Jogo de Xadrez escrita por Sara Jaganshi


Capítulo 4
Capítulo quarto: “singelo”


Notas iniciais do capítulo

As vezes as marcas são mais profundas do que possamos imaginar...



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Lá estava ele. Saindo de seu carro negro. Sim, ele dirigia. E o carro dele era negro. Totalmente negro. E brilhava. Não costumo entender de carros, mas acredito alguém ter falado ao meu lado algo como “... Hilux 4X4 turbo...” e alguém responder algo como “... E olha a cabine dupla...” Bom, seja qual for à marca, era algo impressionante. Eu o esperava no estacionamento. Não queria mais entrar sozinha naquele inferno. Não mais.

Kolya veio em minha direção. Seu sorriso tem o estranho poder de me deixar desorientada. Momentaneamente é claro. Eu ainda não conseguia entender como ele tinha descoberto meu nome do meio: Sophie. É o meu nome mais intimo e dizer que alguém já me chamou de Sophie antes dele é mentira. Como ele descobriu?

Hoje está um dia frio. E tudo que eu quero, é me ver longe daquela sala gélida, com aquele ser irritante. Sim, refiro-me a Rafael.

Kolya me levou até a biblioteca. Aparentemente ele tinha boa memória.  Um de seus braços está passando pela minha cintura, me empurrando para ir em seu ritmo, a mão do outro braço, segura a alça da mochila, apoiada em seu ombro. Os outros alunos no recinto nos olham curiosos. Eu ouço sussurros.

“o que ele está fazendo com a louca?”

Por que ele está andando com ela?”

Sentamos numa mesa, aos fundos da enorme biblioteca. Ele retirou a mochila do ombro e a colocou na cadeira ao seu lado. Abriu-a e retirou um tabuleiro de xadrez. Eu mesma nunca havia visto um tabuleiro mais lindo, mais estranho e mais extraordinariamente simples. Todo preto, possuía detalhes em prata tão delicadamente colocados que, que é como se não estivessem ali. O tabuleiro era em alto relevo. Lindo, fascinante e totalmente inusitado*. Eu sorri e apenas segundos depois foi que notei os olhos de Kolya sobre mim. Ele sorria marotamente. Era óbvio que me achou engraçada. Primeiramente por eu ter me deslumbrado por algo tão simples e estranho. Em quanto à maioria das pessoas –creio eu - acharia simplesmente: engraçado.  Olhei para minhas mãos ao notar seus olhos sobre mim. Não gosto quando alguém me pega assim. Em momentos tão... Tão vulneráveis!

Ele aproximou-se de mim sem que eu percebesse e colocou a ponta de seus dedos em meu queixo, Levantando-o. Aqueles olhos azuis tão intensos, tão cinzentos, me fizeram perder o ar. Ele olhava diretamente para mim. Sorriu. Sim. Ele sorriu e eu acho impossível alguém não retribuir tal sorriso.

 - Você precisa começar a aprender logo minha língua – eu lhe disse – sua voz deve ser tão linda quanto seus olhos. – eu afirmei. Mesmo já ouvindo ele falar duas ou três palavras, eu ainda possuía necessidade em conhecer-lhe os tons.

Ele apenas apoiou a palma da mão sobre meu rosto. E meu coração parou. Fechei os olhos. Eu precisava voltar a respirar. E o fiz. Mas senti seus lábios sobre minha bochecha, num beijo singelo e isso me deixou em transe. Ele se afastou. Minha boca estava aberta. Ela abria e fechava. E abria e fechava. Mas nenhum som saía. Eu estava totalmente sem palavras. Podia sentir minhas bochechas avermelharem e minha respiração entrecortar. Pisquei várias vezes atônita. E tudo que  senti foi o formigar de minha bochecha.  Exatamente onde os lábios dele estiveram segundos atrás.

Ele sorria. Um sorriso diferente. Sedutor.

Levantei-me de repente e isso o assustou. Eu podia não realmente pensar aquilo. Por que o novato russo; Nikolai Kuznetsov iria se interessar pela gorda e louca do colégio? Eu não poderia me dar ao luxo de ter esperanças. Amor a primeira vista entre um deus grego feito ele e uma feia como eu não existe. Não mesmo. Hey espere um  pouco... Eu disse “esperanças”? Onde eu estava com a cabeça? Eu não estou apaixonada por ele. Não mesmo!

E foi com esses pensamentos que eu havia recolhido minha bolsa e - a passos largos e firmes – saído do recinto, deixando para trás um russo lindo e confuso.

Fui até o centro de treinamento do colégio. Tudo estava escuro e o acesso só era permitido para quem fazia parte de algum time do colégio. Bom, eu sou “capitã” da equipe feminina de Karatê do colégio há quatro anos, acho que isso conta. Fui ao painel ao lado da sala. Digitei minha senha e entrei no recinto.

Era inútil ir ao tatame. Fui direto para a ala de treinamento físico. Sim, aqui nos temos uma “pequena” academia. Eu sabia onde queria ir. Eu sabia exatamente o que fazer para pensar... Para refletir. Fui ao saco de pancadas. Atirei-me sobre ele com fúria e tudo que ele pode fazer foi balançar de um lado para o outro. O barulho das correntes de sustentação se chocando contra o metal e minha respiração ofegante, porém compassada, eram os únicos barulhos no recinto. Soquei-o e chutei-o até que minhas lágrimas me impediram de ver adiante. E logo chutar e socar ficara cada vez mais difícil. Até que meus soluços desesperados me interromperam, me fizeram parar. Tudo que eu podia fazer era sucumbir a meus trêmulos joelhos e cair no chão. Eu estava derrotada.

MERDA! Eu sei o que esta acontecendo e eu odeio ter que admitir isso. Eu ODEIO que esteja acontecendo novamente!

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Não entendi o que aconteceu. Eu tinha colocado um xadrez antigo de minha família da mesa, e de repente a vi tão linda, observando-o... Já havia percebido que nas aulas em que aparecem coisas antigas – creio eu ser história - ela prestava mais atenção... Achei que ela ia gostar de ver aquele tabuleiro de meu avô. Por isso eu o trouxe... Ela foi à única que não se rendeu a mim. Ela foi à única que conseguiu me olhar criticamente. Ela é engraçada, mesmo quando não percebe. Não conversamos. Eles acham que eu não falo a língua deles e por enquanto é melhor assim. Ainda estão atrás de mim e seria complicado ter que explicar para esse bando de idiotas o porquê de um russo aparecer do nada. Estou realmente começando a gostar dela. Ela é doce, por mais que se esforce em esconder isso. Ainda não entendo como esses adolescentes idiotas a rejeitam tanto, quer dizer, ela é inteligente – disso ninguém discorda aparentemente – e gostosa, bom; pelo menos pra quem gosta de seios fartos e pernas grossas (por sinal meu caso). Talvez ela fosse até feia, se não tivesse aquela cintura... Provavelmente fruto de seus treinamentos como Karateca. Ela parece ter desenvolvido uma armadura que tem espinhos e eu me pergunto o que terá acontecido com ela para ter tido a necessidade de desenvolvê-la. Ela é mais frágil do que deixa transparecer, pra perceber basta ouvi-la. Fala tão baixo que na maioria das vezes irrita aos outros. Mesmo com essa ignorância para consigo, ou talvez por causa disso, ela sempre encara as pessoas com quem fala. Por várias vezes me vi tentado a conversar com ela. Ela me encara sempre e sempre estamos em silêncio. Eu costumo me perder naqueles olhos de um castanho tão escuro quanto às avelãs de meu país. Por vezes tenho vontade de rir dela por causa disso. Ela talvez não tenha percebido, mas me fascina. De longe é a garota mais interessante que já vi. Imagino como será dormir com ela, fazê-la gemer e gritar meu nome, tantas vezes quanto fosse necessário para cansá-la. Imagino como seria fazê-la minha de todas as formas possíveis e dizer a todos que ali está a minha mulher... Hunf. Esse foi um dos malditos motivos de eu ter tido que sair de Moscou. Malditos.

Continuo a olhar para ela. Tão forte e tão frágil. Enquanto todas as outras se acham feias, ela não demonstra medo ou arrependimento ao olhar para o espelho. Ela parece sempre gostar do que vê. Outra coisa que me faz achá-la perfeita é que ela parece também não necessitar conversar comigo. De modo que parece apreciar meu silêncio, mesmo que às vezes diga o que pensa mesmo eu supostamente não sabendo sua língua. Observei-a durante algum tempo antes de me aproximar, do mesmo modo que faço agora. Ela é única.

- Você precisa começar a aprender logo minha língua – ela me disse – sua voz deve ser tão linda quanto seus olhos. – disse enquanto me encarava, sempre séria, mesmo com aquele singelo sorriso na face. Eu não pude resistir, ela é tão dura consigo mesma e ao mesmo tempo tão doce com os outros, e nem percebe isso.

Tão diferente do mundo em que vivi... Tão diferente do mundo que me tragou e traga dês do maldito dia em que nasci. Gostaria de poder me afastar dela, mas sou egoísta demais pra fazê-lo, ela me faz bem. Ela me faz sorrir um sorriso sem sarcasmo e me faz olhar sem frio em meus olhos. Com ela eu não preciso ser um ator e fingir ser alguém que não sou.

Beijei-a.

Iria beijá-la de verdade, mas sei que isso a assustaria bastante. Virei. Beijei-a apenas na bochecha, achei que assim, pelo menos ela não teria uma reação muito violenta, eu sabia que ela achava que todos zombam dela, eu já tinha percebido isso. Chegava até a parecer meio paranóica às vezes. O pior é saber que em todas as vezes que ela desconfiava que alguém estava a falar dela ou que alguém a zombava, ela estava certa. Achei que ela não teria uma reação violenta, enganei-me profundamente. Ela levantou-se bruscamente após alguns minutos de silêncio me encarando estática. Eu não sabia que ela tinha marcas tão... Profundas. Ela pegou a própria bolsa e saiu a passos largos e seguros. Tão diferente de todas as mulheres com quem estive ela não me agarrou ou ficou decepcionada com um singelo beijo na face. Tão diferente das mulheres com quem estive ela se mantinha firme diante de algo que supostamente lhe ameaçava o íntimo. Era uma mulher extraordinária.

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Novamente eu não tinha percebido. Novamente eu havia deixado alguém se aproximar demais. Eu estava me apaixonando por ele e isso é inaceitável. Tudo que posso fazer é apenas deixar que isso vá pra frente. Não sou burra o suficiente pra achar que o sentimento vai estancar apenas pelo afastamento. MERDA! Eu sinceramente achei que por não conversarmos eu não sairia afetada. Ledo engano.

Desenrolei as faixas das mãos. Estava cansada e não pretendia mais usar os sacos de pancada do local. Coloquei os sapatos, guardei as faixas de treino no local apropriado e fui em direção ao banheiro menos movimentado do Goldenen Löwen. Olhei-me no espelho e vi o quanto tinha chorado. Procurei entre meus bolsos até encontrar meu fiel lápis de olho. Coloquei-o bem forte, em minha tradicional “máscara” gótica. Senti-me mais calma. Fui em direção a sala.

     


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Notas finais do capítulo

* O tabuleiro mencionado é o mesmo da capa da estória.



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