Uma Grandeza Absoluta escrita por Kalhens


Capítulo 3
O que eu era para você?


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a quem quer que tenha lido *reverência*.
E um obrigada especial aquelas que me deixaram reviews... Obrigada, mesmo.
Enfim, here we go.

Alias, para quem não saiba ''p.t.= Perda Total''. Eventualmente, fará sentido.



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Afinal, subimos.

Era mais um desses prédios um tanto quanto velhos, mas curiosamente bem localizados, absolutamente sem elevador que desse conta dos quatro andares.

Óbvio que o Lucas tinha que morar no quarto.

Ao menos foi divertido vê-lo se arrastando pelos degraus a fora, agarrado ao corrimão, absolutamente torto, no melhor estilo ''um pé na frente do outro'', a Jéssica logo atrás pronta para aparar uma possível queda.

Bom, foi. Antes dele parecer ter uma convulsão no meio da escada, agarrando o próprio corpo e começando a tremer.

A Jéssica não parava de reclamar que ele ia acabar dando p.t., enquanto eu e ela, num invejável trabalho de equipe, terminávamos de subir as escadas.

Eu já ficava feliz se ele não vomitasse em mim.

Pulando as várias cenas desnecessárias que se desenrolaram na sequência, o resumo era eu, sozinho, dividindo espaço num sofá desnecessariamente grande com uma quantidade obscena de livros, papeis, mangas, canetas e canecas amontoados sobre cobertores.

Obviamente, ele morava sozinho. E fora só por isso que eu me sujeitara a aceitar da Jéssica duas rodadas de cara ou coroa, para ver se o deixávamos lá ou íamos para casa felizes e contentes, ou se alguém ficava lá pro caso dele passar mal de novo. E, no caso de ficar, quem. Acho que já deu pra notar qual foi o resultado.

Moeda maldita.

Aulas de probabilidade de merda... Achei que fosse sair cara mas nãaao. Mesmo que eu tivesse feito a conta certa (esqueci de considerar que lançamento de moeda é evento independente), acho que seria eu a acabar ficando aqui...

                Pressentimentos.

                Meu celular apitou, me avisando que minha vó respondera minha mensagem. Eu falava que ia ficar até mais tarde na faculdade, ela me perguntava se eu tinha almoçado direito.

                De duas em duas horas ela falava sobre como eu estava gordo, apenas para depois vir me oferecer algo pra comer. Acho que isso, em algum lugar, se chamaria ''sadismo''.

                Não...Não é bem essa a palavra...

                Bah, que seja. Fui até onde Lucas estava apagado, um enorme copo d'água pela metade numa mesinha de cabeceira e uma embalagem de chocolate vazia nos dedos desfalecidos. Foi o que deu pra arranjar.

                Ai, saco. Sentei na beirada da cama de solteiro, apoiando o rosto nas mãos e o braço na coxa, vendo aqueles cabelos oxigenados atrapalhados por cima do travesseiro.

                Tenho que admitir que várias vezes nesses últimos anos me peguei pensando sobre como ele estaria. Onde. Com quem. Mas nenhuma vez esperei que ele voltasse pra cidade. Loiro ainda por cima. Na oitava série só fiquei sabendo que os pais dele iam se mudar para uma cidadezinha no interior de São Paulo. O pai dele era engenheiro, acho. Ou era a mãe?

                Não importa mais. Na época só conseguia pensar que certamente era melhor assim. Depois de ter levado dois anos para falar com aquele menino calado e esquisito e mais outro ano inteiro para perceber que, a despeito do que sempre pensei sobre minhas próprias preferencias, eu realmente gostava dele, eu já não sabia o que fazer.

                Quando foi mesmo? Ainda estávamos no nono ano, acho. É, na época já não era mais ''oitava série''. Acho que foi num trabalho em grupo... Ou algo do tipo.

                Engraçado.

                Eu realmente não lembro.

                Só o que tenho de nítido é o som dos passos do salto alto da mãe do menino que bateu nele indo para a diretoria. Pelo visto, achava um absurdo ter sido chamada do trabalho só porque o filho dera uns socos num menino gay. Pior, que raio de escola era aquela que ficava permitindo relações homossexuais assim, claramente? Era um absurdo, de acordo com ela.

                O menino foi suspenso. Mas não por tempo suficiente para esquecer de executar uma vingancinha barata com seus amigos.

                E quando eles foram atrás do Lucas, eu não fiz nada. Na época, ainda morava com meus pais, e não tinha muita certeza sobre nada. Cara. Eu era um idiota.

                Lembro. Claramente. Do olhar de decepção que ele me deu.

 Lembro. Que o abandonei.

 E Lembro. Que ele foi embora.

                Parecia tudo ter sido a tanto tempo... Quanta coisa acontece em três anos.

                Cocei a cabeça enquanto ele se ajeitava na cama, puxando as cobertas mais pra junto do corpo.

                Naquela hora no carro, quando ele percebeu quem eu era, ficou tão sério... O que será que nós tínhamos a resolver? Será que ele tinha perguntas ou só acusações?

                E, de todo modo, do que iria adiantar?

                Me estiquei, a coluna doendo pela posição absolutamente torta em que me deixara ficar. Dava para ouvir os ossos estalando.

                Olhei o visor do celular. Oito horas já. Mandei outra mensagem para minha vó, perguntando se estava tudo bem se eu fosse no cinema.

                Ela não gostou. Mas como a perspectiva de eu não estar estudando era animadora demais para ela, só perguntou se eu estava com a chave de casa.

                Voltei pro sofá, esperando. Peguei um manga da pilha e comecei a folhear.

                Não me lembro de ter dormido. Mas, mesmo assim, ali estava Lucas me chacoalhando e chamando meu nome, irritado.

                Antes mesmo de olhar para ele, descabelado, com olhos vermelhos, enrolado no cobertor  e cara de quem ganhara uma bela ressaca, olhei o celular. Dez horas e uns minutos quebrados já.

                - E ai? Tá se sentindo melhor?

                - Não. Acho que meu cérebro tá inchando, de tanto que a minha cabeça dói. Mas isso não interessa.- continuou, sentando-se numa cadeira desgarrada que havia por ali- Por que está aqui?

                - Porque um cara bêbado faltou de ameaçar de morte caso eu não subisse. Mas se ele, sóbrio, mudou de ideia, não tenho grandes problemas em ir embora.

                - Não, por que está aqui até agora? Sabe que horas são?

                - Porque eu e a Jéssica tiramos no cara ou coroa. Eu perdi.

                Ele me olhou meio desacreditado. Poxa, ninguém nunca leva a sério o ''cara ou coroa''.

                - Enfim. Você queria conversar. Vamos conversar.  Quer que eu comece?

                Ele revirou os olhos, resmungando. Menino reclamão, cacete.

                - Vou tomar isso como um ''não''. Sobre o que você quer falar então? Acho que não sobre futebol, carro ou mulheres.

                - Quer parar de ficar fazendo piadas? Isso é irritante.

                Maus hábitos de quando estou nervoso, desculpa ae. Apenas dei de ombros, me recostando no sofá, esperando. Só pra ganhar um belo de um silêncio, bem na cara.

                - Eu só quero saber uma coisa. – começou finalmente, depois de muito tempo olhando pro chão- quando a gente estava no nono ano. Por que raios você fez aquilo?

                - Defina ''aquilo''.

                - Quer escolher? Pode ser ''pedir um garoto em namoro apesar de ser hetero'', '' quase tirar a virgindade um garoto no meio da rua'', ''abandonar uma pessoa nas mãos de um masoquista idiota e homofóbico depois de você contar pro mesmo que a pessoa é gay''. Tenho mais outras opções se nenhuma delas servir.

                - Espera. Quando eu tentei tirar sua virgindade no meio da rua? A gente tava na casa da Fernanda!

                -A gente estava no portão da casa da Fernanda, e você estava tentando tirar minhas calças! Mas isso não vem ao caso no momento, droga! A questão é, por que você fez tudo isso? Você tem ideia do inferno que eu passei naquela escola? Sinceramente, se meu pai não tivesse sido transferido, acho que eu ia me matar!- ele se botou de pé, a voz ficando cada vez mais alta, o cobertor esquecido na cadeira- Eu não apenas apanhei daqueles caras. Eles começaram a me perseguir, sabia!? Sim, VOCÊ sabia mas não fez nada! Eu contava com você, Matheus! E o que você me disse quando eu fui falar com você? Que ''tinha sido um erro''.- eu sentia o desgosto daquelas palavras.

                Ele estava a beira de lágrimas.

- Lucas, eu...

- E cala a boca que eu não terminei!- apontou, um dedo rijo e tremulo bem na minha cara- Meu pai. Quando ele ficou sabendo da história que aquele vadio do Guilherme contou que tinha me batido porque eu tinha tentado pegar na bunda dele, porque, sabe, ele disse isso. Meu pai nunca me olhou com tanto desgosto. Ele quis saber de tudo. O que eu podia dizer? Que um menino me pediu em namoro e eu aceitei? Só que ai o tal menino mudou de ideia? Mesmo depois de ficarmos nos pegando na escola?- ele ria, nervoso, passando a mão pela testa, os fios loiros indo e vindo- cacete. Meu pai ia acreditar de vez que, afinal, eu era só um puto. Ele ainda acha, até agora.

- Eu passei dois anos vivendo um inferno. Meu pai perdeu toda a confiança em mim. Só minha mãe achava aquilo errado. Eles começaram a brigar. – suspirou, se jogando de volta na cadeira- eu voltei com ela pra Brasília. Mas ela voltou pra São Paulo ano passado.- ria- Eles se acertaram. Eu consegui uma namorada e finalmente passei no vestibular. Eu devia né? – olhava para o nada, vagamente- Esquecer tudo. Mas eu não consigo. Mesmo quando as coisas deram certo, eu não conseguia entender. Por quê? Por que tudo isso aconteceu?

Quando ele finalmente terminou, me deu um soco. Mas ok, foi merecido.

Afinal, suponho que não tenha sido muito legal da minha parte começar a rir.

- Ai, ai, não me bate droga!

- Então não ri, cacete!- ele ficara vermelho, acho que de raiva.

Provavelmente, de raiva.

- Desculpa é só que você está tão diferente- consegui segurar seus pulsos, ele apenas me olhava irritado- como consegue falar tanto sem nem parar pra respirar? E você GRITOU comigo!

- É ISSO que você tem a me dizer? Por favor, sai da minha casa, vai.

- Não, não, desculpa, desculpa. Desculpa. Por tudo.

Não lhe soltei os pulsos, mas não havia percebido. Eu só era realmente ruim com situações assim. Ele esperava, batendo o pé direito impaciente.

- Me desculpe, Lucas. Eu devia ter ficado ao seu lado. Mas naquela época...Eu era um idiota- ouvi um ''ainda é'' resmungado- Quando eu vi tudo o que estava acontecendo... Eu fiquei com medo. Eu achei que me afastar fosse melhor. Eu resolvi que não ia mais me envolver... Só fui perceber o quanto aquilo tinha sido errado quando você não voltou pra escola. Desculpe.

Ele apenas bufou, soltando-se, irritado.

Fiquei ali no sofá mesmo.

- Que seja. Vai embora.

Olhei para ele, em pé ali. Realmente. Não havia mais nada a ser dito.

- Posso só fazer uma pergunta?

Ele me dirigiu um olhar, um tanto apreensivo. Por um instante, pareceu aquele mesmo Lucas assustado e divertidamente tímido de uns tempos atrás. Não. Aquele não era o momento certo.

Resolvi esperar a resposta, sacando outra dúvida igualmente urgente.

- Qual é a desse cabelo?

Bufou, contrariado, abrindo a porta pra mim e só faltando pegar um cabo de vassoura pra me escorraçar, e fazendo questão de girar a chave furiosamente, o som de tranca sendo ouvido em todo o andar.

Desci os quatro lances de escada enquanto avisava a Jéssica que ele estava bem.  Me deitei sobre o volante assim que entrei no carro.

Dizem que Brasília é um ovo. E, cara, isso é realmente verdade.

Pensei na pergunta que quase fiz. Eu queria resposta. Mas não sabia se tinha direito de pedi-la.

Dei partida no carro, o ronco do motor ganhando vida, a vibração suave do veículo... Aquilo me reconfortou um pouco.

Não era como se tivesse acabado.


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Notas finais do capítulo

Sim, a história é ambientada em Brasília //apanha.
Por mera questão de comodidade mesmo.

Grata pela leitura,
Kalhens.



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