é um deus, mas um exemplo – as palavras lhe saíam quase sem forças, percebendo que estava perdendo terreno no jogo – Os clérigos de Sandren têm sua crença depositada em Ívatar.

- O deus da justiça – os clérigos de Urm também o respeitavam por acreditarem que representava fielmente os dois lados de uma balança, nem bom, nem mal, apenas justo, independente da vontade dos homens que o invocavam nos julgamentos. Claramente os clérigos de Sandren não compartilhavam desta visão, mas não havia motivos para iniciar este debate com o discípulo – Uma sábia escolha... E qual justiça... aplicaria sobre mim?

- Não posso julgá-lo. Tenho um juramento a cumprir.

- Não? – a voz neutra de Uligan não permitia que o discípulo percebesse se havia ou não ironia em sua pergunta – Sei que o... julgamento já foi feito... Eu o liberto... de seu juramento.

Midler foi surpreendido por aquelas palavras, mas manteve-se cauteloso. Lembrou-se do que Zartan lhe dissera antes de mostrar-lhe o segredo da porta dos anões e o alívio que sentiu se desfez.

- Você não pode me libertar, essa promessa não foi sua.

- Por um momento... você me enganou, Midler – o discípulo sabia o que ele diria em seguida e sentiu raiva, dele e de si mesmo. O jogo acabara – Acreditei que podia... escolher.

- Quero que fique claro – Midler ergueu-se – não confio em você!

- Eu sinto por isso... De verdade... Eu confio minha vida... a você.

Ao se virar para deixar o estábulo, Midler deparou-se com Brans de pé sob o arco da porta, observando-os.

- Ele está bem? – ela tinha o olho esquerdo ainda meio fechado pelo inchaço.

- Graças a você, qu... – Uligan elevou a voz para que Brans o ouvisse, mas foi acometido novamente por uma dolorida tosse. A menina aproximou-se da cama, abaixando-se e pegando um pouco de água para ele, ficando de lado para a cama, evitando que visse seu rosto. Midler resolveu ficar, ao menos enquanto ela permanecesse ali, ficando de pé às suas costas – Obrigado, querida – Uligan olhava carinhosamente para ela – Brans Budir, não é?

A menina concordou alegremente com a cabeça, sorrindo. Apesar da escuridão que lhe tomava metade do rosto, Midler viu que ainda havia um brilho em seu olhar e em seu sorriso.

- Me falaram de... sua coragem, minha querida... Salvou minha vida, obrigado.

O discípulo colocou a mão sobre o ombro dela, falando-lhe com firmeza.

- Devemos deixá-lo descansar, Brans. Um corpo e um espírito quebrado precisam de repouso e reflexão para que sarem a contento.

- Espere – a débil voz a deteve, antes que se levantasse. Colocando uma trêmula mão no rosto dela, virou-o gentilmente. Brans baixou os olhos, envergonhada pelo que ele veria, mas se Uligan sentiu algum sofrimento ou repulsa pelos lábios partidos ou pelo rosto escuro e inchado, o diplomata soube escondê-los habilmente, atrás de um amplo sorriso – Já lhe disseram... o quão bonita... você é?

Brans riu levemente sem vontade. Já se olhara no reflexo do pequeno lago próximo à casa de Mesrian e sabia como estava desfigurada. Ninguém a olhara com desgosto, mas havia pena em quase todos os olhares, o que era ainda pior para ela. Nunca fora verdadeiramente vaidosa, mas não queria que Midler a visse assim e nem se compadecesse dela. Não era este o sentimento que ela buscava.

- Você é de Caendlia... Já viu a Grande Catedral – Uligan continuou, tão carinhosamente como se falasse a uma filha –? Sabe o que fazem lá... nos Dias do Restabelecimento?

- Dias do quê? – ela já ouvira algumas estórias sobre as cerimônias da Catedral da Cidade Alta, contadas por Alghor, o velho ladrão que a criara e a seus irmãos órfãos, mas estas eram sempre mais voltadas para a cobiça sobre os seus salões ricamente decorados, pelos muitos objetos de ouro e prata que utilizavam e pelas jóias dos nobres convidados. Ele ensinara tudo que Brans precisava saber para sobreviver na Cidade Baixa, como evitar problemas, a guarda e os outros ladrões. Uma vez enfrentara e matara um homem que queria roubar-lhe a inocência, apesar dela não ter entendido à época o que ele protegera. Alghor dizia constantemente que estava aposentado, mas havia noites em que se ausentava longamente e, quando retornava, trazia moedas e comida consigo, rindo como um menino. Até a noite que não retornou mais, deixando-os sozinhos.

- Quando o dia e a noite... têm a mesma duração... É quando os sacerdotes da igreja... estão mais fortes e conseguem curar... quase todo tipo de ferimentos... e deixá-la mais bonita de novo.

- Mas só os ricos e nobres vão à Catedral... – havia tristeza na voz de Brans, após um breve momento de esperança.

- Vou lhe contar um... segredo. Eu sou... um destes sacerdotes.

- Você pode me curar? – a voz de Brans estava agora carregada de jovial esperança.

- Não há nada para... ser curado em você... minha querida, mas posso... deixá-la como era.

Uligan envolveu o rosto de Brans com as mãos, tão suavemente que ela quase não as sentiu. Havia um leve tremor em seu olho, em um misto de excitação e temor.

- Vai doer? – Midler se enterneceu ao ouvir novamente a inocente voz assustada que por vezes imaginava perdida em Brans, como a que ouvira em Caendlia. Tantos dias, provações e mortes quase o fizeram se esquecer de que ela ainda era apenas uma jovem menina.

- Não, não vai – Uligan sorriu tão ternamente quanto sua dor permitia. Fechando os olhos, respirou fundo e começou a sussurrar palavras em uma antiga língua cerimonial que remontava a um período ainda anterior aos Filhos da Tormenta e ao Oceano Raivoso.

A respiração de Uligan começou a ficar mais ruidosa, falando agora entre dentes cerrados em dor. Midler segurou os pulsos do diplomata e retirou as mãos do rosto de Brans, interrompendo-o e surpreendendo os dois. A menina olhou-o com tristeza, para então baixar os olhos, deixando o estábulo para que o discípulo não a visse chorando.

- Por que... fez isto? – a respiração de Uligan estava acelerada pelo esforço e sua testa umedecida, apesar do frio do final de outono. Havia uma rigidez em seu olhar que fez Midler lembrar-se de Thorion e de quando uma jovem sentinela morrera aos seus pés.

- Já vi o preço que paga quando faz uso de seu dom – o tom de voz do discípulo deixava claro que ele também não gostara do que se viu obrigado a fazer – Ainda está muito ferido para isto.

- E quem é você... para julgar o que... não compreende, discípulo? – raiva e dor se misturavam às duras palavras – Minha vida pertence... à ela!

- E a mim também! Assim como a Zartan e a Ohel! E mesmo a Mesrian e a Bharin! Até chegarmos a Nosrin, é apenas a você que ela não pertence!

Uligan calou-se, não tinha mais forças ou ânimo para prosseguir. Expirou longamente e o silêncio voltou a imperar entre os dois.

- Descanse, clérigo de Urm. Quanto antes se fizer merecedor da benevolência dos deuses, mais cedo se verá livre daqueles que o atormentam.

Midler deixou o estábulo, procurando por Brans para tentar se explicar. Amaldiçoou mais uma vez o diplomata, por fazê-lo sentir-se culpado e pelo que havia agora se tornado aos olhos da menina.

Uligan ficou a sós, com sua dor e seus pensamentos. Muito havia realmente se passado desde que perdera os sentidos na Garganta. O menino crescera, em vigor, teimosia e coragem. Sentia que grande parte disto se devia a Zartan, que parecia já haver substituído seu tutelado. Bharin poderia estar mais propenso a ser moldado agora, mas era instável demais, apresentando-se como um desafio perigoso, e a menina claramente não o escolheria no lugar de Midler, se tivesse de fazê-lo. Ohel estaria sempre com ele, mas precisaria de alguém mais ao seu lado, para defender suas posições, aumentar seu peso nas decisões que outros pudessem tomar e falar por ele para ouvidos que não mais o recebiam. Estes motivos já bastariam para o diplomata, mas havia algo mais, algo que ele não sabia explicar. Uma fugidia voz, como uma tênue lembrança que não conseguia precisar, lhe dizia que não deveria alcançar Nosrin com cinco ao seu lado. Uligan nunca dera crédito às previsões e superstições dos que acreditavam no poder divino dos sonhos, mas esta imagem o amedrontava.

Fechou os olhos, tentando descansar, mas não conseguiu. O diplomata dentro dele não o permitia repousar, não quando havia planejamentos a serem feitos, mas Uligan não estava apenas exausto e ferido, estava cansado. Cansado da inexorável inflexibilidade de Midler e Zartan, da estupidez selvagem de Bharin, da inocente piedade de Brans e dos frágeis elos forjados por mentiras e dissimulações. E por saber que estava ainda vivo somente devido a tudo isto.

- Como posso salvar meu povo se não posso me salvar? – não havia mais neutralidade em sua voz, agora mais suave que um sussurro – Busco dentro de mim o que tenho de fazer, Condutor Ardlan, e não encontro uma resposta. Devo por duas vezes minha vida a alguém que não confia em mim e que crê que deveria estar morto, mas eu confio nele. Onde está meu equilíbrio?

Uligan demorou a adormecer, perdido em dúvidas e pensamentos. Sua última oração a Urm foi um pedido para que seu sono fosse tranqüilo, para que os pesadelos da cidade morta não o afligissem ao menos por esta noite.

Mas não foi atendido.


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