A Guerra Dos Seis Mundos - A Batalha dos Magos escrita por VítorXimenes


Capítulo 4
Capítulo Um - Sonho Cinzento


Notas iniciais do capítulo

Agora a história realmente começa com o personagem central.



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CAPÍTULO UM

                                                           Sonho Cinzento

— Essa névoa sempre aparece quando algo está para acontecer — Falou o menino esparramado na cama ao lado. Uma espécie de bola macia subia até o teto do quarto e descia para que ele pudesse arrebata-la e lança-la ao ar novamente.

Nada podia ser visto lá fora, a não ser um mundo infinito de névoa cinza escura e o frio que atravessava as grossas paredes de madeira da casa. Naquela época do ano era normal o clima esfriar na Terra Livre, mas nunca esfriara tanto quanto neste começo de dia. E a névoa estava por todo lugar, mais densa do que nunca se vira na cidade.

Robbie estava sentado há algum tempo sobre o peitoril da janela, olhando vagamente para o nada cinzento, enquanto as palavras do amigo passavam despercebidas por seus ouvidos. Agora recomeçara a chover. Os pingos bateram devagar e escorreram pelo vidro a sua frente, mas segundos depois ficaram maiores e mais fortes. Mesmo assim a névoa não abriu espaço para uma visão melhor da rua. Robbie virou-se para olhar Fred quando o amigo jogou mais uma vez a bola para cima.

— Como você sabe disso? — Perguntou ele, encostando-se ao vidro gelado.

— Meu irmão me contou uma vez. Ele viu uma névoa como essa.

— Eu não acho que já tenha havido uma névoa como essa aqui em Porto Kuki — Falou Robbie, voltando sua atenção para o lado de fora.

— Não aqui. Meu pai o levou com ele em uma comitiva ao castelo do rei. Antes de... Você sabe o que...

Robbie sabia o que. O irmão de Fred desaparecera anos atrás, sem deixar pista alguma para trás. Seu pai o procurara em toda a Terra Livre e ao longo do Reino do Céu, mas não encontrara nada. Uma vez, tomara um barco pirata direto para Cidade Negra, onde diziam que homens traficavam escravos do sul, mas voltara para casa mais uma vez de mãos vazias. A mãe dele sofrera muito. Era uma mulher alegre, Robbie lembrava muito vagamente, antes de tudo aquilo acontecer.

Fred jogou a bola para cima mais uma vez.

— De qualquer forma — Falou ele para quebrar o silêncio. — Quando eles chegaram, havia uma névoa exatamente como essa cobrindo a cidade. E a chuva também. Depois que a comitiva foi embora, meu pai ouviu que o rei tinha sido encontrado morto.

Robbie riu.

— O rei do Céu é velho, mas continua muito vivo!

— Não esse rei — Retrucou Fred, jogando a bola de pano em sua nuca. — O rei Arruda.

— Se você está dizendo...

A chuva agora castigava com força o vidro da janela. Começara a chover há duas semanas na cidade, mas no norte diziam que a chuva se estendia interminavelmente há um mês quase inteiro. O verão fora bem longo desta vez, e os invernos de que Robbie podia lembrar nunca haviam sido rigorosos. Mas seria diferente desta vez, pelo que diziam. Ele nunca vira neve verdadeira, mas desta vez a chance de vê-la por alguns dias era grande.

Os telejornais haviam anunciado há dois dias o inicio do outono, mas mesmo assim já parecia inverno naquela parte do mundo. Robbie sempre gostara do inverno, mas este nem ao menos havia chegado, e ele já queria que terminasse.

— Lembre bem disso — Fred levantou-se pesadamente da cama e caminhou para junto da janela a fim de recuperar a bola atirada ao amigo. — Alguma coisa vai acontecer.

— E essa seria a parte assustadora? — Perguntou Robbie, sorrindo. — Não seria tão mal que alguma coisa acontecesse. Algo que não fosse frio ou molhado.

Fred parou ao seu lado para olhar através da janela molhada. Tudo o que conseguiu ver foi tudo o que o amigo via há quase meia hora. Um mundo infinito de cinza denso.

 — As aulas da escola vão começar amanhã e nós dois estamos aqui dentro do seu quarto olhando para nada há o que... meia hora?

— Qual a sua sugestão, então?

— Minha casa. É menos chata que a sua, pelo menos.

— E é por isso que você está aqui.

Robbie virou-se e desceu do parapeito para depois andar até o guarda-roupa velho que ficava de frente a cama. O seu quarto não era muito grande. Apenas a cama encostada à parede, uma mesa de cabeceira ao lado e o guarda-roupa do outro lado. Ele pegou o casaco preto do fundo da gaveta. Não precisara usar um há algum tempo.

— Vamos sair — Falou enquanto se vestia.

— Para onde, posso saber? Talvez na Ilha do Leão não tenha névoa. Devíamos tentar lá.

Robbie sorriu.

— Sei lá. Para a casa de Raffael, talvez.

— É. Um lugar melhor que aqui — Ironizou Fred. — Se nós não congelarmos no caminho até o outro lado da cidade, talvez a Sra. Calldas faça biscoitos.

A Sra. Calldas sempre fazia biscoitos. Bons biscoitos. Robbie olhou para o relógio encima da cabeceira enquanto abria a porta. Marcava uma hora, mas lá fora já parecia estar anoitecendo.

— Vamos andando.

Eles saíram do quarto e desceram as escadas ao final do corredor, passando pelo quarto da mãe de Robbie e por um pequeno banheiro. Ele passara toda a sua vida naquela casa, morando com sua mãe. Robbie não conhecera o pai por muito tempo. Nem ao menos sabia como ele se parecia. Procurara muito por fotos, mas nunca encontrara nenhuma. Nada. Mas sabia que se parecia com ele. Era o que todos diziam. Os cabelos lisos caindo emaranhados pela testa, mais negros do que qualquer coisa podia ser. A pele clara e os olhos tão escuros quanto os cabelos. Morrera de um acidente enquanto voltava de uma viajem ao Reino do Céu. Fora há treze anos, quando o mundo ainda estava todo em guerra. Robbie não tinha mais que dois dias de vida.

Do pé da escada, ele olhou para dentro da cozinha e viu sua mãe. Ela estava encostada ao balcão de mármore, mexendo alguma coisa na panela. Usava um vestido longo e verde por de baixo de um grosso e peludo casaco. Seus cabelos estavam soltos, caindo ao meio das suas costas. Era de um tom castanho claro, assim como a cor de seus olhos.

Kharla percebeu o filho e virou-se com um sorriso, ignorando a comida parada na panela. Era uma das poucas coisas dela que a assemelhava a Robbie. O sorriso. Grande e bonito, pelo menos nela. Além de ambos serem mais baixos do que deveriam ser.

— Estão indo a algum lugar? — Perguntou ela levantando o cenho.

— Para a casa de Raffael. Não vou voltar muito tarde.

— Com essa névoa? Acho que não — Ela virou-se de volta para a panela.

Robbie aproximou-se, sorrindo.

— Não aguentamos mais ficar aqui dentro. Vamos voltar antes de ficar escuro.

— Eu tomo conta dele — Intrometeu-se Fred.

Kharla estudou os dois pelo canto do olho antes de balançar a cabeça.  

— Vão. Mas não demorem, ou eu mesmo saio para procura-los lá fora.

— Obrigado, mãe.

Robbie esticou-se para beijar a bochecha da mãe antes de virar-se e sair da cozinha ao lado de Fred. Passaram pelo hall, rodeando uma mesa redonda no centro, e chegaram à porta. Fred pegou seu casaco pendurado em um dos cabides da parede e vestiu-se enquanto Robbie calçava os sapatos e vestia sua capa de chuva.

Quando ele abriu a porta, parecia que o vento o iria arrastar de volta para seu quarto. A capa de chuva sobre ele bateu com violência em suas pernas e em poucos segundos os dois meninos estavam molhados da cabeça aos pés antes mesmo de atravessarem a porta.

Depois de fechar a porta, eles desceram os degraus de pedra que davam para o jardim. Atravessaram pulando sobre as pedras brancas que formavam um caminho direto para a calçada através da grama do jardim. Desde que a chuva começara esse caminho não fazia mais sentido. O gramado verde agora era um lamaceiro preto e escorregadio. Os arbustos estavam praticamente sem folhas e as que restavam tinham um tom de cor muito longe do verde. Sua mãe sempre fora muito cuidadosa com o jardim, mas desde que a chuva começou a cair sobre Porto Kuki, não pode mais cuidá-lo como antes. As flores tinham logo desaparecido e as plantas caíram, deixando apenas os galhos mortos. O gramado era só lama escorregadia, e era só por isso que Robbie continuava o atravessando sobre as pedras.

Ele deu uma boa olhada ao redor, mas a única coisa que conseguiu ver foi os cabelos quase loiros e espetados de Fred. O amigo devolveu o olhar e os dois continuaram a caminhada cautelosa pela calçada estreita, pulando as poças de água que conseguiam ver a frente, pisando na maioria e batendo em postes que não haviam percebido. Fred se chocou duas vezes antes mesmo de deixarem a rua.

A névoa continuava cada vez mais densa à medida que andavam. Robbie não conseguia ver nada ao redor, mas conhecia muito bem a rua. A calçada era estreita e a rua era calçada com uma pedra antiga e gasta, mas que nunca cedera. No centro havia uma praça oval com um parquinho no centro coberto por areia molhada. Era um lugar bonito no verão, com todas as crianças brincando ali. Agora, tudo o que podia ouvir era o alto assovio do vento e o som que a capa fazia ao bater em sua perna.

Eles caminharam em silêncio entre a escuridão, apenas se falando para se alertarem sobre algum obstáculo à frente. Depois de algum tempo, quando a névoa começou a ficar mais forte e os postes acenderam as luzes por toda a rua, pararam de falar até mesmo para isso. Robbie não conseguia ver muito bem ao redor, mas sabia exatamente o caminho que estavam tomando. Passaram por uma igreja alta de pedra encima de uma praça; cinco quadras depois estavam passando ao lado da cerca de ferro da escola. Estava mais escuro agora que a chuva parara.

Conseguiram ver alguma coisa quando chegaram ao barranco lamacento que descia para o porto da cidade. Viram a névoa se espalhar ao longe pelo mar e os barcos sumirem entre ela, e conseguiram ver também o beco que usavam de atalho para dentro daquela vizinhança. Levaram apenas alguns minutos para identificar a casa de Raffael. Era a branca no centro da rua, fronteada por um poste que piscava em intervalo de alguns segundos.

Robbie e Fred atravessaram o pequeno jardim da cassa e bateram na porta. Ouviram um grito e um pisar forte no segundo piso da casa. Segundos depois a porta foi aberta, mostrando um menino magricela de cabelos castanhos longos.

— Fred... Rob — Ele parecia surpreso. — O que vocês...?

— Podemos entrar ou vai nos deixar sumir aqui fora. Eu estou congelando — Falou Fred, antecipando-se para atravessar a porta antes de qualquer convite. Raffael abriu caminho, ainda parecendo surpreso.

Robbie deu de ombros e esboçou um fraco sorriso para o amigo antes de entrar também.

— Oi.

— Oi — Respondeu Raffael, fechando a porta.

— Quem está ai? Raffael? — A voz vinha de dentro da casa, o que parecia ser a sala de estar. Robbie reconheceu a voz da Sra. Calldas.

— São Fred e Robbie — Respondeu.

Robbie tirou a capa molhada e a estendeu em um cabide ao lado da entrada. Fred já estava totalmente despido quando ele terminou de descalçar os sapatos. Foram todos andando para a sala de estar.

— Como chegaram aqui? — Ela perguntou, quando adentraram o aposento. — Não há ninguém na rua hoje — Parecia preocupada. — Não vieram sozinhos, vieram?

Fred assentiu, abaixando a cabeça para ela não poder ver seu sorriso malcriado.

— Não foi nada de mais, Sra. Calldas. Não precisa se preocupar — Falou Robbie, educadamente. Ele conhecia muito bem a mãe do amigo para saber como lidar com ela. A Sra. Calldas fazia o melhor biscoito da cidade, era bem verdade, mas a outra verdade é que ela era meio maluca, segundo Fred dizia por ai.

— Não é um dia para ninguém está por ai na rua. Especialmente crianças — Disse ela, pondo um biscoito na boca sem tirar os olhos da televisão.

A Sra. Calldas pegou a bandeja com o restante dos biscoitos e esticou-a para eles.

— Biscoitos?

— Não. Obrigado, Sra. Calldas — Robbie terminava de dizer quando Fred atacou a bandeja e levou com ele mais da metade dos biscoitos. Uma parte nas duas mãos, a outra entalando sua boca.

O garoto acenou um agradecimento a ela, antes que Raffael pudesse puxa-los para fora da sala.

— Estamos subindo — Avisou.

Foram até o hall vazio.

— O que? — Perguntou Fred depois de engolir tudo. — Não se rejeita os biscoitos da Sra. Calldas. Sua mãe é um verdadeiro gênio na terra.

Ele levou o resto dos biscoitos à boca, dando de ombros.

— Então, o que vieram fazer aqui exatamente? Porque o que tem aqui não é exatamente divertido.

Fred tossiu.

— A janela do quarto dele ficou meio chata depois de um tempo. Também acho que Rob aqui não mereceu o premio de mais divertido da escola, não é? — Respondeu.

— Eu estava assistindo aquele programa da televisão com minha mãe — Replicou Raffael, sério.

Fred fez um careta e olhou para Robbie, que não conseguiu esconder o riso.

— Acho boa ideia voltar para a janela — Brincou ele. Todos riram durante quase um minuto e depois o hall foi ficando quieto e silencioso.

— Eu só queria sair de casa — Confessou Robbie, ainda sorrindo.

— Ei! Sabe aquela sorveteria atrás da escola. Talvez esteja aberta. Quero dizer, não fecharam nem com aquela tempestade de pedra na semana passada — Sugeriu Fred, esperançoso.

Robbie e Raffael olharam para ele incrédulos. Robbie mal conseguia esconder o sorriso.

— Sorveteria? Sério?

— Ah, vamos lá!

— Deve estar uns cinco graus lá fora, Fred — Falou Raffael. — Sorvete?

Fred girou pelos calcanhares e alcançou a capa pendurada à parede. Começou a vesti-la.

— Não quero dizer sorvete. Não é tão longe daqui. Lá tem... Outras coisas também.

— Com outras coisas ele quer dizer Alice do oitavo ano — Falou Robbie para Raffael. Ambos riram enquanto Fred ficava cada vez mais vermelho.

— Então? — Perguntou ele, calçando os sapatos.

— Vou pegar o meu casaco lá encima.

Raffael saiu de costas e desapareceu no segundo andar. Robbie calçou os sapatos mais uma vez e vestiu a capa de chuva pendurada a parede. Nenhum dos dois falou nada, mas Robbie continuava rindo em silêncio. Pouco mais de um minuto depois, Raffael desceu vestido em um casaco grosso e escuro sob uma capa branca. Ele calçou os sapatos na sala de estar, falou alguma coisa a sua mãe e reapareceu no hall.

— Já é suficientemente branco lá fora e você ainda vem com essa capa? — Comentou Fred, abrindo a porta. Ele olhou para o Raffael. — Sua mãe deixou mesmo você sair?

— Ela pareceu não gostar da ideia quando eu e Fred aparecemos aqui — Adicionou Robbie, pulando para a trilha de pedra que atravessava o jardim. Era quase igual ao jardim da sua casa, só que com mais árvores e pedras maiores. Mesmo assim, se pisasse no gramado lamacento, tinha certeza que escorregaria.

Quando alcançou a calçada, uma poça de água com lama o recebeu. Rindo alto, Fred passou por ele em um borrão escuro entre a névoa. Robbie não conseguiu ver Raffael em sua capa branca. Eles tomaram o mesmo caminho de antes, mas demoraram mais para encontrar o beco desta vez. Depois de atravessarem o porto, viraram à direita e continuaram até alcançarem a escola. Com Fred e Raffael a frente, Robbie tateou o gradeado gelado da escola, até chegarem ao muro de rocha sólida que levava até o fim da rua. Atrás do edifício, ele sabia que ficava uma rua estreita onde os estudantes maiores passavam o dia quando estavam matando aula. No centro da rua ficava a sorveteria.

Um pensamento ocorreu a Robbie repentinamente.

— Como sabe se Alice vai estar lá em um dia como esse? — Perguntou a Fred.

— Ela não vai — Raffael respondeu primeiro, como que um fantasma invisível ao seu lado. — Ninguém está fora de casa hoje, exceto nós.

— Vocês dois podem calar a boca? — Fred parou de repente, fazendo Robbie bater o nariz em sua nuca. — Não tem nada a ver com ela.

Robbie não podia ver um palmo à frente do nariz, mas conhecia o amigo, e sabia que seu rosto estava explodindo de vermelho agora. Raffael riu.  

— Claro que não tem nada a ver com a Alice — Falou ele. — Ela sai com os caras maiores do ensino médio. Ela é demais para você, Fred, tem que admitir.

Fred se virou rapidamente, mas Raffael se moveu mais rápido e livrou-se do soco. Depois, como um fantasma, apareceu atrás do amigo e o empurrou em direção a Robbie, e o segurou, gargalhando.

— Está bem — Falou entre uma risada e outra, segurando Fred para que ele não avançasse novamente. — Podem parar os dois. Deixe-o em paz Raffael.

Fred não tentou ataca-lo novamente quando Robbie o soltou, até porque não iria conseguir acerta-lo enquanto a névoa estivesse tão densa entre eles. Então continuaram o caminho até chega a frente à sorveteria. Não havia nenhuma luz naquela rua a não ser a dos postes. Ficaram por um bom tempo em silêncio, contemplando a porta fechada da sorveteria. Ou pelo menos a imaginando. Robbie, particularmente, não conseguia sequer ver a sorveteria sem chegar perto o suficiente para toca-la.

— É — Começou. — Vamos voltar, então.

— Vamos.

Raffael deu uma ultima checada na porta, para ter certeza de que ela estava mesmo trancada, antes de segui-los de volta pela rua. Tomaram o mesmo caminho pelo que vieram, mas desta vez foram mais rápidos. Rodearam a escola e seguiram direto para o porto. Começara a chover fraco. Os pingos finos bateram na cabeça de Robbie e escorreram por sua testa até a boca. A névoa começou a ficar menos densa ali, o suficiente para fazê-lo ver que havia algo diferente nas docas.

Robbie parou e chamou a atenção dos dois amigos, apontando para baixo do barranco. Conseguiu ver Raffael agora, mesmo em sua capa branca. Havia um grande barco atracado. Era branco e suntuoso, o suficiente para ser o barco de um rei. Homens desciam objetos de variados tamanhos e atiravam-nos em carroças estacionadas sobre o porto de madeira. Havia em torno de dez carroças ali, e Robbie achava que ainda não seriam o suficiente para carregar tudo o que os homens traziam nas costas.

Demorou algum tempo para que os objetos acabassem de sair de dentro do navio, mas os três continuaram lá, observando tudo de cima do barranco. De algum modo, estar ali olhando aqueles homens trabalhando, era melhor do que ficar em casa vendo um mundo cinzento pela janela. Os trabalhadores não pareciam poder vê-los lá encima. A névoa estava mais densa ali. Duas carroças a mais foram trazidas para recolher o resto das coisas depois que as dez primeiras partiram para onde quer que fosse. Depois de abarrotadas de coisas, as duas ultimas carroças saíram também.

Mais pessoas começaram a descer do navio. Mulheres e algumas crianças, homens altos e magros. Alguns desses homens carregavam espadas arredondadas e vestiam um tipo de cota de malha. Depois de todos descerem para a chuva aberta, quatro homens saíram de uma cabine carregando uma liteira sobre as costas. Pararam na base da rampa de descarregamento do navio, e ficaram esperando.

Outras quatro pessoas saíram da mesma cabine. Uma delas usava uma armadura prateada e velha e segurava o cabo de uma espada longa embainhada. Os outros dois eram os únicos entre todos que usavam capas brancas bordadas sobre a cabeça, para se proteger da chuva. Dois eram altos, mas o outro poderia muito bem ser um anão ou uma criança.

O homem de armadura parou ao lado da liteira enquanto os outros três subiam nela. Lá, sob a proteção do teto da pano da liteira, os três sentaram-se nos bancos com acolchoamento vermelho e despiram as capas de chuva. O homem era alto e um pouco gordo, com poucos cabelos sobre a cabeça e uma barba redonda e cheia. A mulher ao seu lado usava um véu branco e parecia ser, pelo menos àquela distância, magra e branca como um esqueleto. A terceira pessoa era uma menina. Devia ter uns doze anos, a julgar pela altura. Seus cabelos negros caíam sobre o ombro e escorriam até o meio das costas. Sua pele era tão branca como a da mãe, mas suas bochechas eram rosadas e um pouco mais redondas. 

— Quem você acha que são essas pessoas? — Perguntou Raffael, apertando os olhos para tentar ver melhor através de uma nuvem de névoa que atravessara na frente deles.

— Não faço ideia — Respondeu Fred. — Mas a julgar pela aparência daquela mulher do véu, eles não tinham sol nem comida de onde vieram.

Raffael riu, mas Robbie não estava mais prestando tanta atenção ao amigo. A nuvem de névoa passou. Os homens armados com espadas arredondadas rodearam a liteira, mas abriram espaço para o cavaleiro de armadura prateada ficar mais próximo. A menina olhou para aquele lado e Robbie, por impulso, desviou o olhar. Manteve os olhos fixos na sombra de Fred por um tempo, antes de ousar olhar de volta para baixo. Quando o fez, a liteira já havia começado a andar e a menina enrolara-se novamente na grossa capa de chuva.

— Devem ser importantes — Comentou Fred.

Robbie olhou para ele quando a liteira virou onde a névoa a impedia de ser vista por mais tempo. Segundos depois, a comitiva que a seguia sumiu também na escuridão cinzenta. Ele continuou fitando a névoa, antes de perceber que Fred e Raffael não estavam mais ao seu lado. Quando olhou para trás, os viu tomando o caminho em direção ao beco, agora visível mesmo dali. A névoa parecia estar se dissipando aos poucos, mas agora a noite começava a se aproximar. Robbie correu para alcançá-los.

Discutiram até a casa de Raffael quem eram essas pessoas. Robbie respondeu sempre que não sabia, pensativo. Sua mente vagava entre a mulher ossuda e a menina, ambas brancas demais para serem da Terra Livre. Ele só podia imaginar que eram do norte. Fred assegurara que eram de algum lugar do Reino Arruda; jurara ter visto algum estandarte azul com um símbolo estranho, e dizia conhecê-lo. Robbie assentiu. Não vira nenhum estandarte em local algum do barco ou da liteira, nem mesmo o cavaleiro usava algum símbolo na placa de peito da armadura. Mas o amigo estava certo, Robbie imaginou. Eles só podiam ser daquela parte do norte.

— É estranho — Ele falou, depois de algum tempo de silêncio. Estavam há apenas alguns metros do jardim de Raffael agora. — Não havia nenhum estandarte a mostra naquele navio. Quero dizer, quantos navios como esse vocês já viram sem esbanjar um estandarte em uma das velas?

— Havia um estandarte! — Replicou Fred.

— Desenhado em um baú, você disse. Isso não é exatamente esbanjar.

— Então o que? Você quer dizer que essas pessoas chegaram aqui escondidas?

— Fugindo de alguma coisa? — Acrescentou Raffael, parando sobre uma pedra do caminho que atravessava o jardim. — Uma coisa é bem clara, é algum tipo de família nortenha importante. Vocês viram o tamanho da cabine encima do navio?

— Pode ser um mercador — Falou Fred. — Quantas vezes você ouviu falar de mercadores que quebraram e fugiram para o outro lado do mundo com tudo o que tinha?

— Esse não parecia estar muito quebrado — Falou Robbie depois de um tempo.

— Está escurecendo — Comentou Raffael, finalizando a conversa sobre mercadores fugitivos. — É melhor eu entrar, minha mãe deve estar louca agora...

— Agora? — Brincou Fred. Robbie riu, mas Raffael fez uma cara descontente. Geralmente ele não gostava das piadas que faziam sobre sua mãe meio neurótica.

— De qualquer modo, deviam ir também — Acrescentou ele, entrando em casa e fechando a porta com um breve aceno.

Robbie olhou para o relógio de pulso que ganhara de aniversário no ano passado. Faltavam apenas dois minutos para as seis horas. Era realmente hora de ir para casa. O céu parecia estar mais escuro do que usualmente estaria, mas deveria se por causa da névoa. Quando a chuva voltou a aumentar, eles deram meia volta e seguiram pelo mesmo caminho de sempre. Mesmo sem poder ver muito bem, encontraram facilmente o beco. Passaram pelo porto, onde Robbie deu uma última olhada no barco. Era com certeza um dos maiores que atracara na cidade no ultimo ano. Branco e com detalhes dourados, mas sem nenhum estandarte.

Os dois prosseguiram e logo chegaram à escola. Passaram rapidamente por ela, desta vez sem ter que tatear o portão gelado para encontrar o caminho. Logo chegaram à praça redonda de frente para uma suntuosa igreja de rocha antiga. Era a maior construção da cidade. Mesmo por entre e névoa, era possível ver sua monstruosa presença negra entre todo aquele mar de cinza. Alguma coisa ali fez Robbie parar. A névoa era muito densa ali, mais densa do que fora todo o dia, mas ainda assim a igreja podia ser vista. Ele olhou ao redor. Fred se fora. Não conseguia ver sequer a sombra do amigo caminhando à frente. Girou pelos calcanhares e encontrou a figura da igreja novamente.

Robbie ouviu um som. Ao lado da sombra negra da igreja havia um pomar onde o sacerdote local plantava ocasionalmente. Atrás havia um pedaço antigo de floresta. Fora de lá que o barulho viera, ele tinha certeza. Recuou dois passos e bateu em um banco com as costas da perna. Seu joelho vacilou e ele caiu estatelado no chão molhado. Não conseguiu mais se mover. Fred não reaparecera em lugar algum. A névoa pareceu clarear ali, e ele pode ver na clareira da floresta, entre as árvores e o cercado do pomar. Havia um homem parado ali. Não um, Robbie percebeu aterrorizado, eram dois. Um menor do que o outro. Ambos usavam uma capa mais preta que qualquer coisa que ele já havia visto e um capuz sobre a cabeça que cobria o rosto. A única coisa visível neles eram as bocas brancas.

Robbie tentou arrastar-se para trás, mas bateu novamente de costas com o banco. Engatinhou para trás dele. Talvez aqueles dois homens não o tivessem visto. Não havia sinal algum de Fred. Robbie arriscou mais uma olhadela em direção aos homens. Um deles falava. O outro não abrira a boca, apenas assentia por baixo do capuz negro. Talvez fosse a chance de Robbie sair dali. Talvez fossem apenas viajantes perdidos no meio da floresta, mas ele não queria ficar ali para descobrir isso. Apoiou no banco para levantar-se, mas parou quando estava ainda acocorado.

Um estampido foi ouvido. Os homens olharam para o lado ao mesmo tempo em que a porta da igreja rangeu ao ser aberta. Seu som ecoou pela rua vazia. Robbie desviou sua atenção por um segundo para olhar quem abrira a porta, mas não viu nada além da névoa. Demorou apenas um segundo, mas quando virou os olhos novamente para a clareira entre a floresta e o pomar, os homens haviam sumido.

Robbie levou um segundo ali, parado, hesitando levantar-se. Os homens ainda estavam por ali, ele sabia.  Olhou ao redor, mas quando o fazia algo tocou seu ombro e o fez girar. O grito que deu foi quase tão alto quanto o ranger da pesada porta da igreja. Arrependeu-se profundamente disso. Fred parou de repente, incapaz de gritar também, mas com certeza não era gritar o que ele queria. Robbie pode ver o sorriso se formando na sua boca. Não servia de muito consolo, mas ele percebeu que o amigo estava pelo menos tentando conter a gargalhada presa na garganta.

Ele levantou-se com a ajuda de Fred e limpou a capa, agora completamente suja de lama. O capuz havia caído de sua cabeça no meio de toda a confusão, percebia agora. Seu cabelo estava totalmente molhado, escorrendo água para frente dos olhos.

— O que você estava... — Fred respirou para não rir alto. — O que estava fazendo aqui?

Robbie não sabia se deveria contar. Agora era ele mesmo que continha o riso de si mesmo. Havia entrado em pânico por causa de dois viajantes perdidos, pensou. Mas quando olhou para a clareira novamente, até mesmo seu sorriso reprimido morreu. Não poderia explicar o porquê.

— Rob! O que tem ali?

— Nada.

— Eu falei e você não respondeu — Explicou o amigo. — Quando olhei ao redor, você não estava mais lá. O que foi?

— Nada — Repetiu Robbie, olhando agora para um vulto negro que se aproximava. — Eu caí.

Quando o vulto chegou perto o suficiente, Robbie pode ver o sacerdote. Era um homem velho e corcunda, com a barba por fazer, cabelos ralos e uma túnica longa branca que arrastava pelo chão. Não usava nenhuma capa de chuva, mas também não parecia estar muito molhado.

— Está tudo bem meninos? — Perguntou ele com a voz mais gentil que conseguiu.

— Sim senhor — Respondeu Fred, fitando Robbie. — Meu amigo só caiu.

Robbie assentiu, ainda olhando ocasionalmente para a clareira.

— Não está machucado, está?

— Não — Ele respondeu rapidamente.

— Então tudo bem. Não há o que temer aqui. Nenhum mal jamais chegará perto desta casa — Assegurou o sacerdote moldando um sorriso. — Enquanto o exercito da luz estiver por perto, nada de mal acontecerá. Mesmo assim, é melhor voltarem para casa. Não é bom ficar aqui fora à noite, especialmente em um dia como esse. Vão! Vão!

Fred olhou para Robbie, que apenas deu de ombros.

— Obrigado. Estamos indo — Respondeu ele, puxando o amigo pelo colarinho da capa.

O sacerdote pareceu ficar exatamente onde estava, olhando para eles. Quando estavam longe o suficiente, Fred começou a gargalhar. Robbie o seguiu, mas não durou muito tempo. Depois veio o silêncio, que durou todo o resto do percurso até a casa de Robbie.

— Então, vejo você amanhã na escola — Despediu-se Fred quando a Sra. Kharla abriu a porta para receber o filho, com um olhar penetrante e uma sobrancelha erguida que indicavam que ele estava encrencado.

— Até amanhã — Falou Robbie, entrando e fechando a porta.

Ele tirou os sapatos e pendurou a capa molhada e suja no cabide ao lado da porta, em silêncio.

— O que aconteceu com chegar antes de escurecer?

— Só andamos. Só isso — Explicou Robbie, e contou tudo o que haviam feito enquanto sua mãe levava o jantar à mesa. Falou sobre a mãe de Raffael, sobre a sorveteria fechada, sobre o grande barco atracado no porto. Falou também sobre o sacerdote, mas omitiu a parte dos dois homens encapuzados. Achou melhor esquecer aquilo. — Desculpe — Acrescentou quando terminou.

Kharla abriu um grande sorriso quando a história acabou e abraçou o filho. O abraço o aqueceu mais do que a capa e o casaco o haviam aquecido durante todo o dia. Depois foi a vez de a sopa aquecê-lo por dentro. Se havia uma coisa de que Robbie gostava era da sopa quente que sua mãe preparava quando estava frio. Sempre esquentara o resto das suas noites, mas no verão de Porto Kuki era quase insuportável tomá-la. Então ele tinha que aproveitar o inverno. Repetiu o prato mais duas vezes e comeu algumas torradas depois.

Quando terminou, Robbie descansou o prato dentro da pia do balcão e voltou para dar um beijo na testa da mãe.

— Boa noite mãe.

Ela o beijou de volta, várias vezes.

— Boa noite. E não demore a dormir, sabe que amanhã terá aula.

Ele acenou antes de sair da cozinha e subir os degraus da escada. Sua perna doía, percebera agora enquanto subia. Quando chegou ao quarto, despiu-se e correu ao banheiro para tomar banho. Ficou bem mais do que esperava lá. Por vezes, se pegou pensando em baixo da água corrente do chuveiro quente. Pensara primeiro no que acontecera perto da igreja, mas resolvera afastar este pensamento. Então pensava agora na menina na liteira. Ela olhara para cima, onde eles estavam, mas Robbie não podia ter certeza de que ela os tinha visto. Quem eram aquelas pessoas, afinal? Podiam ser mercadores falidos, como Fred falou, mas a julgar pela quantidade das coisas que haviam trazido, não parecia ter sido uma fuga apressada.

A chuva começava a bater com força no telhado no momento em que Robbie se vestiu novamente e voltou para o quarto. O relógio da mesa de cabeceira marcava agora oito horas. Ele juntou as coisas de que precisaria para a escola no dia seguinte e as atirou sem arrumação dentro da mochila, depois e deixou no chão ao lado do guarda-roupa.

Robbie fechou a cortina fria e apagou o abajur ao lado da cama. Rolou de um lado para o outro, mas o sono não vinha fácil. Permaneceu deitado, tentando afastar qualquer pensamento para poder conseguir dormir. A última vez que olhou para o relógio ele marcava dez minutos para nove horas. Depois disso ele conseguiu finalmente adormecer. O sono veio pesado. Robbie sonhou com alguma coisa de que não conseguiu lembrar depois, mesmo esforçando-se para puxar pela memória. A única coisa de que se lembrara do sonho, era de como ele fora cinzento.


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