As Cores da Liberdade escrita por Ryskalla


Capítulo 1
Primeira Carta - Esse Lugar Idiota




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Caro Charles,

Já faz algum tempo, nem sei porque estou escrevendo isso, provavelmente seja apenas uma esperança cega de que você possa ler essa carta, quem sabe?

A vida aqui não mudou em muita coisa, continua o mesmo buraco idiota, você não sabe quanta sorte tem por conseguir sair desse lugar. Às vezes fico até tarde da noite acordado, perdido em algum projeto e fico pensando se é verdade o que você disse sobre o céu ser azul e não a deprimente cor de chumbo que eu vejo daqui, eu realmente quero acreditar nisso. Também quero acreditar que fora desse buraco exista rios de águas transparentes, e árvores belas e frondosas que ofereçam alguma proteção do Sol. Lembra de todas as histórias que você costumava contar? E as promessas de que sairíamos daqui? Bom, você conseguiu, mas eu não. Eu sei que jamais sairei, pois ninguém aqui iria deixar. Sinto-me um escravo dessa maldita cidade e tudo que me resta é me conformar…

Mas desde a sua partida, apesar da cidade não ter mudado em muita coisa, eu mudei. Agora sou o mecânico mais importante dessa cidade, todos pedem minha ajuda, desde mais simples consertos até os mais complicados. Devo isso a Theodore, lembra dele, Charles? Aquele velho mecânico que fazia trabalhos incríveis? Ele me ensinou tudo que sei hoje e ele faleceu semana passada. Foi uma grande perda, mas não tão grande quanto a sua. Pergunto-me onde você está agora, mas sei que nunca acharei a resposta.

E há outra coisa, Charles, outra coisa que mudou em mim… Agora preciso de cadeiras de rodas para me locomover, irônico, não é? Aquele garotinho que sonhava em voar, agora está preso ao chão, preso a essa maldita cadeira e a esse maldito buraco. Talvez seja por isso que não me deixam sair, acreditam que eu morreria lá em cima, que minha única chance de sobreviver é continuar nesse buraco. Talvez eles tenham razão, mas eu não quero. Eu nunca quis viver aqui. Desde que Theodore morreu, já não possuo amigos, me tornei uma pessoa fechada desde Aquele Dia. Mas foi Naquele Dia que conheci Hexabelle. E quando ela aparece, converso com ela, é uma boa companhia, mas não é uma companhia possível. Foi ela, afinal, que sugeriu que eu escrevesse.

— Você deveria escrever para ele. — Murmurou Hexabelle, certa vez. Se você ouvisse a voz dela, Charles, saberia que é impossível de se ignorar. É tão doce, é tão distante.

— Escrever para quem? — Perguntei erguendo os olhos do desenho de um projeto para purificar a água do rio com mais eficácia.

— Para Charles, você sabe. — Murmurou, encarando o chão enquanto movimentava levemente as pernas. Ou talvez fosse a leve brisa que as movimentava. Os cabelos ruivos esconderam seu rosto fino por um breve momento, até que aqueles olhos verdes e pálidos tornassem a encarar meu rosto. — Ele pode ler um dia, talvez.

— Eu duvido um pouco, Belle. — Respondi enquanto tornava a baixar os olhos para o meu desenho, talvez se colocasse mais um pouco de areia e cascalho… Ou poderia até mesmo adicionar um motor que adiantasse o trabalho...

— Mas mesmo que ele não leia, irá lhe fazer bem, é como um desabafo. E tem a possibilidade dele ler. Mesmo que seja mínima, ela existe. — Aquele olhar, eu sabia que Hexabelle não iria desistir tão fácil. Era algo que muitos poderiam julgar como um defeito, mas eu achava realmente encantador.

— Eu tenho você para desabafar. — Sorri, encarando-a mais uma vez, larguei o lápis em cima da mesa para dedicar a ela toda a minha atenção. — Sei que sempre posso contar com você.

— Você sabe que não é a mesma coisa… — Murmurou e tornou a encarar o chão, talvez estivesse corada, mas acho que não seria possível dizer. — Não posso substituir Charles e não é certo se aproximar de mim… Já não faço parte do seu mundo, não é saudável conversar comigo.

Suspirei, talvez ela estivesse certa, mas eu não queria que ela desaparecesse, Charles, ela era minha única “amiga” e por isso deveria ter cuidado, bastante cuidado.

— Talvez não seja a mesma coisa, mas me sinto feliz conversando com você. — Saí de trás da mesa, empurrando as rodas para me aproximar da bancada onde Hexabelle se encontrava sentada. — Eu não sou uma pessoa saudável, então não vejo porque me preocupar com isso. Além do mais, sei que não concorda com isso. Se concordasse não estaria aqui.

— Pois deveria se preocupar. — Retrucou, a contragosto, eu tinha certeza que estava satisfeita com o meu comentário, mas eu realmente me sentia feliz conversando com ela. Foi então que tudo deu errado. — Bom, talvez eu deva ir embora, então! Afinal, já estou morta mesmo.

Fico lembrando dessa cena de três dias atrás, amaldiçoando minha boca grande. Desde então Hexabelle não tornou a aparecer e acho que o verdadeiro motivo de escrever essa carta, Charles, é que Hexabelle foi embora. Nunca entenderei o porquê dela ter ficado tão nervosa, talvez se ela tornar a aparecer eu deva perguntar. Mas sinto medo, Charles. Medo porque também concordo com ela. Eu não deveria conversar com os mortos.


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