Como Se Tornar Completamente Irresponsável escrita por isafelix


Capítulo 4
A Menina




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24 de Fevereiro. Quarta.


      Ontem à tarde, como sempre, eu tive aula. Ah! Sublime. Salas lotadas, cinco horas seguidas sentados, calados, tendo sua mente drenada, junto a crianças burras e desagradáveis, em um ambiente estressante, e adultos idiotas gritando e falando como você é inútil, irresponsável e nunca conseguirá nada na vida enquanto você não desistir de todos seus sonhos de criança e começar a trabalhar cega e loucamente como eles.

    13:45 

    Depois de ter ido até meu quarto, após o almoço, colocado o uniforme das aulas – a camisa branca de botões, já mencionada antes, com o escrito "residente” embaixo de meu nome - me arrastei para as aulas. O sol me cremava e esvaiu todo o resto de meu ânimo. Continuei a jornada pela grama, passei a cerca que separa o lugar dos alunos normais, chamados de “Restos” por nós. Lá há uma cantina e três blocos de salas de aulas. O meu é o bloco A.     Havia muita gente ali. A escola é um dos maiores lugares da cidade e, com certeza, é o colégio mais popular. Minha cidade é meio rural, com, no máximo, cinquenta mil habitantes. Eu fiz as contas por mera curiosidade e percebi ter uns oitocentos alunos ao todo, sendo cento e vinte e cinco “residentes” (dos “residentes” eu sei, porque somos distribuídos em 5 Companhias de 25 alunos).  Mas na hora das aulas, essa divisão supostamente desaparece.

      O bloco A é velho e rústico, as paredes são amarronzadas, assim como o piso e o teto. É meio melancólico. Na minha sala, também marrom e com carteiras de madeira, estudam 50 pessoas. Vinte e duas meninas, o resto meninos. Oito “residentes”. Eu sei, porque eu contei. Não tenho nada para fazer durante as aulas também. Ano passado, contei todos os vãos da persiana na janela, quantas luzes há no teto, quantas garotas tinham estojo rosa. Esse ano não parecia mais promissor. Acho que passarei o tempo revisando os textos daqui, do diário. Ou lerei outro livro.

      Nossa sala é estranhamente silenciosa, porque os professores nos ameaçam com perda de bolsa de estudos (cinco crianças a têm na minha sala, inclusive meu bom amigo Greg) ou com o futuro.


      17:05

     Temos um pequeno intervalo entre um professor sair da sala de aula e o outro entrar. Nós não saímos.  Mandam-nos ficar sentados e calados. Mas não é isso que acontece, eles se levantam e vão conversar. Mas eu não queria. Minha descrença absoluta me impedia de me mexer, deitava a cabeça na mesa.

      Eu nem lembro no que eu pensava. Talvez pensasse sobre quantos pensamentos nós pensamos por dia. A internet, acessível escondida através do meu celular, já não me agradava mais. Só queria desaparecer e não estar no meio daquela multidão de crianças esperançosas demais.

       Mas uma possibilidade de melhoria da situação apareceu. E veio em forma de garota.

Seu nome é Talita e calma! Eu não vou falar sobre como estou apaixonado e quero amá-la com todo meu coração. Não é o caso.

       Talita é só uma garota bonita e gostosa. Ela tem olhos de Capitu, puxados, que sempre me olham daquele jeito “venha para o quarto comigo”. Ela se parece uma índia, cabelos pretos muito lisos, decorados sempre de um jeito estranho, com trancinhas e miçangas coloridas e fosforescentes. Ela tem peitos pequenos de garota de treze anos que, estranhamente, são atraentes.

         Eu a vi se aproximando por entre as carteiras, desviando-se de suas amigas, que também me olhavam e cochichavam. Ela devia finalmente ter tomado coragem e vinha se atirar para cima de mim.

         Eu a adoro.

        Não me dei ao trabalho de mexer minha cabeça, mantive-a descansando sobre a mesa. Ela se ajoelhou ao meu lado e colocou as duas mãos em minhas pernas, perto do joelho, sorrindo.

         - Oi, Ly. – sussurrou de uma forma quase diabólica. É seu jeito de falar. Devagar, pronunciando cada palavra de um modo quente, como se cada uma fosse indispensável.

          - Como vai, amor? – eu respondi, sorrindo o meu tipo de sorriso safado: erguendo levemente as sobrancelhas, puxando o lábio um pouco para o lado, enquanto encaro profundamente seus olhos e sua boca. É deliberado. Eu sempre tento sorrir dessa forma, as garotas sempre caem nesse tipo de baboseira.

          Ela me ofereceu um dos lados de seu fone. Tocava Los Hermanos. Eu ergui meu corpo, sentando-me apropriadamente, de lado. Ela tomou lugar no meu colo, apesar de ser proibido, apesar das câmeras. Nós não nos importamos.

       Eu não esperava nada, mas ela virou o corpo para mim, de modo que seu rosto pudesse fitar o meu, e sussurrou, me olhando fixamente com seus olhos mel:

      - Vamos sair daqui. – o modo como falou me lembrou de uma criança, sorrindo com a boca e os olhos. Achei que ela estivesse brincando e respondi:

     - Como? – sussurrei de volta, sorrindo o tal do sorriso safado.

     - Vamos sair daqui e ir aproveitar a vida como naqueles filmes clichês dos anos 80 – murmurou cada palavra devagar, sem desviar seu olhar.

       Oh, como eu queria poder fazer isso. Como eu queria dar o fora desta prisão e ir me divertir lá fora. E porque não vamos, porquê? Medo? É, medo, mas de quê? De sermos repreendidos por alguém aleatório? Só não fazemos tudo que queremos porque fomos treinados assim, a ficar caladinhos, como cachorrinhos obedientes.

      Esse pensamento passou por minha cabeça rapidamente enquanto olhava-a e ela acariciava minha bochecha. Ela devia esperar a negação, mas eu assenti.

      - Vamos.

      Ela aparentou surpresa e hesitou por um segundo. Como eu falei, o medo passou pela nossa mente. Mas ela não voltaria atrás. Levantou-se, sorrindo. Eu apoiei as mãos na mesa e fiz o mesmo.

     - Vamos sair daqui – sussurrei de novo, peguei uma de suas mãos e rumei para a saída, desviando das carteiras apertadas e dos alunos, ignorando os materiais escolares deixados para trás. Não havia nada em cima de minha mesa, o professor nem notaria a minha ausência, pois faltas são comuns e notadas apenas na primeira aula.


      Eu esperava que meu professor já estivesse na porta, pronto para entrar e começar a aula, mas o corredor escuro estava vazio, apenas com a pouca luz vinda das janelas abertas, piso de madeira iluminado.  

        Nós seríamos pegos se tentássemos sair do prédio, com certeza. Há câmeras por toda parte, monitores, professores e nós estamos literalmente trancafiados, não podemos deixar o bloco de salas, pois todas as portas são trancadas. Se conseguirmos pular as janelas, não se preocupe, há o portão vigiado e o muro gigantesco com arame farpado. Eles dizem que é a para a “segurança”. Ah, tão prezada segurança, nossa própria jaula.


       Continuei conduzindo-a pela mão, agora meu estômago já revirava graças ao bom e velho medo. Ela me seguia dando seus passos leves e rápidos. Abri a porta da escada de emergência no final do corredor e entramos no lugar escuro e fedido. A porta se fechou atrás de nós. Sem ligar a luz, corremos o máximo que pudemos, para cima. O bloco tem três andares e continuamos sem parar até o último. O que quase ninguém sabe é da outra escada. A escada que leva para o terraço. Serve para os empregados fazerem manutenção e definitivamente não serve para alunos. Chegamos ao último andar e saímos ao corredor. Vazio, escuro, janelas trancadas, a única saída sendo a escada normal, do outro lado.

        Talita e eu seguimos até a primeira porta. Era para ela estar trancada, como todas as outras geralmente ficam, mas os garotos “residentes”, no ano passado, deram um jeito de quebrar a fechadura. Então, eu só a empurrei e demos de cara com uma escada detonada. Subia para uma claridade. Uma luz no fim do túnel. Entramos e, pulando degrau em degrau, pude sentir o ar fresco  lá de cima.

          O terraço é acinzentado, cheio de entulhos, tubulações e algumas ferramentas. Mas também é cheio de moleques e suas garotas, sentados, se pegando, bebendo. Por isso a tranca é quebrada. Aquele é um grande esconderijo.

            Nós saímos da escada, atravessamos uns canos gigantes, um casal deitado e rumamos uma sombra, atrás de uma pilha de entulhos. Sentamo-nos e meu coração só não parou de bater tão rápido por causa de Talita. Eu me deitei e ela apoiou sua cabeça em meu peito.

         Tudo então ficou absolutamente perfeito. Eu gostaria de agarrá-la, mas ela não me deixaria assim de primeira. Ela falava sobre as nuvens e eu só conseguia prestar atenção em nossas respirações simultâneas e em seu corpo quente.

         Quando o sol definitivamente esfriou graças à sua proximidade de ir dormir, para lua roubar-lhe o lugar, nós saímos de detrás dos entulhos e rumamos à beirada do terraço.

A escola é linda, pelo menos. E enorme. Ela cobre uns quatro quarteirões da cidade. Do lado de dentro, divide-se em construções retangulares, os blocos pintados de branco, e, circundando-os, gramados de grama. Para passagem de uma parte à outra, há corredores externos em formato de túnel composto de arcos, enfeitados por trepadeiras floridas.

Os três blocos de salas de aula e as piscinas ficam mais ao norte da escola. Então, passando-se a cerca, descendo por um corredor externo, chega-se no pátio principal, o pátio com uma bandeira estendida. Ao lado dele está meu alojamento. No outro lado, o bloco de escritórios de Trevor, Diretor e outros, bem à frente de pinheiros artificiais plantados. É a última construção antes do pequeno declive gramado, chamado por nós de barranco, que leva até um campo enorme, quatro quadras e umas árvores, o Mato.

          Podia ver tudo dali. Fiquei em pé, ao lado de Talita, de mãos dadas. A altura me animava e uma brisa soprava levemente. Poucas vezes eu me sinto tão feliz. Nós nos sentamos ali na beirada. Acho que estávamos visíveis, mas você se surpreenderia com como humanos não olham pra cima quase nunca.

        Lá embaixo, as coisas pareciam uma maquete. Meu estômago gelava só de pensar na mísera possibilidade de cair. Talita também devia estar pensando nisso, pois me abraçava com força, como se eu fosse a última coisa antes da queda. Que poético.

        Virei-me para encarar seu rosto, ela lambeu levemente seus lábios. Ah, a menina.

Sinto falta de Sky.

    

   19:40

    Depois, após o jantar, houve mais coisas. Wanessa, a tal coordenadora de quem eu falei, enchia o saco em minha sala comunal, implicando com todos, seja a “roupa inapropriada”, unhas ou cabelos. Ela é morena, alta e magra. Sempre usa o cabelo em um coque. Sempre é chata. Drew não estava na sala comunal, apenas uns cinco garotos se encontravam lá, por, provavelmente, não terem conseguido fugir.

     Eu entrei e corri escadas acima o mais rápido possível, embora ela tenha me parado e me feito prometer que eu passarei na barbearia para aparar meu cabelo. Logo encontrei um de meus amigos, Felipe. Cabelos lisos, castanhos, olhos castanhos, dezesseis anos. Ele, carregando uma bola, me chamou para jogar. Eu aceitei, mas fui trocar de roupa antes em meu quarto.

      Ao entrar, encontro a cena mais estranha de todas: meu colega de quarto analisava seu dedão do pé, vestindo um pijama enorme e roxo. Ele parou abruptamente ao me ver, ficando vermelho.

Eu caí na risada, mas ele não proferiu mais nenhum som, sem saber o que fazer. Pobre coitado. Eu não conseguia parar de rir. Troquei de roupa e saí de perto do fungador.

        Contei para Felipe, que tem uma boa patente então, acessa as fichas dos alunos. Ele disse que meu colega, Max, tem uns históricos de esquizofrenia e tudo mais. Só que o modo como confundiu a doença por “elefantíase” antes me fez duvidar da veracidade.


         Hoje

     Antes de estar nesta sala horrorosa descrevendo esses fatos, aproveitávamos a falta do treinamento, que, em dias normais, ocupa duas horas de nossa manhã, das sete às nove, e fazíamos bagunça na sala comunal. Daniel arrancou sua camisa, pulou no sofá, agarrando o controle do Playstation, mas Átila o derrubou rapidinho, enquanto tomava o negócio de sua mão, em meio a protestos. Mais uns três garotos se aproximaram, para brigar pelo outro controle ou só para rir da cara de Daniel, que se levantara e tentava socar Átila até ele resolver devolver-lhe. Eu me sentei no outro sofá, assistindo e aplaudindo, mas logo me enxotaram também, pois pessoas como Cenoura e Thiago queriam se sentar.

      Eu resolvi subir para meu quarto, pois a sala estava cheia de caras, suados e fedidos, batalhando por um videogame imbecil. Mas, já no andar de cima, me arrependi de não ter ficado quietinho na sala. Achei o Chefe. Ele quase adentrava completamente seu quarto, quando me viu com o canto do olho, se virou e veio na minha direção, aparentemente feliz por me ver.

     Sabe o pensamento “ah, não, você.” junto com aquela cara que você faz para sua tia gorda quando ela tenta apertar sua bochecha? Pois é. Foi pior.

      Acho que ele acabara de chegar, pois seu cabelo castanho-claro ainda estava grande, penteado para cima cheio de gel como um perfeito playboy faz. Ele ainda usava sua camiseta cinza por baixo dos seus 1,80m de altura e 90 quilos de músculos. Ele tem uns dezesseis anos, sei lá. Chegou perto de mim, me deu um tapão nas costas, rindo, me cumprimentou com um xingamento (normal) e foi embora. Eu fiquei surpreso, pois nosso encontro foi rápido. Só que na porta de seu quarto, ele voltou o corpo para mim e disse:

      - Ah, Fantasma, é amanhã! – disse, me chamando pelo meu outro apelido. Eu o encarei, calado. Minha mente vasculhou todas as possibilidades de eventos para amanhã.

       - Amanhã... Ahan... Ok... – concordei, sem conseguir me lembrar. Talvez seu cérebro do tamanho de uma noz não notasse. E deu certo, ele só assentiu firmemente com a cabeça e repetiu:

       - Amanhã!

       - Uhum...

       Ele não pareceu decepcionado pela minha resposta, fez um sinal positivo com o dedão para cima e entrou em seu quarto.

    Eu acho que estamos TODOS enlouquecendo. O amanhã é hoje. E seja lá o que acontecer será provavelmente após o jantar. Então, amanhã eu te conto tudo, diário.



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