Jogo de Xadrez escrita por Sara Jaganshi


Capítulo 5
Capítulo Quinto: "Única companhia"




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Ela entrou na sala com passos firmes. Decidida, ignorou os comentários absurdos do adolescente Rafael. É frustrante não poder simplesmente dar um tiro em pessoas irritantes como ele. Mas tudo bem, aparentemente ela está superando ele.

Notei que ela ficou frustrada ao notar a única cadeira vazia ao meu lado. Eu estou curioso. Seu rosto demonstra choro, seus gestos e passos mostram segurança. Ela realmente é uma ótima atriz. Sentou-se ao meu lado sem escolha. Olhei-a de esguelha, eu simplesmente tenho necessidade de saber o que se passa com ela. Pensei por alguns instantes e tive uma idéia. Peguei um papel e desenhei uma interrogação. Entreguei a ela. Ela sorriu. E como era lindo seu sorriso.

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Ele me havia entregado um papel. O peguei mecanicamente, sem saber o que esperar. Sorri ao ver a tentativa – bem sucedida – de comunicação. Vi uma interrogação no começo da página. Sorri. Ele às vezes faz uma dessas. Pensei por um estante e desenhei três pontos. Depois desenhei uma cara feliz. Não sei se ele entendeu muito bem, mas nos comunicamos bem dessa forma até o termino da aula de inglês.

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Tudo estava indo bem. Até ela ter que ir para a aula de artes e eu ficar em português básico.

Minha cabeça estava doendo. Não tive tempo de dormir ontem à noite. Abaixei a cabeça e fechei os olhos. O silêncio da sala adicionado ao barulho macio do ar-condicionado me levou ao sono.

Tinha oito anos novamente, e sua mãe, sempre tão pálida e sorridente se encontrava na cadeira de balanço do terraço interno da mansão. Com uma enorme e grossa cocha de retalhos em suas pernas, ela acenava para ele de longe. O esforço visível no simples gesto. Kolya achava injusto que fosse tão parecido com o pai – “praticamente uma cópia” era o que diziam – sem ter ao menos os olhos cor de mel ao qual tanto amava naquela mulher. O menino se encontrava feliz, fazendo bonecos de neve no extenso jardim na ala oeste. Ele viu um coelho branco embrenhar-se por entre as árvores, pulando entre os arbustos. Olhou para trás, seus seguranças estavam relativamente desleixados, de modo que o pequeno Kolya, sem culpa alguma, embrenhou-se nos arbustos esparsos atrás do coelho felpudo. Minutos se passaram e cada vez mais o coelho se embrenhava. Por sorte o coelho tinha se colocado perto da parede de uma das alas da mansão. Kolya estava prestes a agarrá-lo. Pulou em sua direção. Mas o coelho já havia escapado. O pequenino garoto já se preparava para ir atrás do coelho novamente quando ouviu gritos abafados. Esqueceu-se do coelho. Olhou ao redor em busca da fonte dos gritos, porém só via arbustos e árvores. Bom, arbustos, árvores e uma parede. Piscou algumas vezes, um bico se formando em seus lábios. Procurou por alguns instantes, e encontrou por fim uma janelinha anexa a parede, relativa ao porão, área terminantemente proibida para ele, segundo ás regras maternas. Sua curiosidade infantil aflorada até a raiz dos seus cabelos.

Espiou pela pequena janelinha. O que viu o atormentou durante o resto de sua existência. Dentro do recinto pouco iluminado, três dos “guardas” de seu pai se encontravam armados ao redor de uma mulher ruiva. Seu vestido estava rasgado, revelando seios fartos e extremamente vermelhos, com os bicos queimados. Cigarros tinham sido apagados em sua barriga, pescoço, pulsos e rosto. As orelhas possuíam rasgos em seus lóbulos e seus lábios estavam sangrando. Um dos olhos estava terrivelmente fechado e inchado. Roxo.

A mão de alguém apareceu, o anel dourado no dedo mindinho fez o pequeno prender a respiração. Era seu pai.

Dando passos curtos, o homem alto e de esparsos e curtos cabelos escuros apareceu em seu campo de visão. Um alicate em sua mão revelava suas péssimas intenções. Chegando perto da mulher, Piotr Kusnetzov levanta o alicate a altura dos olhos femininos. A mulher já estava com expressão grogue. Ele abriu e fechou o alicate algumas vezes, o olhar cínico nunca antes visto pelo pequeno, juntamente com o “sorriso Chechaire” típico dos homens de sua família, como Kolya descobriria anos depois; completavam a expressão homicida de seu pai.

Piotr abriu uma última vez o alicate, colocando-o numa das narinas da mulher ruiva a sua frente. Ela gritou ao sentir o puxão em sua narina esquerda. Piotr riu. O “sorriso Chechaire” se alargando com a dor alheia.

Ele não olhou para o alicate cheio de sangue em sua mão, apenas o estendeu para o lado, de modo que um de seus capangas o pegasse. Em seguida, ainda com o  olhar recaído sobre a vítima, ele pediu um martelo. Foi prontamente atendido. Pegou uma das mãos da ruiva, esticou-lhe um dedo e ela reagiu. Puxando  bruscamente o braço, começou a gritar em uma língua estrangeira, coisas que o pequeno Kolya não compreendia. Eles seguraram sua mão e seu braço, enquanto seu pai martelava cada um dos dedos femininos, esmagando-os. Após os gritos abafados por uma recém colocada mordaça, silêncio.

Apenas silêncio.

...

O resto do vestido fora rasgado, e a calcinha arrancada por Piotr.

Ela tinha sido empurrada da cadeira a qual, antes, estava amarrada. Caindo bruscamente no chão, o grito de dor abafado pela mordaça.

Piotr tinha deitado sobre ela. Apertava seu braço machucado, causando-lhe dores visíveis.

Movimentava-se sobre ela. Kolya sabia o que estava acontecendo ali. Olhava para o pai que ria. Olhava fixamente para Piotr, que se movimentava em cima da mulher fazendo-a gritar. Olhava fixamente para o ser repugnante que se parecia tanto com ele. Seu rosto espantado foi visto pelo pai. Eles se encaravam por breves instantes antes do pequeno sair correndo.

Tudo tinha mudado depois disso.

Abriu os olhos.

- Kolya! – disse Sophie que balançava levemente. – Kolya! Vamos... Acorde! Já podemos ir ao intervalo...

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Uma competição! – eu disse assim que recebi o recado – Uma competição esta semana, e não é qualquer competição: é a Competição Estadual! As eliminatórias são esta semana. Isso é perfeito!

Pulei em cima de Kolya. Não pude me conter com tamanha felicidade. Estava sendo convocada para o campeonato estadual, isso é fantástico! Há meses que venho me preparando para encará-la e conseguir uma chance de poder derrotar Patrícia. Minha eterna rival.

- Isso não é fantástico?! – olhei para ele que me sorria. Um sorriso encantador. Ele sempre fazia isso e até parecia se divertir quando percebia o que conseguia fazer comigo. Eu tenho certeza que ele sabe que meus joelhos se abalam quando ele faz isso. Quando me sorri desse jeito. Maldito! Afastei-me dele imediatamente. Não podia deixar que aquele sorriso me abalasse. Não hoje.

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Meu celular tocou. Era ele, o maldito.

- Nicolai Kuznetsov.

- Hey kolya! – disse uma voz masculina bastante alegre do outro lado da linha, falando em russo.  – há quanto tempo! Como vão as coisas? Seja lá onde você esta...

- Meu nome é Nikolai, Boris. Não me lembro de ter-lhe dado permissão para me chamar por outra alcunha.

- Sempre tão formal com os negócios... Você não mistura mesmo trabalho com social não é? – o outro homem riu.

- Está me fazendo perder tempo Bóris. – disse Kolya - Vá direto ao assunto.

- ok... Como vou dizer assim na lata? Hum... sabe o que que é? Bom, o conselho está meio... Indeciso. Eles querem me colocar no seu lugar, e eu particularmente iria adorar desposar sua mãezinha querida. O que acha disso? Aquela loira super gostosa naquela cadeirinha de rodas... Será que ela ainda lembra o que é sexo? – ele riu novamente.  Kolya sentiu seu celular trincar por entre seus dedos. – Ora... Estou lhe ligando apenas para dizer que agora que o conselho está desacreditando você, eu irei casar com ela. Tomarei seu lugar pivete e não há nada que você possa fazer com relação a isso.  – sua voz agora estava ferina e fria como uma navalha.  – Teste por um pé em Moscou e verá seus miolos estarem espalhados pela pista de pouso antes mesmo de terminar de descer do avião.

- Teste tocar um só dedo em minha mãe e verá seus testículos enfiados em sua boca antes mesmo de poder piscar os olhos. – disse com a voz gélida.

E desligou a ligação.

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Fui até as meninas. Amanda tinha faltado, mas Mayara, Paula, Thays e Petra estavam na sala. Eu estava radiante. Sorri marotamente.  Vou convidá-las para irem ao meu campeonato. Quem não iria querer viajar por uma semana? Tudo bem, eu não sabia onde iria ser o campeonato, portanto não sei se seria uma viagem mesmo. Quer dizer; se o campeonato fosse sediado aqui, não haveria necessidade de viagem, portanto era só pegar um ônibus ou um carro para ir até lá. Suponho que isso seria até melhor, principalmente para Mayara e Thays que estavam loucas com o vestibular.

O professor entrou em sala: Elisandro. Droga! Não poderia perguntar a elas. Peguei um papel  e comecei a rabiscar. Entreguei a Thays.

“Se eu chamasse vocês para irem assistir um à competição minha, vocês iriam?” eu havia escrito.

“Não sei!” Reconheci a letra pequena e redonda de Thays “Depende do dia e do local.”

“É, realmente.” Escreveu Petra antes de desenhar uma  seta para cima, sinalizando que concordava o que thays escrevia “Mas competição de que heim?!”

Eu sinceramente fiquei chocada com essa pergunta. Quer dizer... Como alguém em todo o colégio não sabia que eu fazia Karatê? Respirei fundo. Ok... Muita gente. Ainda hoje, depois de quatro anos ganhando medalhas ainda tinha gente que pergunta como vai meu “Judô”. Sim... Revoltante. Mas poxa... Uma amiga minha não saber da minha paixão mais arrasadora (além da leitura, claro!) é extremamente frustrante. Na verdade, é mais do que frustrante... É... Tudo bem, não tenho palavras pra designar o que isso é pra mim.

“Não!” Mayara escreveu com sua peculiar caligrafia “Se fosse futebol ou vôlei eu iria!”

Pelo menos ela é sincera.

“Num sei,” foi o que Paula escreveu “se eu tiver tempo.”

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Ela parecia arrasada. Segurava o papel que a tal de Paula tinha acabado de passar a ela. Parece que o que estava escrito não lhe agradou muito. Ela é uma boa atriz. Ninguém aparentemente percebeu o quanto ela pareceu decepcionada com a resposta das amigas. O sorriso que ela demonstra para todos quando não quer que sintam pena de si é perfeito. Não é tremido ou simplório, muito menos sardônico.  Ela conseguia realmente passar um sorriso alegre. A única peculiaridade que a denunciava e ao qual ninguém percebia era o cair de seus ombros. Acredito ser o único que percebeu. Levantei-me e sentei ao seu lado quando Elisandro saiu de sala.

Peguei o caderno e arranquei uma folha. Desenhei uma interrogação no canto esquerdo e enviei a ela.

Segundos depois ela me enviou o mesmo papel. Havia duas interrogações abaixo da primeira. Eu sorri.

Desenhei três interrogações abaixo e a entreguei. Vi ela sorrir. E se debruçar perante o papel. Segundos depois me enviou a sua resposta. Ela havia desenhado um ônibus e um boneco (ao qual estou tentado achar que era ela própria de kinomo) ao lado com uma mala.

Desenhei outro boneco com meu nome escrito. Ele segurava uma mala também.  Em seguida entreguei a ela.

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Não acredito que ele está realmente indo comigo.  Estou sentada na quarta cadeira do lado direito, no primeiro andar do ônibus. Do lado da janela. Os outros estão empolgados lá embaixo. Alguns estão com seus MP9s ligados, vendo as lutas que foram gravadas dos campeonatos anteriores. Outros estão apenas dormindo ou conversando. Ou ligando pra quem quer que seja...

Cada um dos atletas está trazendo uma grande torcida. Quatro ou cinco amigos para lhes dar apoio. Tem gente que trouxe mais do que o permitido (cinco acompanhantes), por que eu utilizei apenas um dos meus convites de convidado. Olhei para o lado. Kolya estava sentado na cadeira ao lado. A cabeça recostada na cadeira, com o rosto para o teto. Seus olhos estavam fechados, sua respiração regular. Provável que estivesse dormindo.  A tatuagem se estendia pelo lado direito de seu pescoço. Fico imaginando se é uma só ou são várias. E se for uma só, imagino que deva ser extremamente enorme. A boca dele está entreaberta. De um modo involuntário a minha se abre também.  Suas mãos estão apoiadas no próprio colo. Os cotovelos apoiados nos descansos da cadeira. Sua expressão é serena. Observei suas veias traçando os caminhos de seu pescoço e queixo. E levemente perceptíveis em suas bochechas, agora que reparo bem. Sua pele é praticamente translúcida.  O primeiro andar estava quase vazio. Os poucos que estavam ali, uns três ou quatro, estavam dormindo. Aparentemente apenas eu estava acordada aqui em cima. Olhei para a janela. A vegetação passava rápida. Olhei novamente para Kolya e me assustei quando ele segurou minha mão de súbito.  Seus olhos acinzentados se abriram vagarosamente e ele olhou para mim. Sorriu. Aquele sorriso lento e sedutor.  Eu sorri também.

- Obrigada por vir comigo. – sussurrei para ele. – você foi minha única companhia. – falei com ele como sempre. Esperando o silêncio como resposta.

Ele se inclinou para mim e roçou levemente os lábios nos meus. Eram muito quentes.

- Não por isso. – ele sussurrou de volta e me beijou, antes de eu poder responder ou de poder entender o que ele acabara de fazer.


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