Como Se Tornar Completamente Irresponsável escrita por isafelix


Capítulo 3
Os Meninos




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     23 de Janeiro. Terça.   


     Hoje, nada aconteceu. Fim. Que diário promissor, estou impressionado.

     Mas não estou brincando. A rotina ainda não se normalizou. Por causa dos novatos nos alojamentos e tudo mais, esta é a semana de adaptação. Não há ainda treinamentos pelas manhãs, eles estão sendo divididos nos respectivos quartos e as aulas são só chateações, embora as horas de estudo ainda sejam obrigatórias.

        O mais emocionante acontecimento de hoje foi Daniel me chamar para jogar baralho, escondidos, com Guilherme, seu irmão gêmeo, e Drew. Daniel é da minha altura, apenas um pouco mais escuro do que eu, tem cabelos castanhos, quase loiros, e é mau. Ele é meu amigo mais antigo. Nós brigamos para valer. Encontrei-o logo ao sair de meu quarto, no corredor, pois ele é meu vizinho da porta da frente. Ele me cumprimentou dando um soco no braço, me chamando de “viado” e rindo. Eu retornei dando-lhe uma gravata, que é uma chave de pescoço, até ele implorar por misericórdia. Daí, me chamou para jogar.

      O lado de cima do alojamento é composto por dez quartos minúsculos, cinco em cada corredor, por paredes, teto e piso brancos e por janelas gradeadas. Seguimos para o quarto de Drew, o terceiro do corredor direito, o oposto ao nosso. Guilherme, sentado na cama, separava o baralho, enquanto Drew ouvia uma música bastante ruim pelo computador. Seu quarto é igual a todos os outros: três camas, três escrivaninhas coladas uma à outra, um armário, dois criados-mudos, uma janela com persianas de metal, um pequeno corredor de um metro, no máximo, que leva à porta de saída e, em sua parede esquerda, ao banheirinho.

        Ambos me cumprimentaram e tratamos de nos apressar para o jogo, enquanto despejávamos as novidades das férias, tentando fazer as respectivas aventuras cada vez mais escandalosas. Guilherme, apesar de ser gêmeo de Daniel, não se parece nada com o irmão. Tem cabelos pretos, usa óculos, é bem mais intelectual. Passou as férias, segundo ele, na França, transando com uma garota que conheceu na biblioteca. Daniel desmentiu tudo, dizendo na verdade ter sido com um cara gordo e fedido. Guilherme se ofendeu e deu um soco no ombro do irmão, sentado ao seu lado. Daniel revidou agarrando-o pelo ombro e empurrando da cama.         Enquanto isso Drew contava sobre como não cortara o cabelo nenhuma vez, em forma de protesto à escola. Ficara aqui a maior parte das férias graças à recuperação e ainda sim repetira o ano, voltando para o oitavo ano, enquanto eu avancei para o nono e os irmãos para o primeiro do ensino médio. Uma das nossas coordenadoras chama-se Wanessa. Ela nos obriga a cortar as unhas, fazer a barba, passar desodorante e, principalmente, manter o cabelo curto, estilo quase militar, apesar do livre-arbítrio claramente ignorado. Ela diz que nossos responsáveis assinaram o contrato da escola, permitindo-os a nos obrigarem a cortar o cabelo. Somente aqueles maiores de idade podem decidir sobre isso. É um grande problema na escola. Drew disse que não cortaria mais, por terem-no mantido aqui durante as férias. Agora seu cabelo castanho parecia um arbusto. Wanessa também estava de férias. Agora, duvido que Drew conseguirá manter seu proposto. Wanessa é uma grande seguidora do “Projeto C”. 

     Minha escola é normal, apesar dos alojamentos e do “Projeto C”, “C”  sendo graças à palavra “Crescer”, também conhecido por nós como “Projeto Cu”. Fica localizada em uma cidade do interior de Goiás, Brasil. Foi fundada pelos fazendeiros ricos que precisavam de um lugar decente para os filhos estudarem sem precisar mandá-los para milhares de quilômetros de distância. Como foi de interesse da região inteira, inclusive de outros estados, os alojamentos foram criados.  Principalmente porque são mais baratos e seguros do que alugar um apartamento para seu filho de quinze anos morar sozinho. Os pais estão ocupados em seus empregos em cidades minúsculas e sem infraestrutura e os filhos precisam de uma boa educação. Por isso, somos mandados para cá.

       Daí veio o “Projeto C”. É o que garante a segurança e funcionalidade dos alojamentos. Como há desde crianças de onze anos morando aqui, do sexto ano, até moleques de vinte anos, do curso pré-vestibular, é necessário ordem. Nós somos divididos em Companhias. Há um sistema de recompensas e promoções. Saímos nas chamadas “missões”, que são basicamente trabalho pesado nas fazendas dos amigos do Diretor. Ganhamos pontos com isso. Aprendemos técnicas, como as que os escoteiros aprendem, no chamado “treinamento”, obrigatório, matinal, que vem junto com exercícios e técnicas literalmente militares para ensinar ordem. Afinal, minha escola está preparando pessoas para o sucesso não só acadêmico! Para o sucesso absoluto!

        Besteira. Só querem nos manter calados e na linha para haver maior número de aprovações em faculdades renomadas e mais dinheiro pros donos. A lavagem cerebral que todas as escolas fazem possa ser melhor executada. E não há como fugir ou sair. Eu moro aqui e não há escapatória.

        Demorei-me muito nessa explicação. Vou voltar ao que interessa.

        Bem quando terminamos a primeira partida de truco, empolgados, e nos preparávamos para a próxima, nosso Oficial Tático apareceu à porta. Drew foi o primeiro a notá-lo, engoliu em seco audivelmente e deixou suas cartas caírem no colo. Só então nos viramos para vê-lo. Ele é tipo nosso chefe máximo depois de Diretor. Ele é nosso responsável, já que nossos pais não estão aqui. Chama-se Trevor Moore.  Ele tem mais de cinquenta anos, cabelos curtos e grisalhos, quase 1,90m de músculo. Ele é Inglês e, diferentemente do que você possa imaginar, ele é legal. Não é bravo, apenas é sério. Nunca o ouvi xingar ou ser humano.

         - As aulas recomeçaram ontem e os senhores já estão quebrando as regras? Sorte que eu apareci. – disse, erguendo as sobrancelhas e movendo o queixo para frente, meio indicando nossas cartas. Sorria desacreditado, balançando a cabeça para os lados.  Jogar baralho é proibido. Mas e daí? – Por favor, me entreguem.

      - Ah, alivie só desta vez, senhor. – Daniel disse, sorrindo maliciosamente, enquanto recolhia as cartas, sem nem estar chateado.

      - Eu não voltei mais bonzinho, Daniel, na verdade, voltei bem pior. – ele respondeu, adentrou o quarto e pegou as cartas. – Desculpem-me, garotos, regras são regras.

      - Não se preocupe, senhor, nós sabemos aonde ir para roubá-las de volta. – eu confessei. Ele estava ao meu lado e olhou para baixo, me fuzilando com o olhar enquanto sorria.

       - Ly! Ly... você mudou sua atitude ou ainda está tentando ser expulso? Pelo visto, até agora é a segunda opção.

        - Neste ano, tenho certeza que consigo cair fora daqui! – respondi, sorrindo “meu sorriso” (foi ele que inventou essa expressão “meu sorriso”, ele diz que tem um modo como eu sempre sorrio, igual a se eu fosse uma criança levada que nunca será pega em suas molecagens).         

        - Você ficará preso aqui até se formar. – disse, dando uma risada sinistra deliberada e passando os olhos por nós. Parece que ia falar mais algo, só que olhou no relógio, pareceu surpreso e disse: – Mas, sem mais delongas, vim aqui exclusivamente avisar-lhe, seu novo colega de quarto já está lá embaixo. Vá lá conhecê-lo. Vocês também, vamos, vamos – enxotou-nos. – Ainda tenho muito trabalho.

        Nós reclamamos. Drew se levantou e desligou a música horrível, calçou chinelos e andou até a janela, enquanto observávamos e nos levantávamos para sair. Ele trancou a janela de persianas de metal, deixando o quarto escuro. 

       - Pra que isso? - Guilherme perguntou, arrumando o tênis, encostado à parede. 

       - Não sei como vocês conseguem sair dos quartos sem trancar tudo. Não quero que me roubem. - justificou, olhando ao redor. Geralmente ninguém tranca as portas e janelas, pois não há grande perigo.

       Nós reviramos os olhos, Drew é muito metódico.  Finalmente, seguimos para fora do quarto. Trevor nos acompanhou até o corredor, mas desviou à outra porta, nos deixando sozinhos. Vagarosamente, descemos as escadas.


         Sabe aquela música “Welcome To The Jungle”, do Guns? É exatamente o tema musical do meu alojamento. Ele é composto por vinte e cinco garotos (contando com os oito novatos), mais aqueles “intermitentes”, que são os que só dormem aqui quando os pais estão viajando e coisas do tipo. A sala comunal é minúscula, mal cabem dez pessoas. Tem três sofás grandes, verdes, puídos, encostados nas paredes marrons. Uma TV daquelas de tubo, duas poltronas de couro marrom, um corredor que dá para escritórios e outro para uma pequena cozinha e banheiro. Além, é claro, do cheiro de meias suadas.

          Mal chegamos e presenciamos a clássica cena da batalha diária: uns três garotos rolando no chão, cada um agarrado no pescoço do outro, tentando enforcar-se mutuamente, enquanto, ao mesmo tempo, tentam escalar a perna do sofá; quatro garotos em cada sofá, se chutando, se empurrando, gritando para a TV. Outros, sentados no chão apenas jogando algo. As poltronas eram as únicas calmamente ocupadas, pois O Projeto C determina uma hierarquia entre nós, então, aqueles de maior cargo geralmente impõem seus direitos de monopolizar as poltronas para si.

       Sentia falta deles.

       Thiago odeia barulho. Ele é o capitão da Companhia, o de mais alta patente, e, mesmo odiando barulho, nunca para de gritar. Eu o encontrei esbravejando com Átila. Os dois tem a mesma altura, lá pelos 1,85m, a mesma idade, dezoito anos, e são igualmente fortes. Cara a cara, eles discutiam perante um garotinho encolhido ao lado. O garoto, novato, tinha o cabelo castanho, era gordo, usava óculos e, muito baixinho, parecia ainda menor graças aos ombros encolhidos, expressão de desespero.

        Eu não sabia o motivo, mas, quando eu terminei de descer o último degrau, Átila me avistou, apontou em minha direção com um gritinho.

        - Lili! Finalmente! Vem encarar este leão aqui! - disse, se referindo a Thiago, que ficou com mais raiva ainda. Passou a mão em seu cabelo crespo e curto, me fuzilando com seu olhar já naturalmente raivoso. Eu me aproximei, sem medo, achando, na verdade, engraçado.

       - Átila, era para você ser responsável, era para você ter preenchido as fichas, era para Max já estar alojado, você é um puta irresponsável... - Thiago começou a gritar, brandindo a mão em direção a Átila.

        - Fui! - Átila disse e correu, em meio a pulinhos, para o meio dos garotos rolando no chão. Thiago gritou de raiva e foi embora, para ir ao seu escritório. Eu fiquei sozinho com o garoto encolhido, pois meus outros amigos já tinham ido guerrear na anarquia do sofá.

       Ele me olhou, ainda espantado. Sua mochila aparentava ser extremamente pesada graças às costas curvadas. Na verdade, mal parecia se aguentar em pé. Nem me olhou nos olhos, continuava fitando o chão.

        - Você é meu... novo colega? - eu perguntei, tentando chamar sua atenção. Ele assentiu. - Qual seu nome? Me chamam de Ly. De onde você é e por que está aqui?

         Ele não respondeu a tempo, pois fui atacado. Greg me deu uma gravata, aquela chave de pescoço, vindo do absoluto nada. Greg é um de meus melhores amigos. Ele é moreno, magrelo, uns cinco centímetros mais baixo do que eu, tendo 1,65m, por aí. Intelectual e estranho. Me puxou pelo pescoço, rindo. Eu mal tive força para me manter em pé e, quando vi, eu e ele lutávamos debruçados numa poltrona. Um garoto novato, estabanado, chamado Haroldo, achou que podia se intrometer e pulou em nós, tentando nos esmagar, enquanto chamava mais pessoas para ajudar. Outro menino, Treco, adorou e veio se empilhar em nós, enquanto gritávamos.

      Sim, é sempre assim.

      Eu já não me sentia mais capaz de respirar, graças a um peso de duzentos quilos esmagando minhas costelas. Tentava gritar por ajuda, mas os meninos assistiam a futebol, cada um fazendo mais barulho do que o outro, logo não fui ouvido. Graças a Deus Trevor apareceu.

       - Ei, ei, ei, garotos, vocês vão se machucar, parem com isso, agora. - mandou, calmamente, mas firme. Os meninos saíram de cima rapidamente e eu senti o ar perdido voltar aos meus pulmões. Fraquejando, me impedi de cair sentado no chão. Reparei o modo como a sala se calou, os garotos ficaram repentinamente comportados e a luta acabou.

      - Átila... - Trevor falou, apontando para o menino num gesto para ele segui-lo.  Átila, sempre brincalhão, parou de sorrir, de repente oprimido, por já saber que não havia feito seu trabalho e levaria bronca. Eles seguiram até o corredor dos escritórios. A bagunça não foi retomada, mas eu não tive tempo para procurar meu colega de quarto, pois Thiago reapareceu. Ele, mais calmo, mandou-nos arrumarmos para as horas de estudo, que são das dez da manhã à uma hora da tarde.

        Agora relato isso. Estou morto de fome. Após isto é hora do almoço e das aulas. Oh, não...


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