Como Se Tornar Completamente Irresponsável escrita por isafelix


Capítulo 5
O Trabalho




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     25 de Janeiro. Quinta.

     Ao que Chefe se referia ontem era a ida ao clubinho dos oficiais, à noite.

O Projeto C. Ah, Projeto Cu. Quem inventou esse projeto? Dizem que para manter a ordem é necessária uma hierarquia. Para isto serve o clubinho. Reforçar essa hierarquia.

       Diretor anunciou durante o jantar que o Projeto C entraria em vigor a partir daquela noite. Ele é um homem robusto e esquisito. Sempre usa uma camisa xadrez de botões, um cinturão e cabelos pretos penteados com muito gel. Seu nome é Victor Dante. É um nome bastante informal ao meu ver. Tipo amigável. Você consegue se imaginar chamando um cara austero e distante, como Diretor, de "Victor"? Meu camarada Victor. Não, isso é muita proximidade. Só o chamamos de Diretor, então.

          No jantar, geralmente não há mais nenhum Restos (os garotos que não dormem aqui), então ele discursou livremente sobre coisas que alunos normais não precisam se preocupar. Ele ficou de pé ao lado da mesa em que os sucos são servidos. A cantina é branca, grande, divida em mesas espaçosas de tampo verde e banco único. As nutricionistas daqui são um saco.

          Enquanto ele falava, podia ver os olhos de Chefe brilharem. Ele se sentava no banco à minha frente. Ele sempre sonhou em conquistar o lugar de Thiago, o capitão da nossa Companhia. Ser o Chefe do Scamp não é o bastante. Chefe odeia Átila, porque Átila é o segundo mais poderoso e não tira proveito disso, na verdade, sempre reclama do tanto de trabalho e do pouco beneficio. O terceiro é Eric. Ninguém odeia Eric.

          Diretor falou de como O Projeto, com seu sistema de missões e pontos, méritos e deméritos, ajudava a formar cidadãos conscientes, pessoas melhores, estimulava a competição saudável. Mentira, eu não sei se ele realmente falou isso. Estou inventando, porque não sou confiável, diário. Fiquei o discurso todo prestando atenção num inseto que batia contra o vidro da janela atrás de Diretor. As janelas são daquelas antigas, abrem puxando uma espécie de alavanca. Se puxada para baixo, o vidro se movimenta um pouco para dentro, espaço de uma cabeça pequena, eu acho. Na minha mente, eu puxei aquela alavanca várias vezes para o pobre besouro conseguir seu caminho até as luzes brancas e brilhantes da cantina. Quando me dei por mim, Diretor terminava um Pai Nosso e nós fomos liberados para comer.

       Chefe foi o primeiro a terminar de comer e o primeiro a se levantar. As Companhias comem juntas, na mesma mesa, normalmente, para evitar balbúrdia e facilitar a contagem do gado, digo, das pessoas. Nós fazemos tudo juntos, inclusive entrar e sair das refeições. Por isso, Thiago, sentado a três corpos de distância, fuzilou Chefe com o olhar.

          - Eu não terminei. - disse, ríspido. Chefe não quis saber, revirou os olhos.

          - Thiago, posso ir ao clube hoje também? - pediu, como quem não quer nada.

          - Você não é um oficial. - zombou, dando um meio sorriso, e abaixou os olhos para seu brócolis.  Chefe torceu a boca em desprazer. Ele não conseguiria sair da cantina, vigiada, sem permissão. Ninguém, além de mim, até o momento, prestava atenção nos dois, mas Eric, sentado ao lado de Chefe, passou a fazê-lo.

            - Eu o deixo ir em meu lugar, Thiago - Eric interveio, sorrindo. - Estou atolado em trabalho e preciso estudar. Nem gostaria de ir e não fará diferença se eu mandá-lo como meu representante. Trevor não achará ruim.

          Os olhos de Chefe brilharam mais uma vez. Thiago deu outra risadinha sarcástica e levantou o rosto, sobrancelhas juntas.

           - Eric, algum dia esta prestação de serviço social irá lhe matar. Tudo bem, tanto faz, não interferirei em sua autoridade. - cedeu e pegou seu celular, já cutucando Átila para lhe mostrar algo e desviar-se do assunto.

Chefe comemorou e agradeceu Eric mil vezes. Eric tirou do bolso da calça um bloquinho amarelo, escreveu algo e assinou, entregando-o.

        Aquilo faz parte do Projeto C. São os bilhetes. Como há muitos monitores, bilhetes são são o modo como eles comunicam uma permissão ao aluno.  A forma na qual o staff acredita que você está seguindo ordens e não mentindo para se safar. Com um bilhete devidamente assinado consegue-se tudo. Desde sair a noite durante a semana e não voltar, até perder aula. Só é necessária uma assinatura de algum oficial e sua vida fica mais fácil.

         Não sei se ainda há a necessidade de afirmar que há um tráfico poderoso de bilhetes oficiais.

      Muito mais tarde, estávamos na sala comunal, brigando pela vez no videogame. Eu, sentado numa rodinha de cinco garotos encostada à parede ao lado da escada, ouvia uma história excitante sobre as aventuras de nosso amigo Rafael e uma prostituta lésbica. Ele tem quinze anos, como Daniel e Guilherme. Quando eu fizer quinze anos, em breve, também espero ter a vida agitada de prostitutas e bares como a deles.      

        Bem, a história foi interrompida, porque Chefe apareceu e anunciou, animado:

        - Fui ao clubinho dos oficiais. A boa notícia é que o Scamp parece ter ótimas oportunidades neste ano, eles estão desfalcados. Amanhã quero convocar a primeira reunião oficial do Scamp.- ele disse, fazendo soar como a coisa mais importante do mundo. Nós nos entreolhamos e assentimos. O trabalho volta algum dia, ele sempre volta. - Outra coisa, haverá eleições para monitor dos Restos -  pois Diretor quer passar a imagem de uma sociedade democrática - e é de vital importância para o Scamp vencer, assim teremos representatividade até na área dos Restos. - continuou, soando quase patriótico - Por último, haverá a primeira missão sábado.

          - Missão? Da escola? Já?! O treinamento nem sequer retornou!! - protestei, em voz alta. Agora havíamos a atenção de metade da sala.

           As missões não são legais. É basicamente um dia de trabalho pesado e hipocrisia. "Capinar toda a horta do coronel da cidade tal, afilhado de Diretor, ajuda vocês moleques em um bando de virtudes". "Quais?". "Cale-se, seu insolente, várias, todas, você quer méritos ou não?".

         - Sábado eu tenho um encontro! Você viu como as meninas estão gostosas este ano? - um de nossos amigos, Treco, falou, subindo no sofá. Ele é baixinho, magro e espinhento. Tem treze anos, mas age como se fosse o mais velho. Átila caiu na risada.

         - Hm, tá virando um homenzinho? - disse, enquanto se admirava no espelho de mão.

         - Sem discussão, nós precisamos dos méritos dessa viagem para o Scamp! - Chefe brigou, já raivoso.

         - Você está louco par roubar meu lugar, certo, Marco? - Felipe disse, se intrometendo. O nome de Chefe é Marco Aurélio. Felipe ocupa o cargo de "Líder do Time". A cada missão a Companhia é dividida em dois times. Este cargo muda freqüentemente, sendo ocupado pelo aluno que mostrou maior desempenho. Felipe era o líder do ano passado, junto a um garoto, Gris. Gris é super alto, encorpado e tem a pele mais escura que eu já vi. Seus pais são angolanos.

        - Sei que não vou a lugar nenhum, pois tenho um encontro com Lara Bernardes - Treco voltou a gritar, enquanto dava pulinhos no sofá.

        - Sim, você vai. - Thiago protestou, sem desviar os olhos do videogame. Sentava-se à ponta do sofá e apertava os botoēs do controle com uma determinação exagerada.

          - Não vou! Usarei um bilhete! Direi que estou doente!

      - Gênio, você contou seu plano - eu disse, rindo. Ele parou de pular e olhou por um segundo para o horizonte, perdido. Depois bateu a mão na testa e voou em meu pescoço, tentando me enforcar. Começamos a maior luta. Só podia ouvir Chefe e Felipe discutindo, Átila rindo e Thiago mandando todos calarem a boca.

             Meus amigos e eu participamos de uma brincadeira, um grupinho. É uma piada velha, desde muito antes de eu entrar na escola. Serve apenas para diversão, para brincarmos de governantes.

      Cada grupinho é composto pela respectiva Companhia. Tem um nome, cargos hierárquicos, símbolos, reuniões, patriotismo, até dividimos a escola por áreas, cada área dominada por um grupo. Não sei quem os inventou, mas a piada continua. É bem engraçado. O meu chama-se Scamp, o símbolo é uma caveira. Há outros quatro grupos reconhecidos como participantes do joguinho.

        Além disso, há o chamado tráfico. Traficamos bilhetes. Eu já lhe expliquei antes o que os bilhetes são. Consegue-se qualquer coisa com aquele papel mágico. Há um comércio de bilhetes entre os grupos.

        Mas, óbvio, é só zombaria. Nunca nós seríamos corrompidos pelo poder ou nos deixaríamos influenciar por um papel qualquer. Claro que a amizade e o amor são mais importantes!!

          Os monitores são corrompidos pelos grupos. Nós os dividimos também, cada grupo fica com alguns. Não é divertido?!  A maioria dos “residentes” está filiado a um grupo. Pois aí, eles podem contar com ajuda em várias áreas. Isso subiu à cabeça de todos. Há idolatria a seu grupo, rivalidade com os outros.

         Mas, de novo, estamos só brincando...    

   7:20

   Mesmo sem o treinamento ainda, o café continua a ser servido às 6:15 da manhã, então nós somos obrigados a acordar cedo ou a ficar com fome. Tecnicamente isso é porque o ensino médio pode escolher estudar durante o turno matutino. Mas também serve para alimentar o sadismo alheio do staff.

       Chovera a noite toda e pela manhã os pátios alagados brilhavam acinzentados à luz do sol nascente escondido entre as nuvens. O cheiro da grama molhada e o clima europeu até me davam alguma esperança.

      Chefe se posicionou atrás de um caixote velho de madeira, corroído pela umidade e pelo tempo. Ele bateu duas vezes na caixa, para testar sua segurança, e depois de confiante, apoiou as mãos sobre ela, pigarreando. Encontrávamo-nos no Mato. É a espécie de bosque perto das últimas quadra. As várias árvores abriam ali uma brecha, mas o teto natural florescia ainda cheio de orvalho, encobria nosso esconderijo. O lugar é sujo, mal capinado, de modo que as ervas daninhas sobem até nossos tornozelos, muito barro e terreno acidentado, cheio de pedras.       Chefe, o garoto mais velho ali. Malha até mais do que eu. Ele me ama, literalmente. Graças a ele eu entrei no Scamp e fui promovido a general, pois quando cheguei, com onze anos, magrinho, loirinho, a velha história de sempre se repetiu: ele queria me proteger e tudo mais... 

       Gris e Treco também fazem parte, Gabriel Marra, cabelos castanhos, olhos muito espaçados, nós o chamamos apenas de Marra, pois existem muitos “Gabriel”, embora chamemos o Rafael de Rafael, apesar da quantidade deles por aí.

      Guilherme e Daniel, os irmãos, Greg, Drew, e eu. O resto do Scamp são soldados que não decidem nada junto aos novatos do alojamento, mas eles não sabem de nada ainda.

      Antes de sentarmos, fazemos o importantíssimo ritual de apertar as mãos uns dos outros, formalmente, fazendo cara de adultos espertos, mesmo sendo amigos. Mas ali não interessa as relações pessoais, só o grupo.

      Nós nos sentamos ao redor de Chefe, em pedras ou em troncos, cheios de musgos e molhados, e os anúncios começaram:

     - Neste ano nós arrebentaremos a cara do Crux. Ninguém ganhará nosso território.

      - Quem liga? Desde que consigamos bilhetes para nós mesmos. - Rafael falou, sem pensar.

     - Como você conseguirá bilhetes se o território for de outro grupo, idiota? - Chefe se exaltou, já ficando vermelho.

      - Só quero as garotas. Ah, Lara Bernardes.... – Treco confessou, com uma cara excitada, enquanto tamborilava os dedos, hiperativo. Nós rimos.

      - Quero passar de ano... – Marra murmurou, olhando para baixo. Gris brincava com um graveto, desenhando no chão, mas soltou-o e, em um salto, exclamou:

      - Você só quer a mamãezinha. Lembra-se do ano passado, fracote?

       O pessoal disparou a rir e uivar. Marra ficou vermelho como uma pimenta e se encolheu. Ele tem apenas doze anos e começou a dormir aqui só no meio do ano passado. Falaram-nos que o motivo foi seus pais precisarem se mudar para Mato Grosso e ficou difícil levar o filho tão repentinamente. Ele passava a noite em claro, na sala comunal, com as luzes acessas. Pobre garoto. Não conseguimos ajudá-lo, então Felipe falou pra Trevor, que ligou pros pais do menino. A mãe dele veio para cá e dormiu com ele por uma semana.       Nós fomos ameaçados, não podíamos zombar de Marra, mas não adiantou. Assustá-lo à noite, chamá-lo de “covarde, menina, marica, frangote, gay, filhinho da mamãe” era o mínimo. Ele só está vivo ainda por fazer parte do Scamp. E ele só faz parte do Scamp porque a mãe consegue qualquer coisa que ele pedir.

     Passamos todos a falar ao mesmo tempo, em pé, seja caçoando do garoto, ou só aumentando a anarquia. Eu estava adorando.

     - Tá legal, chega – Chefe falou e nos mandou sentar. Nós lhe obedecemos.  – Amanhã teremos uma festa para fazer acordos diplomáticos com os outros grupos e arrecadar mais membros. Será uma festa aberta e quero todo mundo sabendo! – anunciou. Nós batemos palmas, animados.

      - Mas eu tenho um compromisso... – Marra chiou, se encolhendo nos ombros. Nós o vaiamos.

      - O Scamp é mais importante. Desmarque. – Chefe ordenou e ele ficou calado. - Ly. - chamou-me. Eu o encarei.

       - Consiga que Eric aprove uma quebra de horário para o alojamento, hein.

      - Fácil. -  concordei, sorrindo.

       Eu sou “general” do Scamp. Meu papel é basicamente dialética com superiores.Depois distribuímos funções para cada um, falamos mais sobre os outros grupos, apertamos as mãos como os bons negociantes que somos, e terminamos a reunião.

     Imediatamente procurei Eric em seu quarto. Ele lia Rousseau, deitado na cama. Como a corrente de poder é toda corrupta, ludibriei-o com facilidade. Falei com Eric e ele concordou em ajudar. Ele falará com Átila, seu superior, e para nós será dito alguma desculpa como "Diretor acha benéfica uma pausa em nossa rotina pesada, por isso concordou em nos dar essa folga".       Parece não convincente? Concordo. Mas a verdade é que o Scamp tem um contrato com Eric. Nós compramos sua revista, ele colabora. Eric tem um contrato com Átila. Se também colaborasse, Átila poderia continuar com suas relações homoafetivas e Eric nos faria nunca dedurá-lo. Assim, falava com Thiago, e, com seus próprios acordos, ele concorda em mentir para Trevor. Mas Trevor não é burro, ele sabe a verdade, porque já estudou aqui, mas sabe que não pode se meter conosco, pois conseguiríamos acabar com seu emprego, fazendo todos os alunos “residentes” se juntarem contra ele.Em troca de sua complacência, nós somos bonzinhos.

    Ah, e qual motivo disso tudo? Desses grupinhos, diplomacia, governar o mundo? Pra quê?

O sinal irá tocar. Te vejo em breve, diário.


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