Ismália escrita por Tia Anette Atlas


Capítulo 4
PARTE III - CONFRONTE-ME


Notas iniciais do capítulo

Olá meus queridos, sentiram falta de Ismália e suas peripécias? Espero que sim.
Obrigada a vocês que continuam comigo nos comentários e nas mensagens pelo facebook e twitter.
Aí vai.



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Eu sei que até agora não houve nenhum bom motivo para você pensar que eu gostaria de me matar. Nada que aconteceu me deixaria depressiva suficiente, não é? Mas lembre-se, eu me matei por escolha. Eu aguentaria viver, só acho que o esforço não valeria a pena. Mas claro que motivos não me faltaram.

Já havia um mês desde que Sebastian e eu estávamos morando juntos. Meu emprego na biblioteca e o dele no café conseguiam pagar as contas muito bem e ainda havia dinheiro suficiente para pequenos luxos e investimentos.

Comecei a ajudar Caroline na produção dos fanzines, que ganharam uma série com o nome: “Livre Pensador”. Deixaram-me colocar alguns dos livretos na biblioteca. Ficavam na sessão de revistas sem prazo de devolução. Eu ficava triste quando no final do dia via que eles permaneciam intocados na estante perto da entrada. Tentei fazer uma capa mais bonita para eles, colorida e plastificada, não adiantou. Entregar na rua era mais eficiente.

Um dia, enquanto organizava a primeira prateleira dos livros infantis, que ficavam próximos à entrada, pude ver que um homem velho entrou, olhou para os lados como se certificando de que ali não havia ninguém, mas não me viu. Pegou os três zines que lá estavam e saiu apressado. De imediato fiquei feliz, pois finalmente o “Livre Pensador” seria lido sem que eu tivesse que quase implorar pra que fossem.

Comecei a estranhas quando aquelas três edições de “Livre Pensador” nunca voltaram à estante e por mais que eu colocasse os novos volumes, eles sempre sumiam, sempre por mão de alguma pessoa estranha com cara séria e que não parecia enxergar bem. Sempre vendados a mando de alguém que não quer gente enxergando. Confirmei isso ainda em vida, uma vez que fui até a porta espiar uma mulher que acabara de levar duas edições. Ela rasgava as páginas xerocadas quase que uma a uma, com cuidado. Enquanto seguia pela praça em frente a biblioteca, ia deixando um pouco de cada zine em várias. Eu quis matar aquelas pessoas, mas não aconteceu.

Há apenas mais um quesito importante para se apresentar, antes que eu possa mostrar o motivo da minha queda e então minha vontade de morrer: a minha espiritualidade. Você provavelmente entende muito pouco dela, pelo que já conversei com Alan no teatro. Bom, nós conversávamos muito mais e foi assim que alguns conceitos se formaram em minha cabeça. Um deles era que não existe certo ou errado, nem bem ou mal. Tudo dependeria de situação, estado emocional e de outros conflitos externos ligados diretamente ao ocorrido pra que assim se possa dizer se certo ou errado. Você pode questionar como isso interfere na minha espiritualidade. Simples. Isso abole completamente a ideia de que há um inferno para se pagar ou um céu para receber uma recompensa. Principalmente um céu. Se você faz as coisas que faz e as julga boas não é porque você vai ao céu que você deve as fazer. Os atos e as pessoas são verdadeiros apenas quando não se ganha nada com isso.

- Estava sentindo falta de te visitar. – eu disse a Alan quando fui vê-lo trabalhar em um sábado.

- Estou feliz que veio. Eu precisava falar com alguém. – ele me respondeu operando os controles para as mudanças de luz. Eu estava ao seu lado, sentada no chão para que o diretor não me visse. Ele já estava terminando de ensaiar uma peça, mas era um homem severo e não gostava de pessoas se distraindo.

- Mesmo? Achei que você pudesse falar de qualquer coisa com Caroline. – eu falei parecendo preocupada. Na verdade eu já imaginava que o assunto era sobre ela.

- Não posso falar para Caroline sobre Caroline. – ele disse, confirmando minha suspeita.

- O que foi?

- A gente não tem dado mais certo.

- Brigaram?

- Não. Só não estamos mais tão bem.

- Por ciúmes? Algo assim?

- Não. – ele quase riu – você sabe que tanto eu quanto ela não temos esse tipo de problema.

Nós somos energias, vamos e voltamos o tempo todo e não somos sempre iguais. Essa energia não tem dono, não tem lei, não tem código e por isso não faz o menor sentido sentir ciúmes. Se Alan desejasse mais alguma namorada alem de Caroline, ou ao contrário, não haveria problema, pois Caroline não é dona de Alan e se ele está ao lado dela há tanto tempo é porque ele a ama, assim como tem o direito de amar qualquer outra pessoa além dela. A esse ponto da minha vida, eu desejava amar alguém assim, dessa maneira. Pensei em Alan, mas não.

Eu caminhava até meu trabalho observando as pessoas nas ruas. Todas tão cinzentas e sem vida. Se ao menos enxergassem algo, talvez eu me apaixonasse por algumas delas. Em um dia eu andava com Caroline e Alan até minha casa, onde Sebastian nos esperava.

- Você não acha estranho o modo como quem enxerga parece mais colorido? – eu disse observando um garoto anotando algo em um bloco de anotações, ele parecia ter mais cor que todos e sempre estava ali. Há algum tempo eu conseguira ver desenhos de arabescos naquele mesmo caderno. – Quer dizer... Se você olha rápido você não nota, mas...

- Sei. – Alan suspirou – Eu achei você e Caroline assim.

- Eu que te achei. – Caroline protestou.

- Nos achamos. – Alan sempre balanceava as coisas, não importava entre quem. Se ele gostasse de você, te protegeria. E se gostasse de você e do seu oponente, protegeria aos dois. Eu escrevi uma carta para Alan antes de morrer, mas nunca entreguei, pois ele poderia tentar me impedir. Então mandei pelos correios, ele a recebeu dois dias após minha morte. A carta dizia:

Alan, sei que quando receber a esta carta já será tarde demais para me ajudar. Por isso estou enviando pelo sistema dos correios. Acredito que eu não precise te apresentar os motivos por decidir fazer o que fiz. Os últimos acontecimentos realmente me abalaram, me fecharam.

Entendo se você me julgar estúpida de acordo com o seu novo padrão de pensamento, mas tenho esperanças de que você mude de ideia depois do que fiz e busque ser feliz. Para mim não era mais viável.

Deixei todos os meus volumes de “Livre pensador” na biblioteca. Pegue antes que aqueles idiotas peguem. Claro, se ainda se importar.

Eu te amei como alguém ama um irmão e de onde estou continuo te amando do mesmo modo. Se puder, salve o garoto do bloco de anotações, não sei se ele conseguirá enxergar perfeitamente sozinho.

Sei que não superou seu amor por Caroline e agora a impossibilidade de vê-la te machuca, mas um dia vocês poderão se ver de novo e então quem sabe o que virá, não é? Eu lembro que dizíamos que quando se morre se vai para o nada e de lá retornamos sem saber exatamente a que tempo pertenceremos. Bom, serei muito bem recebida no nada, sei que serei, por tanto não se preocupe com minha alma. Ela não vai para céu ou inferno algum, se lembra?

Espero que tenha lido isso até o final. Se sim, me faça um favor e não me acenda uma vela, mas sim um bom baseado. Quem sabe assim você me vê.

Com amor

Agora sim, apresentada características suficientes sobre mim para que você entenda quem eu sou, está na hora de irmos aos fatos. Aos que me levaram a me despedir da minha vida aos meus quase dezoito anos.

Era um domingo de sol e logo pela manhã minha mãe me ligou. No dia anterior fora seu aniversário, eu havia lhe enviado um cartão, já que não poderia dar muito a ela de qualquer forma. Ela muito insistiu pra que eu fosse a sua casa, teria um almoço em comemoração ao seu aniversário e minhas tias iriam a visitar no período da tarde. Quando recebi o telefonema achei que só me queriam para exibir como a nossa família era unida e perfeita. Hoje sei que minha mãe brigou muito com meu pai e irmão para me convidar. Ela me amava. Eu deveria ter dito que a amava também, porque mesmo desconfiando dos atos dela, era verdade. Eu a amava.

Antes de me telefonar ela avisou aos “homens da casa”.

- Vou chamá-la. – ela simplesmente disse, se aproximando do telefone.

- De jeito nenhum! – protestou meu irmão – Ela só quer saber de vadiagem e quebrou essa casa! Não merece o carinho que você deu a ela.

- Ela é sua irmã, Atila. Não fale assim. – minha mãe se manteve firme e calma.

- Ela realmente não se importa conosco, querida. Não vê? – meu pai se desviou por alguns segundos do caderno de esportes no jornal. – Apenas ignorou tudo que a lhe demos e se foi!

- Não é possível que você realmente ache isso de sua filha! – minha mãe, que acabara de tirar o telefone do gancho, estava boquiaberta.

- Meu pai tem razão. – Atila se manifestou mais uma vez, nervoso, tirando o telefone da mão de minha mãe colocando no gancho novamente.

Com mais alguns minutos de briga, meu pai se levantou e foi ao seu escritório ler seu jornal em paz. Eu achava engraçado o como meu pai se livrava das situações.

A discussão chegou ao seu fim quando Atila gritou:

- Entenda de uma vez, ela não pertence mais a essa família!

Minha mãe bateu na cara dele. Um tapa bem dado, em cheio. Os tons de verde em seus olhos era bem visível enquanto ela lacrimejava, com ódio.

- Ela tem os mesmo olhos que você – ela disse, impedindo que meu irmão protestasse ou reclamasse –, vocês tem o mesmo cabelo, a mesma pele e foram criados da mesma forma, pelas mesmas pessoas, até na mesma escola. Como você pode achar mesmo que ela é tão diferente de você?! Ela é sua irmã sim! E esse é meu aniversário e eu decido quem vem!

Antes de sair de casa para o aniversario de minha mãe, tive de telefonar para Alan.

- Te acordei? – perguntei quando ele atendeu.

- Não. Eu não dormi. – ele me respondeu. Eu girava os olhos, ele não havia conseguido dormir desde que havia terminado com Caroline, mas nunca admitiria que era por causa dela. Talvez ele nem soubesse que era por ela.

- Não vou poder ir na manifestação hoje. É aniversário da minha mãe.

- Sério? Que pena...

- Você pode pegar os cartazes que pintei em casa, com Sebastian.

O almoço me fez lembrar os que tive depois de brigar com Atila e antes de me mudar. Só eu e minha mãe conversávamos, meu pai fazia comentários sobre as noticias e Atila se mantinha quieto a não ser que tivesse alguma oportunidade de fazer uma piada que pudesse agulhar alguém, mas não é o almoço que importava naquele dia, talvez se eu tivesse ido a manifestação naquele domingo, não teria acontecido.

Era sobre um escândalo de corrupção, os manifestantes estavam de frente para a câmara municipal. Alguns tentavam invadir o espaço, já haviam quebrado os vidros de algumas janelas e portas para isso. Caroline estava distribuindo zines para algumas pessoas próximas a aquelas que tentavam invadir a câmara. No meio da agitação, foi empurrada e trombou com um dos policiais que tentavam impedir com que os manifestantes entrassem. Eu não tinha nada contra policiais, sei que eles são um grupo de pau mandados que não podem fazer nada, a não ser obedecer. Mas esse policial em questão conseguiu ultrapassar qualquer limite.

Enquanto eu tomava chá sorrindo para minhas tias, o policial tirou Caroline a força do meio da confusão, jogando todos os zines no chão, depois a arrastou até onde estava a viatura. Ele primeiro tentou passar as mãos nela, que o empurrou. Ele chamou isso de se fazer de difícil e a bateu de frente pra viatura, a encostando seu corpo no dela, dizendo que a estava revistando. Hoje eu posso ver as lágrimas de Caroline escorrer e caírem sobre o carro. Posso ouvir a voz do policial hoje, ligando o rádio e falando para seu parceiro:

- Drogas. Vou levar pra delegacia.

Caroline não estava com droga nenhuma, mas teria em sua ficha “Presa por porte de drogas, desacato à autoridade, tentativa de corrupção”. Quando Caroline foi colocada algemada na parte de trás do carro, Alan viu. Tentou correr até lá, mas um policial o parou, ele pediu explicações, mas ninguém daria explicações para um “vagabundo, revoltado e mal criado”.

Chamaram de tentativa de corrupção quando Caroline implorou pra que o policial não a estuprasse. Ele resolveu fazer uma alteração no caminho para a delegacia e passar em um lugar com ótima localização, um terreno baldio de um bairro industrial. Não havia movimento nenhum e ele poderia abusar de Caroline ali o quanto quisesse. Ela, algemada, não poderia fazer nada.

No fim da tarde, Alan me ligou contando que Caroline havia sido presa e pelo o que. Fui visita-la no dia seguinte, alguns processos jurídicos aconteceriam, mas era quase impossível que ela ganhasse algo já que se afirmava flagrante. Ela me contou toda a verdade na visita que a fiz, a policial que estava nos acompanhando ouviu tudo com cara de quem preferia não acreditar em Caroline.

- Eles querem mais é que a gente se passe por uns drogados mesmo – Caroline falava –. Nada que ameace o dinheiro deles é justificável. Agora eu e mais não sei quantos vamos pra cadeia, saímos em jornais e o movimento perde a força por causa da corrupção da policia! – ela quase gritava.

Antes de ir embora, abracei Caroline e disse que daríamos um jeito de tirá-la dali. Indiretamente, no futuro eu consegui. A esse ponto, minhas ideias de que eu não queria viver nessa sociedade suja apareciam vez ou outra em minha cabeça. Passageiros estes pensamentos, mas às vezes doíam e marcavam minha mente.

Eu continuei quase sozinha as nossas satisfatórias publicações de “Livre Pensador”, mas os melhores textos, as melhores ideias e as mais claras também, eram sempre escritos por Caroline. Alan tentou me ajudar, ele tinha ótimas ideias, mas não sabia passar nada para o papel. Sebastian tentava me animar com nossas tardes de filmes. Em vários finais de semana Carlos vinha nos visitar, o que deixava a casa um pouco mais divertida. Estavam namorando sério e isso era bonito, eu gostava de ver como Sebastian estava feliz.

Vez ou outra eu ainda visitava Alan no teatro e me pegava esperando que Caroline entrasse com o grupo de teatro pelas cochias. Não aconteceria tão cedo. Eu via Alan triste, suas olheiras cada vez mais fundas das noites mal dormidas, vez ou outra eu até achava que ele perderia a cor. O meu emprego na biblioteca e meu curso iam bem, mas eu mal ligava pra eles nos últimos dias. O caso de Caroline havia realmente me afetado e afetado a todos nós.

Quando eu me pegava pensando nessa situação, de Caroline violentada e presa, corria até chegar em casa, onde eu sempre teria um ombro amigo. Era sempre Sebastian que me acolhia nos meus momentos de maior depressão, tristeza, confusão, caos. Por muitas vezes nem nos falávamos muito ou tínhamos algo pra contar, apenas nos sentávamos um do lado do outro e permanecíamos assim, quietos. Outras vezes nos prendíamos a falar sobre qualquer bobagem, qualquer mesmo. Talvez me ancorar tanto a Sebastian nos momentos de dor tenha contribuído para meu adeus.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha valido a pena tanta espera. Obrigada a todos.