A Guerra Dos Seis Mundos - A Batalha dos Magos escrita por VítorXimenes


Capítulo 3
Prólogo - Rei dos Humanos




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                                  PRÓLOGO

                              Rei dos Humanos

Dumed acordou e abriu os olhos lentamente, mas continuou sem ver nada. Fechou e abriu-os novamente, mas a escuridão perdurava. Todos os centímetros do seu corpo doíam absurdamente e ele estava deitado em um grosso chão de pedra molhado. Água, o humano pensou, virando-se para raspar o chão com as duas mãos em concha, percebendo de repente que sentia sede e não havia nada para beber, além disto. Dumed bebeu e sentiu-se aliviado. A água tinha uma mistura engraçada de sabores; água suja, sangue e dejetos. Mas mesmo assim serviu para saciar um pouco da sua sede. Não havia comida por perto. Ele procurou tateando pelo chão, mas não conseguiu encontrar nada, então voltou para o seu canto e encostou-se sozinho na parede.

Agora ele conseguia se lembrar, sim. Haviam perdido a batalha, Dumed lembrou mais uma vez. Conseguia lembrar-se de fragmentos que eram lançados por sua memória. Ele vira de sua torre os cinco cavaleiros voando rapidamente em seus chills e ajudara Lorde Marry a enviar as mensagens escritas para os outros lordes. Andêgo reunira o exercito da capital. O que teria acontecido a ele? Estaria morto? Dumed pegou-se perguntando. Estavam prontos encima das muralhas com um pequeno exercito de cinco mil magos e duzentos humanos em frente à muralha e mil arqueiros encima dela. Os magos do Fim do Mundo chegaram do norte uma hora antes dos batedores virem anunciar a aproximação do exercito inimigo através das montanhas.

Eles esperaram os outros lordes, mas nenhum exercito veio em auxilio. Haviam os traído ou a mensagem não teriam sequer chegado? A segunda opção era mais provável. Os cavaleiros e as cartas escritas teriam falhado afinal. Dumed viu de cima das muralhas o rei dos magos palestrando aos soldados, e depois disso o caos caíra sobre Pedra Negra. O exercito perdia-se de vista pelas montanhas da Dádiva. Eram setenta ou oitenta mil, mas pareciam ser cento e cinquenta. Andêgo lutara, e perdera. Os vinte mil do Fim do Mundo não aguentaram, e vários abandonaram seus postos quando a escuridão dos amaclebes caiu sobre o castelo. Os gigantes derrubaram os portões da muralha negra, e então Dumed perdeu. Nada pode ser feito para escapar deste destino. Não fora uma batalha como já travada. Lutar com monstros não era a mesma coisa que lutar com seres, afinal.

Dumed lembrava-se de ter decidido lutar até a morte, mas nem isso conseguiu. Levou vários goblins e anões com ele e até mesmo um pequeno gigante que tentava escalar a muralha, mas no fim perdeu sua espada e foi imobilizado. A espada... A espada que fora do pai, a espada que fora do irmão... Ele lutou como um louco para se desvencilhar das mãos frias dos amaclebes, mas eles o levaram para dentro do castelo. Esperava que o levassem para uma cela de torre ou que o matassem ali mesmo no salão. Mas, ao invés disto, os amaclebes desceram por uma escadaria que foi ficando escura e mais escura. Dumed não soube nem conseguiu contar o quanto desceu, mas só pararam de descer quando não havia mais escadas para baixo e o chão estava molhado. Jogaram-no em uma das celas e desde então o humano estivera desmaiado.

Dumed chorou e riu ao mesmo tempo. Tentou ficar de pé um pouco, mas caiu novamente e decidiu não tentar mais. Chamou pelos carcereiros, pedindo água ou comida, chamou por qualquer um que estivesse ali, chamou por Andêgo, chamou pelo pai, chamou pelo irmão mais velho que prometera protegê-lo. Mas ninguém respondeu. Então dormiu. Pesadelos assustadores trespassaram sua mente e no que pareceu um minuto após ter adormecido, ele acordou. Sentou-se e arrastou-se até a parede. Sua cabeça girava e ele sentiu que não conseguia movimentar muito bem seu braço direito. O humano gritou e chorou mais um pouco. Estava tão desidratado que não desceram mais lágrimas de seus olhos depois de alguns minutos e sua garganta começou a doer. A água encharcava suas roupas e ele tremia de frio.  

Não era assim que um rei deveria morrer, ele pensou, deitando-se.

— Eles deixaram alguma comida quando estava desacordado. É melhor você comer tudo, ou eles não trarão mais — Disse uma voz que Dumed conhecia muito bem. Ele ergueu-se e arrastou-se em direção e ela e acabou dando de cara com uma grossa grade de ferro.

            — Andêgo? Você está bem?

            — Vou sobreviver até eles me cortarem a cabeça — O mago tinha a voz fraca e cansada. Ele parecia estar deitado do outro lado da cela. — Coma, ou eles não trarão mais.

            Dumed queria comer. Comeria todo um banquete naquele momento se tivesse um; por isso arrastou-se novamente até onde julgava ser a entrada da cela e encontrou um prato amassado de aço. Ele pegou o pão duro e com gosto de ferro e lama e comeu-o em duas mordidas. Não conseguiu saboreá-lo muito, mas o pão amenizou a dor em seu estômago; que era a menor de todas as suas dores espalhadas pelo corpo. Dumed voltou arrastando-se para as grades que separavam sua cela da de Andêgo.

            Ele catou e engoliu as ultimas migalhas do pão que caíram em sua roupa.

            — O que vai acontecer?

            — Eu não sei, Dumed. Eu não sei.

            O humano encostou a testa na grade e fechou os olhos. Pensou que tinha adormecido, mas quando abriu os olhos percebeu que não se tinha passado mais que um minuto. Dumed tentou apoiar-se no chão, mas o braço direito fraquejou e ele caiu de cara na pedra molhada. Sentiu um gosto de sangue na boca e deixou-o escorrer para fora.

            — Esta cela foi construída com uma magia antiga dos magos — Andêgo falou de repente. — Você não vai conseguir dormir ou se alimentar direito. Elas pararam de ser utilizadas no reinado do meu avô. São cruéis demais até mesmo para o pior dos criminosos.

            — Eu estou com você — Dumed tentou confortá-lo, mas já não era capaz de confortar a si próprio.

            Entraram em silêncio mais uma vez. Dumed não queria mais tentar dormir. Tinha medo. Se fechasse os olhos novamente teria outro pesadelo e acordaria imediatamente. Haviam perdido a batalha. Não deram fim à Grande Guerra, como prometeram a si próprios dias antes do grande exercito negro acabar com toda a esperança. Não teriam os nomes cantados nas grandes histórias para todo o tempo. Teriam apenas morte. Dumed não conseguia imaginar o modo cruel com que os matariam. Com sorte, cortariam suas cabeças fora com um único e limpo golpe de espada longa. Acabaria com a dor. Não causaria mais dor.

            Em meio ao silêncio, passos ressoaram através das paredes úmidas da masmorra. Dumed desencostou-se das grades e tentou levantar-se, mas caiu de novo. Andêgo não tentou se mover. Os passos se tornaram mais fortes. Alguém estava vindo. Era hora. O fim estava próximo. Um mago entrou e a luz do archote fez doer os olhos do humano, que recuou até a parede.

            Era velho e tinha uma barba branca que chegava ao peito. Vestia uma roupa vermelha e bordada com ouro mago. Uma bengala de prata pendurada em um cinto. O Lorde encaixou o archote no chão úmido e aproximou-se da cela do rei mago. Ele abriu a cela e adentrou para junto do rei.

            — Eu viria antes, Meu Rei, mas tive que providenciar algumas coisas mais urgentes.

            O Lorde tinha uma voz grave e forte que Dumed conhecia.

            — Lorde Grovver? — Disse Andêgo parecendo surpreso com a aparição do Lorde.

            — Sim, Meu Rei.

            — O que aconteceu? Por que...

            — Os cavaleiros voaram, mas apenas dois deles chegaram aos seus destinos. O que foi em direção ao Fim do Mundo e a Mago Branco. Os outros lordes do Despenhadeiro e do Vale não ficaram sabendo de nada antes da batalha ter começado. O exercito de Lorde Sollyeck saiu para a batalha, mas foi desbaratado ainda aos pés da Dádiva por uma horda de goblins e amaclebes. Poucos sobreviveram, e os que conseguiram retornaram para a segurança das muralhas do castelo. Não havia como termos vencido. Não tínhamos nem número nem poder suficiente para pará-los.

            — E quanto às cartas que Lorde Marry enviou?

            — O senhor deve conhecer os poderes dos amaclebes, estou certo disto. Nenhuma das cartas enviadas chegou aos seus destinos — Respondeu o Lorde com pesar na voz. — Lorde Marry subestimou o poder deles.

            Ou talvez tenha superestimado o próprio poder, o humano pensou. Fez-se um longo silêncio onde apenas os pingos da água que se infiltravam pelas paredes podiam ser ouvidos. Dumed encostou-se à grade novamente.

            — Eu preciso sair daqui — Andêgo tossiu. — Meus filhos... Minha esposa...

            Havia certo desespero em sua voz. Lorde Grovver fez silêncio por alguns segundos.

            — Eu já tratei disto, Meu Rei, antes de vir aqui. Seus herdeiros estão bem. Quando eu percebi que a cidade cairia enviei-os através das cavernas subterrâneas para fora do castelo. Eles estão bem, não precisa se preocupar mais. Estão em boas mãos. Lorde Gollgan está com eles.

            Dumed conseguiu lembrar-se vagamente de Lorde Gollgan. Era o mais novo dos Lordes, com voz calma e cabelos ralos até o pescoço. Era o lorde que seguira o plano de Lorde Grovver. Ele raptara duas crianças aquela noite. Era parte do plano para salvar os pequenos príncipes. Agora mesmo, os inocentes pequenos poderiam estar mortos ou sendo torturados pelos amaclebes. Mas era tudo parte do plano.

            — Eles emergirão na Cidade Central e rumarão andando até o Vale, depois tomarão duas mulas das montanhas para rodear a Dádiva até o Fim do Mundo. Com sorte não serão percebidos passando pelo Despenhadeiro. Não é prudente que sejam reconhecidos agora tão cedo. Mas Lorde Gollgan sabe o que fazer.

            — E minha esposa? — Perguntou Andêgo. — Onde está Shiya, está com eles?

            — Não, Meu Rei — Respondeu o Lorde sinceramente. — Não fazia parte dos planos, ela acompanhá-los. O plano de fuga, na verdade, foi sugerido por ela quando eu cheguei aos seus aposentos privados na Torre do Rei. A rainha mandou-nos ir e ficou com duas crianças da mesma idade ao lado dela. Quando descobrirem que aquelas crianças não são os verdadeiros herdeiros, eu torço para que eles já estejam em Último Castelo.

            — Onde ela está? Ela...

            — Os amaclebes não tiveram piedade quando a encontraram em seus aposentos. Lorde Marry estava lá na hora, e também sofreu o mesmo destino. Assim como as crianças, receio — O humano sabia bem o destino que um amaclebe costumava conceder. — Eles logo descobrirão que eles não são seus verdadeiros filhos.

            Dumed não podia ver muito bem, mas sabia que Andêgo estava sofrendo mais do que nunca.

            — Mande-os ao Mundo dos Elfos — Pediu ele. — Estarão mais seguros lá. Por favor.

            — Eu não farei isto, Meu Rei. Os elfos não arriscariam uma guerra como esta em que até mesmo o mundo dos magos caiu... Por causa dos herdeiros de um rei morto — Respondeu Lorde Grovver. — Eu temo que... Eles entregariam de bom grado os dois sem pensar muito no assunto. Não! No Fim do Mundo eles estarão mais seguros por enquanto. Estarão ao lado de seu irmão.

Ambos ficaram em silêncio e o humano perguntou-se se o Lorde era de confiança. Mas parecia que sim. De outro modo, por que motivo estaria ali? Lorde Grovver aproximou-se mais.

— O Fim do Mundo não tem poderio suficiente para enfrentá-los sozinho — Insistiu o rei. — O mundo dos humanos. Você tem que encontrar um modo de enviá-los para lá. Lá eles estarão seguros.

O Lorde não respondeu, mas também não precisava de resposta. Até mesmo Dumed achava que mandá-los para lá seria maior loucura ainda. Não se sabia ao certo o que estava acontecendo lá.

— Eles ficarão salvos no Fim do Mundo, com seu irmão. Com sorte eles nunca percebam que os pequenos assassinados com a rainha não são os verdadeiros herdeiros. Amanhã ou depois eles estarão seguros em Última Fortaleza.

— Que o Mago Branco os proteja — Rezou Andêgo. Que o Mago Branco os proteja, que o Pai dos Humanos os proteja também, pensou Dumed. — Diga-me, Lorde Grovver. O que exatamente o senhor está fazendo aqui em minha cela?

— Estão o mantendo aqui preso, Meu Rei, mas não creio que o senhor tenha muito tempo de vida. Em poucas horas, talvez antes de seus herdeiros chegarem a Última Fortaleza, o senhor estará morto.

O humano torceu o nariz e engoliu em seco. Não podia mais ficar calado. Não desta vez.

— O senhor conseguiu entrar aqui, Lorde Grovver, creio que sem ser visto. Poderia tirá-lo vivo daqui, também sem ser visto — Não era uma pergunta.

            — Se poderia? É claro que eu posso — Respondeu ele com sinceridade, mas inflexível. Ele não estava pensando no assunto. — Mas se vou fazê-lo? Não.

— Por quê? — Perguntou rispidamente o rei humano, mas Andêgo continuou calado.

— Os Lordes servem ao reino, não a este ou aquele rei — Respondeu Lorde Grovver calmamente, virando-se para encarar o humano. À meia luz, ele parecia não estar feliz também. — Se para o bem do mundo fosse necessário liberta-lo, eu não pensaria duas vezes ao fazê-lo. Mas eu não posso fazê-lo agora. Eu não posso substituir o rei dos magos por outra pessoa qualquer. Se eu o tirasse daqui agora ficaria claro para onde ele iria, não é?

— O Fim do Mundo...

— O Fim do Mundo não tem poderio sozinho para defender-se deste exercito, Rei Andêgo está certo. Seja lá quem estiver à frente deste exercito vai querê-lo morto e vai fazer guerra com todos que estiverem para além do Vale. Minha intenção é deixar os herdeiros longe dos olhos deles, não os levar para dentro de outra batalha.

— Você pretende fazer do pequeno príncipe o rei de direito a seu tempo — Concluiu o humano.

— É muito esperto rei humano. Para o bem do mundo, nem todos podem viver. Ninguém sabe disso tão bem quanto os Lordes. Mas eu também penso nos humanos. Se por acaso seu mundo voltar ao que era, esperamos seu apoio. Com isso, certamente conseguiremos trazer os elfos para o nosso lado, e a vitória é quase certa.

O humano entendeu.

— Então irá me libertar? — Ele foi pego de surpresa e não conseguiu esconder certa inquietação. Apesar de tudo que estava acontecendo, ele ansiava em ser livre novamente. Não queria morrer ali, molhado, com fome e sem conseguir dormir.

O Lorde pensou um pouco antes de responder. Balançou a cabeça.

— Não, rei humano. Eu não vou tirá-lo daqui — Aquilo foi outro choque.Eu não vou tirá-lo daqui, mas tenho certeza que o farão em breve. Eles precisam do senhor, ainda.

O Lorde suspirou e levantou-se quando o fogo que iluminava a câmara já começava a ficar fraco. Ele saiu da cela e trancou-a novamente, depois pegou o archote que estava no chão.

— Espero que continue se lembrando de sua lealdade, bom rei.

— Lembrarei — Jurou o humano, ainda incerto do que estava fazendo.

— Confie em Lorde Gollgan, meu rei. Ele cuidará bem de seus filhos.

Andêgo inquietou-se em seu lugar.

— Quem é o usurpador, Lorde Grovver? — Perguntou ele com um pesar na voz.

— Eu não sei, Meu Rei. Mas saberemos em breve.

Sem falar mais nada, Lorde Grovver desapareceu com sua luz, deixando tudo escuro novamente. Os reis ficaram em silêncio por um longo tempo, e assim permaneceram. Dumed arrastou-se de volta para o seu lugar no canto da parede e pôs-se a tremer de frio. Andêgo permaneceu em um silêncio tão grande e tão longo que não se podia saber se ele continuava consciente. Apenas hora ou outra ele gemia de dor. Estava ferido também. Quando o carcereiro desceu para levar a comida, algumas horas depois, o humano apenas o esperou deixar a câmara para avançar sobre o prato. Comeu desta vez o pão em uma única mordida, mas o mago nem sequer se mexeu para comer. Haviam diminuído o tamanho do pão, Dumed percebeu. Quanto mais demorariam parar não trazerem mais nada?

No outro dia, o carcereiro desceu batendo na parede e jogou o prato dentro da cela. O humano arrastou-se até ele, mas quando tentou pegar o pão duro, sua mão sentiu apenas algo líquido. Ele lambeu os dedos e sentiu um gosto forte de tempero. Em dias passados, teria cuspido fora toda a sopa, mas agora era a melhor coisa que comera em dias. Apenas alguns minutos depois de ter terminado de lamber o prato de ferro, Dumed ouviu passos pesados sobre a água gelada que empoçava a masmorra. Ele já sabia do que se tratava. O anão voltou resmungando alto, com uma tocha na mão e pela primeira vez Dumed pode vê-lo. Era um ser minúsculo, mas forte. Tão forte que parecia quase gordo. No subsolo, no reino dos anões, ele talvez fosse um dos mais altos. Não tinha cabelos e sua cara era larga e deformada. Ainda se queixando, ele abriu a cela e o chutou para fora. O humano pode dar uma última olhada no amigo antes de desaparecer na escada. Andêgo estava deitado no canto de sua cela de olhos fechados e com um feio ferimento entre o peito.

Não esqueceria sua palavra, Dumed pensou com pesar. Manteria sua palavra para com o amigo.

Então ele subiu e subiu, empurrado rudemente pelo carcereiro. Começou contando os degraus, mas perdeu a conta a chegar perto dos trezentos; a esta altura não o parecera sequer a metade. Não havia mais água empapando o chão e o ar começava a ficar mais quente e abafado. Continuaram dando voltas e mais voltas, subindo degraus como em um labirinto. A cada lance de escada havia uma porta de ferro que levava a outro nível da masmorra. Eles apenas passavam direto por elas e continuavam subindo. Sempre que passava perto de uma das portas, Dumed ouvia gritos e barulhos. No andar de cima ouvia mais gritos, ainda mais altos, e mais alto ainda no andar superior. Os prisioneiros estavam sendo torturados, ele soube.

Quando a luz da superfície chegou, penetrou de repente em seus olhos e o cegou. Chegou sem fôlego ao topo da escadaria. Quando suportou abrir os olhos, viu que um cavaleiro de armadura azul e um curandeiro, ambos magos, o aguardavam lá. O anão resmungou mais alguma coisa antes de fechar o portão de ferro que levava às masmorras. Dumed fitou os outros dois a sua frente. O cavaleiro de armadura azul o olhava com remorso. O humano viu que sua placa de peito fora riscada ferozmente por uma espada e seu símbolo fora apagado. Lá deveria haver uma coroa azul e branca. Era uma armadura do feita em Ultimo Castelo, percebeu. O curandeiro Dumed conhecia de vista, mas nunca o falara. Parecia assustado e procurava não olhar para o ele.

Ambos escoltaram-no até um quarto, onde o curandeiro tratou de seus ferimentos adquiridos na cela e o vestiu com uma roupa apropriada para conferenciar com o novo rei. Dumed ainda estava fraco e tremendo de febre, mas o cavaleiro fora inflexível em sua palavra. O novo rei queria vê-lo, e finalmente o humano veria quem era esse rei. Ele vestia uma camisa de couro cozido e outra de seda por cima e uma calça de gibão que o arranhava nas pernas. Ataram-lhe na cintura um cinto de couro e madeira coberta com uma bainha vazia, mas não lhe entregaram nenhuma espada. Depois de limpo, tratado e bem vestido, andaram por um corredor clareado pela luz da manhã, em direção ao Salão do Rei.

— Por quanto tempo fiquei lá embaixo? — Perguntou Dumed, não muito certo de que iriam responder. Mas o curandeiro respondeu sem pestanejar.

— Três dias, Senhor.

— O que está acontecendo por aqui? — Arriscou outra vez, mas agora não houve resposta alguma.

O cavaleiro continuou inflexivelmente seu caminho na dianteira, mas o mago olhou para o lado por um segundo antes de estremecer e afastar-se do humano. Dumed olhou para o lado também. Lá fora, ele pode ver através dos grandes arcos, ficava um grande pátio de mármore com fontes e um grande jardim. A chuva caía pesada e o céu estava tão escuro como a noite, mas mesmo assim ele pode ver os amaclebes rondando o pátio como fantasmas negros. Alguns deles passavam de vez em quando montados em chills escuros, sobrevoando o castelo.

— Os amaclebes estão fazendo chover novamente. O inverno voltou — Dumed falou, mas não obteve resposta mais uma vez.

No pátio, os amaclebes viraram-se todos para encara-los passando, como que esperando alguma coisa. Eram as criaturas mais temidas dos seis mundos, os amaclebes. Fantasmas negros vestidos em um tipo de manto negro que deslizava e se perdia no ar como fumaça. O rosto deles não era nunca visto por ninguém, a não ser que o amaclebe pretendesse matar. E para isso eles usavam uma espada longa amarrada às costas. Uma espada negra feita de um material nunca conhecido. Uma espada que podia atravessar tudo a sua frente. Uma espada cortadora de almas.

Dumed nunca esqueceria o toque gelado do amaclebe que o arrastara à sua cela. Era como se todo o seu corpo estivesse imediatamente congelando e tudo parasse de fazer sentido. Então finalmente pode sentir o horror que os amaclebes passaram durante toda sua existência. Aquele era o toque da própria morte.

Ele estremeceu e voltou a encarar seu caminho pelo corredor. A porta do salão do rei estava próxima, o humano podia vê-la alguns metros a frente. Os três caminharam mecanicamente, com os passos sincronizados pela chuva e pela respiração pesada do curandeiro assustado. Quando pararam a frente do portão, Dumed sentiu medo novamente. Finalmente conheceria o novo rei. O usurpador.

O cavaleiro empurrou a pesada porta e a escuridão gélida do salão tomou conta dos ossos de Dumed e o cegou por um tempo. Tudo o que conseguiu ver em seu trajeto até o centro do local tornaram-se apenas fleches pouco conexos em sua mente. Mais amaclebes do que podia contar encontravam-se próximo às paredes e ao redor do trono. Goblins e anões com armaduras pesadas e símbolos grotescos abarrotavam o salão, brandindo espadas e estandartes sangrentos. Mas não eram os goblins e os anões que o assustavam; nem mesmo os amaclebes.

Ele chegou ao centro e caiu de joelhos perante o usurpador. Os goblins e os anões pareceram disputar quem dava a mais alta gargalhada no salão ecoante, mas Dumed não se sentira humilhado. A única coisa para qual ele olhava agora era o trono e o ser sentado sobre ele, e por um momento esqueceu os escárnios e o frio dos fantasmas negros. Parecia como um amaclebe, mas não o era. Uma capa negra começava na metade de seu rosto e terminava arrastando-se ao chão. Mesmo com a cabeça coberta por um capuz, Dumed pode ver que seu cabelo caía a frente do rosto, ainda mais escuros que qualquer coisa. Mas os seus olhos eram o que o haviam colocado ali, sentado ao trono de pedra que pertencera a Andêgo Billytian. Eram negros, frios e severos. Haviam visto o horror, Dumed pode ver. Este ser havia sentido o horror. Este humano crescera no horror.

— Levante-se, humano!

Sua voz ressoou gélida através das paredes negras do castelo e pôs um fim imediato em todo o som presente no salão. Os amaclebes continuavam ao canto, emitindo seu frio, mas o que congelara de fato o salão fora a voz do humano sentado no trono. Fizera Dumed tremer, mas, pela primeira vez, a palavra humano fora dirigida a ele sem nenhum escárnio.

Dumed levantou-se devagar e concentrou-se o máximo em não tremer mais.

— Por que... Por que me tirou da minha cela? — Esforçou-se para perguntar.

O rei sorriu, mas não era um sorriso verdadeiro. Aquele humano não era mais capaz de sorrir.

— Talvez devesse caminhar entre as fontes do pátio de mármore, Dumed. Olhe para a espada da estátua do Mago Branco, e poderá ver onde a cabeça de Lorde Grovver foi posta — O coração de Dumed parou. Ele tinha descoberto toda a verdade cedo demais. Não haveria tempo para os pequenos chegarem a Último Castelo. Estava acabado. — Em breve, a cabeça de Lorde Gollgan estará no mesmo lugar. Eu conheci Jonnan e Dumman Billytian bem o suficiente para saber que aqueles dois filhos de pescadores estavam tomando o pesado destino dos herdeiros.

Ele sabia de tudo. Até mesmo que os pequenos eram dois filhos de um pescador que viera a capital, dias atrás da batalha, Dumed percebeu.

— Quem é você? Por que está sentado no trono mago? Por que quer ser rei?

— Eu não sou rei, Dumed — Ele respondeu com a voz mais fria do que antes. Dumed estava começando a ficar assustado, frente àquele homem. Ele era poderoso.

— Então que é rei?

O humano não respondera, mas seu olhar ficara mais perigoso.

— Saiam! Todos.

Sem esperar sequer um segundo, todos os anões e os goblins se apressaram para deixar o salão. A grande porta de ferro bateu e trancou-se sozinha quando o último anão saiu. Os amaclebes não haviam se movido.

— Quem é rei? — Insistiu ele. Precisava saber.

— Você não precisa saber, por enquanto. No momento apropriado, todos irão saber, então será tarde de mais — O humano falava, mas seus pensamentos pareciam estar longe dali. — Enquanto não retornar a seu pleno poder, eu falarei através dele.

— Retornar? Quem? Guarminus... Graanfsett?

O homem ajustou-se no trono.

— Eu recuperarei os herdeiros — Falou ele. — E você me ajudará com isso.

Dumed riu histericamente, olhando para o chão. Se olhasse nos olhos daquele humano novamente, talvez nunca mais fosse capaz de rir. O silêncio falara tudo.

— E se eu não o fizer?

— Você vai. Quando a hora chegar, você me entregará os herdeiros de Andêgo Billytian.

Dumed responderia aquilo, mas não conseguiu. Ficou olhando para o humano sentado no trono. Do modo que ele falava, parecia que tudo se tornaria verdade. A falta de uma resposta não passou despercebida.

— Você foi amigo do antigo rei, Rickard Dumed, mas por hora vou acreditar no seu silêncio.

Não podia fazer isso, algo gritou em seu interior. Estava errado. Eram os filhos de Andêgo.

— Eu não o farei — Dumed conseguiu falar

O salão de repente pareceu ficar ainda mais frio, se é que ainda era possível. O humano tinha os olhos fixos sobre si, como se o tivesse estudando.

— Eu conheço seus sentimentos. Eu sei o que você realmente quer, no fundo do seu coração... Rei Dumed — As palavras dançaram maliciosas nos ouvidos de Dumed. Rei Dumed. — Você quer o seu mundo de volta. Os bruxos não podem ajuda-lo. Eles não podem devolvê-lo seu mundo. Eu sou o único que pode.

— Não...

O falso sorriso apareceu novamente no rosto do humano.

— Olhe ao redor. Olhe o que eu fiz. O que despertei. O exercito que reuni. Diga-me, Dumed... Ainda duvida do meu poder?

Dumed olhou para os amaclebes ao longo do salão e sentiu-se mal. Se esse homem tinha tanto poder para convocar os amaclebes das profundezas do inferno, por que não... Ele respirava mais pesado agora por causa do frio constante.

— Como o fez? — Foi tudo o que conseguiu perguntar, entre todas as dúvidas que tinha. — Qual foi o preço? Lorde Marry... — Dumed lembrou-se que o velho Lorde estava morto também. Pegou-se rezando silenciosamente pelo Lorde ao Mago Branco, a quem Andêgo mostrara toda a sua fé. — Lorde Marry falou sobre o preço. O preço que um ser teria que pagar por todo este poder.

O sorriso no homem morreu.

— Alto — Foi a única resposta, mas através dela Dumed pode ver a verdadeira dor que o humano sentia. O preço fora mais do que alto, percebeu.

Ele aproveitou o silêncio momentâneo para falar novamente.

— Então pretende fazer guerra por eles?

— Não. Não irei perder o que já conquistei por dois pequenos, por mais valiosos que sejam. Você, Lorde Dumed, o fará para mim.

— Então me dará um exercito? — A ideia o alegrava. Se ele ao menos chegasse a Último Castelo... Lá estaria a salvo com os herdeiros.

— Não. O exercito continuará acampado ao redor da cidade.

Ele não entendia.

— E o que posso conseguir sem um exercito? Último Castelo é forte — Mentiu ele. Pelo menos, esperava que aquelas palavras se tornassem realidade. — Se os herdeiros estiverem atrás das muralhas, sob a proteção de Lorde Jonnan...

O humano levantou-se do trono vagarosamente. Enquanto o fazia, o capuz que cobria sua cabeça escorregou para trás, mostrando o seu rosto por completo. Dumed estremeceu. Já havia estado perto do Mago dos Cinco Destinos e visto Graanfsett durante a batalha e podia dizer que a sensação era inacreditável. Como se o poder deles pressionasse tudo em volta. Mas aquele humano era diferente. Ele era algo mais. Era como estar na presença do próprio Destino, Dumed concluiu.

— Não precisará de um exercito, Lorde Dumed — Ele reafirmou. — Jonnan Billytian está morto!

Foi um choque que ele quase não conseguiu esconder. Por um segundo, pensou que cairia de joelhos novamente sobre o chão congelante. Não! Algo gritou em si. Com Lorde Jonnan, irmão de Andêgo Billytian e Senhor do Fim do Mundo, morto, os pequenos não teriam nenhuma chance. O Despenhadeiro era muito arriscado. Ele sentiu-se sem fôlego e recuou um passo.

Não há mais esperança, Dumed pensou desesperado. Mas alguma coisa veio em sua cabeça como uma onda, e de repente ele entendeu o sentido de tudo até agora. Olhou mais uma vez para o outro humano, esperando que seus pensamentos se provassem reais.

— Ajoelhe-se mais uma vez — Ordenou o homem andando vagarosamente até os degraus de mármore, arrastando sua capa negra pelo chão. Dumed obedeceu, relutante. — Tragam-no sua espada.

Um amaclebe destacou-se no canto e flutuou até o meio trazendo um objeto escuro nas mãos. A espada costumava brilhar em um tom verde nas mãos de seu dono, mas nas era apenas negra nas mãos daquele fantasma. O frio veio com ele, agora mais forte do que nunca. Quando a criatura descansou a espada em suas mãos, Dumed sentiu o desejo contrariado do amaclebe em atacá-lo. O humano os podia controlar por completo, afinal.

A espada brilhou em verde quando o frio do amaclebe se afastou. A sua espada, e espada que fora do seu pai e do seu irmão. Era bom senti-la novamente. O humano parara a sua frente, segurando sua própria espada. Quando a viu, Dumed sentiu uma coisa. Uma coisa que já experimentara antes, mas não conseguiu saber o que era. Ela era maior que a de Andêgo, mas era vermelha como sangue fresco e emitia um calor sufocante. Era a espada mais poderosa que já pudera sentir.

— Como Regente do Trono de Pedra do Mundo dos Magos, eu nomeio-o, Lorde Rickard Dumed, Senhor de Último Castelo e Suserano do Fim do Mundo, até que sua missão esteja completa, e você possa se tornar rei novamente — Ele guardou imediatamente a espada na bainha escondida por trás da capa negra. Foi como se os mundos entrassem em desequilíbrio sem aquele poder. — Traga-me os herdeiros, Lorde Dumed, e eu o presentearei com o seu mundo de volta. Traga-me os herdeiros, que o farei rei mais uma vez. 

Rei outra vez. Dumed só tinha de entregar os herdeiros do rei, os filhos de Andêgo. Ele seria lorde, e depois rei novamente, ou teria que retornar a sua cela e morrer para sua cabeça ficar empalada em algum lugar, ao lado da cabeça de Lorde Grovver e dos outros. Ele só teria de trazer os herdeiros, para ter tudo de volta em suas mãos. Não me esquecerei de meu juramento, algo gritou em seu interior. O juramento. O juramento... Que juramento era esse que ele tinha feito há tanto tempo? Fora há tanto tempo. Um tempo em que ele ainda era rei e governava o seu mundo. Se foi.

Terei meu mundo de volta, Dumed pensou, rindo do preço, da dor estampada no rosto do outro humano. E então gargalhou. Gargalhou, até descobrir que estava ficando louco. 


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Notas finais do capítulo

Finalmente acabou a última parte do Prólogo!
Agora a história vai finalmente começar.



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