Uma Grandeza Absoluta escrita por Kalhens


Capítulo 4
Mulheres da minha vida


Notas iniciais do capítulo

É menos encheção de linguiça do que parece.
Garanto.
Ou, ao menos, acho.

Lançamentos de moedas são eventos independentes porque o resultado de um primeiro lançamento não interfere no de um i-ésimo.
Ao menos, acho que essa a definição....*Tirei nota baixa em probabilidade*.
Eventualmente, fará sentido.



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-Matheus, me dá a ata. Matheus? Maaaatheus!

                Quando eu continuei a não responder, levei um tapa na nuca, o susto fazendo o aparelho que comanda a frequência de onda cair com um baque alarmante sobre a bancada do laboratório.

                O técnico me olhou mais do que feio, fumando na porta que dava pro corredor.

                - Quebra mesmo. É você quem paga- Mariana reclamou enquanto arrancava a ata da minha mão- Cê tá bem?

                Acenei que sim, ajustando a frequência até que a corda a minha frente alcançasse o terceiro harmônico. Já era o que? Onze? Onze e meia?

                Oh. Droga. Nove e quarenta.  E praticamente todo um relatório por fazer.

                Enquanto Mariana conferia umas fórmulas na minha ata, eu anotava os dados na do Pedro que, por sinal, tinha ido comer.

                Laboratório é um saco.

                - Vai almoçar aqui?- ela perguntou, enquanto tentava achar o programa para fazer gráficos- A gente podia ir no Uni, com o Pedro e o Antunes.

                A comida era ruim, mas a preguiça de voltar pra casa era maior. Concordei, enquanto via nosso gráfico que deveria ser uma reta tomar a forma de uma hipérbole.  Lindo.

                - Impressão minha ou tem menos pontos no gráfico do que antes?

                - Ninguém precisa saber- foi a resposta enquanto eu via ela mexer na tabela de dados, apagando mais um.- já que vai almoçar aqui, não quer descer pra biblioteca comigo não?

                -Pra...?

                - Temos cálculo e física entre as opções. Pode escolher. Ou, se pá, pegar os dois. Há! Perfeito.- concluiu, salvando o gráfico 100% adulterado.

                Era uma ideia tentadora. Minha tia estava para estrear uma peça no fim de semana, e, desde ontem, eu não ouvia nada senão cantigas de roda cantadas com uma voz máscula e potente.

                Porque a voz máscula e potente eu não sei. Sério.

                - E ai? Bora?

                Ajustei o oscilador. Pensei na minha tia cantando pela casa enquanto era seguida pelo cachorro.







- Matheus. Matheus. Ma-the-us!

Outro tapa.  Dessa vez, da Isadora. Levantei a cara, sentindo o rosto amassado depois de horas pressionado contra o livro de física.

- Você fez a 67 do capítulo dois?- ela me apontava uma página de um livro velho e amarelado, tentando forçar o enunciado a entrar em foco.

Olhei ao redor. Cheguei com a Mariana. Depois, apareceu a Isadora com Daniel e Douglas a tira-colo. Até a ligeira impressão de ter ouvido a voz do Bife eu tinha. Mas agora, só restava a loira de cabelos curtos, verde e amarelo, ali do meu lado.

Ah, e uma Mariana agarrada num livro de cálculo, babando.

- Que horas são?

- Oito da noite.

Olhei o celular, que piscou pra mim com o mostrador esfregando um ''20:07'' em mim.

-Ah, merda. Minha vó vai me castrar.

- Tranquilo. Avisei pra dona Olga que 'cê ia ficar aqui para me ajudar. Sorte que você veio de carro, né? Senão, ia ter que pedir carona pra Mariana, também. De todo modo, tá caindo o mundo lá fora. Senta ai e me ajuda, já que acordou.

Realmente. Dava para ouvir a chuva escorrendo pelo prédio. Chuva significava campus alagado, no mínimo.

- O que você tem hein, mocinho? Mariana me disse que estava imprestável hoje de manhã também- ela comentava, enquanto brincava com o lápis num papel cheio de contas-. Tá apaixonado, moço?

- Não. Só com sono. Não dormi direito ontem.

- Isso eu vi. Mas pro senhor perder o sono, algo aconteceu.-ela recostou-se na cadeira, juntando as mãos- Conte-me mais, senhor  Matheus.

Não pude não rir. Certeza, ela me acordou só porque estava entediada, e preferia ME acordar a arriscar levar berro da Mariana que, por sinal, lhe daria carona.

- Não foi nada, Isa. Só não dormi. Nada de romances.

- Sabe, acho que esse é, precisamente, o problema, querido. Você precisa de mais emoção na sua vida! De um amor, alguém pra beijar, agarrar, sentir, tocar...

Ela enrolava os braços em si mesma enquanto falava, os olhos fechados.

Definitivamente, esquisita.

Acho que por isso gosto tanto dela.

- Arranjar por arranjar, eu arranjo... Problema é que nunca por tempo o bastante pra lembrar o nome depois.

Levei um soco, enquanto ela ria, indignada, me chamando de cafajeste e coisas do tipo.

Ainda bem que essa é a parte da biblioteca em que a gente pode fazer barulho.

Sim, tem isso na biblioteca. Apesar de eu sentir que é mais um senso-comum do que uma regra.

- É só que, realmente...É tipo...Carne? É, carne. Você vai, e come. Não te interessa como era a vaca, como era o porco ou qual a cor preferida do frango. Você vai e come. Aquilo estava vivo e tals mas, sinceramente, não interessa.

Isadora chegou a franzir o nariz, me olhando mais do que torto.

- Cara. Que bom que você tem a engenharia. Se fosse depender de se expressar, você seria apedrejado em nome do bem maior da humanidade.

-...Tá, essa foi uma explicação bem feia, mas nem tanto. Né?

                Continuou me olhando, com um quê de pena no rosto.

Melhor voltar pros momentos de inércia. Entender como a massa e a forma de algo altera sua resistência à mudança de movimento é mais fácil de porque os nomes daquelas meninas não são importantes.

-Ainda tem bastante gente aqui né...E nem é fim de semestre.- comentei. Precisava diminuir aquele vácuo que a minha dignidade tinha deixado quando foi embora.

- Mas tem muita gente dormindo, também. Aquele ali, de óculos, tá vendo- apontou- tá dormindo sentado há mais de vinte minutos. Aquela outra. Parece estar lendo, mas ela tá dormindo tem meia hora já. E aquele ali, aquele caído no meio dos livros. Tá apagado desde que eu cheguei. Ou isso, ou morreu.

Outra palavra para a Isadora. Assustadora. Além de cheia de gestos, ela tem mania de ficar observando as pessoas. Chega a ser vergonhoso ir com ela no shopping. Uma vez um cara chamou o segurança.

                Ao menos, era divertida. Mas quando o relógio bateu às dez, o celular da Mariana vibrou como se estivesse possuído, tão barulhento quanto se ela tivesse colocado um toque.

                Hora de ir.

                - Ah, cara, olha essa chuva- reclamava em bom som, mas sua voz era ridícula frente à tempestade que caia.- Bora correr, tchau, Matheus! Vê se dorme.

                Acenei, vendo as duas sumindo. Pensei sinceramente em voltar pra biblioteca. Quem sabe, esperar a chuva passar. Mas, se eu bem conheço Brasília, vai virar a noite chovendo. Suspirei, descendo os degraus.

                Odiava ficar com a roupa molhada.

                Corpos se amontoavam na escada. Ligando, conversando, reclamando. Esperando.

                Me encarando. Opa.

                - Lucas?

                Não dava pra fingir que não estava me olhando. Peguei no flagra, loirinho.

                - E ai bonito. Esperando pra ir embora?

                Ele não parecia muito a fim de responder, apenas resmungou alguma coisa. Seu rosto estava vermelho. De um lado só.

                Ah. Ele era um dos corpos que a Isadora tinha apontado...Aquele, meio soterrado entre livros.

                - Você quer carona? Ou alguém vem te pegar?

                -...Não adianta.

                - Hm?- desci um degrau, ficando no mesmo que ele- não adianta o quê? Carona?

                - Eu não posso ir pra casa...Perdi as chaves... Minha amiga pegou por engano...Mas ela está em Val Paraíso agora...

                Só para ter uma ideia. Val Paraíso sequer é Brasília. É, literalmente, outro estado.        

                Vulgo ''longe pra cacete''.

                - Chama um chaveiro, ué.

                Ele suspirou, esfregando os cabelos loiros.

                O celular em uma das mãos.

                - Nenhum atende. Até o porteiro do prédio ligou pra mim. Mas o único que atendeu disse que não vai pra cá a essa hora, com essa chuva- riu, amargo- Quem pode culpa-lo?

                - Não tem ninguém pra quem você possa ligar? Se não for muito longe, eu te deixo lá. Dá nada não.

                - Minha namorada está viajando esses dias...E a Jéssica...

                - A mãe dela jamais ia deixar um ser com um pinto entre as pernas dormir debaixo do seu teto antes de casar com ela. Acho que nem depois do casamento, se duvidar.

                Ele assentiu, a sombra de um sorriso ameaçando surgir no cantinho dos lábios.

                Engraçado né. Nós temos intimidade, mas somos estranhos. Chega a ser desconfortável a situação.

Mas não é como se eu pudesse largar um conhecido a quem eu posso ajudar assim, sem mais nem menos.

                - Quer ir pra minha casa? Minha vó não vai gostar, mas é melhorar do que dormir no degrau da biblioteca.

                Ele me olhou desconfiado.

                Tá. Eu entendo.

                Mas não estava a fim de ter uma longa discussão sobre coisas que aconteceram há anos atrás e que podiam, quem sabe, justificar ele não querer ir pra casa comigo.

                Peguei uma moeda no bolso.

                - Cara, eu vou embora e te deixo aqui em paz. Coroa você vem comigo sem reclamar.

                Joguei a moeda pro alto antes que ele pudesse reclamar.

                O resultado foi nós dois, ensopados pela curta corrida até o carro, tremendo enquanto eu ligava o aquecedor.

                - Eu não acredito que estou deixando uma moeda decidir minha vida- resmungava enquanto punha o cinto, os cabelos pingando água sobre os olhos.

                - Acredite, a moeda é sábio- dei partida, o para-brisas iniciando uma ferrenha luta contra a chuva- e o melhor, completamente imparcial. E é composta de eventos independentes.

                Ele fez uma sonora careta no banco do carona, jogando a franja pra trás. É. As pessoas em geral não levam tão tranquilamente comentários casuais sobre matérias como probabilidade e estatística...

                A despeito do horário, o trânsito ainda estava ruim. Certeza que tinha gente que tinha saído às seis e ainda tava na rua. Liguei o rádio, uma música eletrônica reverbando pelo carro. Era isso ou sertanejo.

                Aumentei o som.

                - Você ainda mora com os seus pais?

                - Hah?

                Abaixei quase tudo, a batida remixada se rebaixando a um sussurro meio chato.

                Olhei pro lado. Lucas encarava a escuridão pontuada por luzes de farol. Só o que a chuva deixava enxergar.

                - Seus pais. Ainda mora com eles?

                - Ah, eles morreram. Moro com a minha vó agora.

                Um segundo de silêncio, preenchido só com o chiado do rádio e o barulho frio de tempestade.

                - O-Oh meu Deus! Me desculpe- ele se ajeitou, o cinto impedindo movimentos bruscos- Meus pêsames.

                - Não tudo bem. Tem dois anos já...

                O resto da viagem a gente fez em silêncio. Ele olhando pra janela, eu olhando pra frente.  Acabou com minha vó olhando feio pra gente, abrindo a porta de surpresa enquanto eu ainda lutava para achar as chaves de casa.

                Dava pra sentir. Certeza que ela estava sentada no sofá perto da porta até agora. Só esperando eu chegar. Só para explodir bem em cima de mim.

                Mas, sobretudo, minha vó é uma lady hipócrita das antigas. Classe, elegância e nunca admitir que tem problemas em casa eram os seus lemas de vida.

                Por isso, quando notou a figura pouco imponente e muito úmida de Lucas atrás de mim, eu quase vi ela engolindo tudo que queria tacar na minha cara, e soltar um seco ''quem é ele?''.

                -Desculpa não ter ligado antes, vó- puxei o loirinho pelo casaco, aproveitando o escudo- ele é o Lucas, amigo da faculdade. Ele perdeu as chaves de casa, será que ele pode dormir aqui hoje?

                Ela o olhou de cima a baixo. Graças aos céus, Lucas era uma pessoa apresentável. Uma vez eu cheguei em casa com a Isadora e seus cabelos rajados de verde, o piercing no nariz e suas roupas pretas com prata. Mandar embora minha vó não mandou. Mas só pelos fatores ''lady hipócrita''. Senão, aposto que tinha afastado ela da porta com um facão de cozinha.

                Sério. Ela tem um facão que fica perto da porta. Assiste jornal demais, dá nisso.

                - Sua tia Lena tá aqui. Ele vai ter que dormir contigo. Enfim, entrem logo. Molhados assim, parados na soleira da porta - E a culpa é de quem? - Anda. Vai fazer algo que preste e pegue umas roupas secas pra ele. – então, virou-se para o Lucas, depois de quase me empurrar para fora do caminho-Você já jantou?

                Eu ri.

 Ele ficou todo sem jeito quando ela sorriu, um sorriso enorme e afetuoso, de avó e de anfitriã. Me despachou com a mão enquanto o arrastava para o seu covil: a cozinha.

                - Chegou tarde, querido- minha tia passou, acariciando meus cabelos.

                - Oi tia. Ah, por favor, nós temos visitas, vista algo!

                Ela tinha trinta anos. Bem uns quinze totalmente enfurnada entre palcos, camarins e holofotes. Cara.
Ela tinha umas pernas...Totalmente à mostra, por sinal.

                Minha tia e tals. Nem ligo mais. Mas não dá pra fazer de conta que ela não está com uma blusa do meu avô fazendo as vezes de camisola. Dava pra ver a calcinha dela, querendo ou não.

                - Tsc. É homem? Você devia trazer umas mocinhas pra casa, poxa. Na sua idade, eu traçava várias.

                - Olha, que a vó escuta.- minha vó não queria saber das preferencias da minha tia. Contanto que não fosse nada muito gritante ou óbvio, escandaloso o bastante para as amigas da igreja, costura e ginástica virem a saber, de boa.

                Ela se arrastou rebolando de proposito. Da cozinha, minha vó me gritava, mandando eu levar o Lucas pra tomar banho.

                Suspirei.

                Moeda maldita.


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Notas finais do capítulo

Eu faço cara ou coroa para tudo.
Tudo.
Isso, ou olho as horas no celular. Algo como ''se o último número for par eu compro o livro, se for ímpar, não compro''.
Mas isso não vem ao caso.
Obrigada a todos que leram o/
Até,
Kalhens.



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