Somebody That I Used To Know escrita por Luke Lupin


Capítulo 5
"It was a murder But not a crime"


Notas iniciais do capítulo

Cell Block Tango - Chicago (the musical)



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But we had time against us,

And miles between us,

The heavens cried,

I know I left you speechless,

But now the sky has cleared and it's blue,

And I see my future in you.

Numa melodia crescente, aqueles versos ecoaram dentro da cabeça de Henry, que dormia pesadamente em sua cama, enrolado por um edredom verde, com o travesseiro entre as pernas, suas mãos embaixo de sua cabeça e sua boca entreaberta, respirando lenta e calmamente. O garoto acordou. Ou melhor, se assustou. Seus olhos azuis encontraram a fina claridade que invadia seu quarto pela janela e arderam, ignorando a dor, Henry caçou por seu celular, que estava em sua cama, já que ele se lembrara de ter adormecido enquanto lia uma fanfic deitado em sua cama na noite anterior.

A mesma estrofe já tinha se repetido cinco vezes quando seu dono realmente entrou em desespero por não achá-lo, estava prestes a desistir quando vislumbrou, com sua visão periférica, o objetivo sobre um criado-mudo, segurando a risada, respondeu à chamada de celular.

— Alô? – disse, enquanto se levantava da cama e seguia para o banheiro, sonolento.

— E aí, cara? – era Thiago, incrível como só ele conseguia dizer “e aí, cara” com aquele jeito que caracterizava sua voz, sua idade, sua identidade e seu charme de uma vez só.

— Olá, Ago. – “Ago” era o apelido de Thiago, pois, de acordo com ele, Henry, quando criança, não conseguia reproduzir corretamente o som de “Thi”, mas reproduzia perfeitamente o som de “ago”, uma vez, quando Henry já tinha sete anos (e pronunciava Thiago corretamente), seu irmão contou isso a ele, Henry gostou da ideia e adotou o apelido, que utilizava até hoje e não se importava nada com o quão “de criança” aquilo poderia realmente soar.

— Velho, já te falei o quanto viado você fica falando isso?

— Já, e eu realmente não me importo, e nem você, que eu sei, então para de frescura. Está bem, cara?

— To de boas, faculdade tá meio puxada, mas dá pra levar, e você?

— Tá comendo direito? To bem, sim.

— Sim, mãe, estou comendo direito... – Thiago riu. – Está meio quieto aí, onde você está?

— Em casa, oras. Aliás, por que você me ligou tão cedo?

— Cedo? São sete horas, cara. Estou acordado desde às seis... – Henry parou de prestar atenção no que seu irmão disse depois que ouviu que eram sete horas, correu para um relógio e averiguou a veracidade da afirmativa, “Oh, Rá, to ferrado”.

— Quê? – perguntou, interrompendo o irmão no meio da narração de sua vida, já que não estava prestando atenção. Retirou o celular do ouvido e ligou o viva-voz, colocou-o sobre o criado mudo e começou a fazer as coisas que devia para sair o mais rápido de sua casa que pudesse.

Olhou-se no espelho, enquanto ouvia seu irmão falar sobre uma menina nova que estava gostando (“Mas meu deus, da última vez não era uma morena?”), e viu o que sempre via, concluiu que não teria tempo de tomar banho, abriu o guarda-roupa, arrancou uma calça jeans qualquer, uma camiseta azul clara e se vestiu, caçou um tênis preto, com cadarço branco e calçou-o, uma fina jaqueta branca completou sua vestimenta, colocou seu anel com uma coruja e um íbis no mindinho esquerdo.

Pegou o celular novamente, desligando o viva-voz, e colocou no ouvido novamente.

— Tá, Ago, já falei pra você parar de ser galinha que uma hora você vai se foder bonito e eu vou apenas rir. Mas por qual motivo relevante você me ligou às sete da manhã, garoto? Aliás, muito obrigado por, indiretamente, salvar meu dia escolar.

— Disponha, maninho, eu sempre vou cuidar de você, mesmo que você ache que eu te esqueço enquanto estou “sendo galinha” por aí, você é um dos únicos que eu sei que posso confiar sem medo, cara. Mas enfim, te liguei porque estava vendo as minhas atualizações do facebook agora de manhã, vindo pra faculdade, e vi que nessa sexta, vulgo depois de amanhã, terá uma sessão especial de Chicago num cinema aí na cidade que você e mãe moram, e pensei em te avisar, bom, na verdade, eu já comprei dois ingressos pra você, porque fiquei com medo de acabar e eu não falar com você, já que eu sei que você gosta bastante desse musical e tal...

— THIAGO EU TE AMO, CARA. TE AMO MESMO. – Gritou Henry, logo depois de pegar sua mochila, verificar se todos seus materiais estavam dentro dela e sair de casa, vindo a ter o pequeno ataque dentro do elevador, que, por sorte, estava vazio.. – Mas por que você comprou dois ingressos? Vai vir para cá e ver comigo? Sei que você odeia musicais.

— Ah... Comprei dois porque você pode querer levar uma menina da sua escola nova, sei lá... – Henry ficou quieto, odiava quando seu irmão falava sobre isso desse jeito. – Ei, não fique irritado comigo, eu só quero que você arranje alguém e não fique sozinho o tempo todo, sem contar que tá na hora de ficar com alguém de novo, cara.

— Acredite, desta vez eu não fiquei irritado, na verdade, veio até a calhar essa sua ideia de comprar dois ingressos, já que odeio ir ao cinema sozinho. Mande para o meu e-mail, Ago, e obrigado de novo. Te amo, e agora tenho que ir porque meu ônibus chegou. – E desligou, sem deixar que seu irmão perguntasse qualquer coisa relacionada ao fato de Henry não ter ficado irritado ao ouvir a ideia original do irmão, ou mesmo porque ele achou aquilo algo bom.

Henry entrou no ônibus, mais cheio do que costumava pegá-lo, uma vez que estava uma hora atrasado. Fez umas contas rápidas na cabeça e concluiu que conseguiria chegar, caso todo os fatores do mundo colaborassem, exatamente para a segunda aula, o que era ótimo, uma vez que esta seria a continuação da primeira. Seu celular vibrou.

Billie: Onde você está, Henry? Perder aula de físico-química uma semana antes da prova não é a coisa mais inteligente a se fazer, menino!

Henry: Eu perdi a hora .-. Meu irmão me acordou sem querer. Acabei de pegar o primeiro ônibus, com sorte chego para a segunda aula dela, qualquer coisa entro só na terceira... Pego a matéria com você ou com o Bruno depois, se for o caso.

Incrível como digitar no ônibus lotado, de pé, chacoalhando completamente é tão impossível quanto seres humanos criarem asas e saírem voando por aí. Seu ponto chegou realmente mais rápido do que esperava e é incrível como as pessoas se tornam incrivelmente desesperadas para descer naquele ponto, principalmente porque ele é o ponto final então todos irão, querendo ou não, descer ali.

Pegou o metro e se sentou, relaxando todo seu corpo e recostando a cabeça na janela, esperando para que sua parada chegasse. Mentalmente repassou suas tarefas para saber se tinha feito todas, o que de fato fez, conseguiu relaxar ainda mais.

Dois meses já tinham se passado desde aquela sexta-feira no shopping, quando foram ao cinema assistir a uma comédia romântica, e desde lá ele não tinha feito nada além de coisas escolares (e, claro, aprofundar sua amizade com todos os que conversava diariamente). Por isso considerou a ideia de seu irmão genial, imagine, sair numa sexta-feira, novamente, depois de tanto tempo, ainda mais com alguma outra pessoa.

Henry iria chamar Billie, porque ela era a única entre seus amigos que gostava de cinema tanto quanto ele, mesmo ele não sabendo se ela gostava de musicais.

Sua parada chegou e a porta estava quase fechando quando ele se lembrou que deveria descer ali.

Correu para o ponto de ônibus torcendo com todas as suas forças para que, quando chegasse lá, o ônibus estivesse parado, para que ele entrasse e, exatamente depois disso, ele partisse. Ao chegar, viu que suas expectativas estavam erradas.

Henry: Corrigindo, só vou chegar para a terceira aula, pelo amor de Rá faça a maior quantidade de anotações que você puder, e tente pegar a correção dos exercícios. Obrigado desde já.

Billie: Que a força esteja com você.

“Cara, essa menina é muito rápida no gatilho, lord”.

Sentou-se num dos bancos que estavam livres no ponto de ônibus, olhou para a rua e suspirou, apenas pensando quando que o próximo ônibus viria.

Cinco minutos de que já estava sentado, começou a jogar em seu celular, foi quando um menino sentou-se ao seu lado. Inicialmente, não se importou muito com ele, na verdade, seu jogo se tornou incrivelmente mais interessante depois que ele chegou, até que o garoto começou a falar sozinho, realmente mais alto do que o normal.

— Logo hoje que não posso perder nada, resolvo perder a hora, e ainda tem essa desgraça chamada prova de química na terceira aula, cuja qual pretendo chegar a tempo, apresentação de trabalho e mais uma prova de tarde. Ca-ra-lho.

Então Henry foi obrigado a pausar seu jogo e olhar para o lado, surpreendendo-se com o que encontrou. O garoto ao seu lado era realmente bonito e do tipo que, se você encarasse por alguns segundos, pensaria que ele não se importaria com nada exceto curtir a vida “porque você só tem uma pra viver”, mas ouvi-lo se desesperar com coisas escolares no começo do semestre é, para questões de nota, muito curioso.

— Quer ajuda com química? – Henry se pegou falando, segundos depois que construiu os traços psicológicos do menino em sua cabeça, sem nem mesmo parar para pensar sobre as reais consequências disso.

Quando o menino se virou, Henry pôde dar uma olhada melhor no garoto. Seu cabelo castanho escuro, naturalmente penteado pela sua mão, reluziam e separavam alguns raios solares de seu caminho naturalmente reto; seu nariz, incrivelmente proporcional ao resto do rosto; seus olhos um tom mais escuro que seu cabelo; o sorriso natural e de lado que se formou assim que o garoto se virou para olhar; seriam todos elementos de uma perfeita pintura barroca, com o sombreado nada menos que certeiro causado pelos raios solares da sete da manhã. A beleza era tanta que, mesmo Henry não sendo gay, se aquele menino soubesse o que falar quando o nível de carência estivesse num certo nível, Henry não garantiria nada.

— E você é...?

— Henry. – Respondeu, estendendo a mão para cumprimentar o garoto, que correspondeu educadamente.

— Pedro. Você faz química?

— Prazer. Faço...

— É bixo?

— Sou.

— Ah, imaginei, não consegui me lembrar de você em outros anos e eu com certeza lembraria. – E então sorriu de lado novamente. “Oh my fucking lord, você deve estar brincando comigo”.

— Então, vai querer ajuda em química ou não? – perguntou Henry, tentando não rir daquela situação toda.

— Tudo depende se você sabe a matéria... – respondeu Pedro, colocando uma mão na coxa de Henry e se aproximando do ouvido dele, cochichando: – ...ou não. – E então Pedro deu um beijo no canto de sua boca. Henry se virou para dizer que ele não curtia meninos, porém era tarde demais. Pedro já tinha lhe selado os lábios com os dele próprio, sua mão já percorria as costas do outro e parava na nuca, forçando-a para frente, para que os lábios dos dois realmente ficassem juntos; a língua dele forçou a entrada e obteve sucesso, ficou dentro da boca de Henry pelo menos vinte segundos, até que Henry conseguiu empurrá-lo para longe dele. Pedro tinha, não havia como negar, pegada.

— Cara! – Disse Henry, depois de recuperar parte do fôlego roubado. – Eu não sou gay e eu realmente só queria te ajudar com química. Aliás, onde no mundo oferecer ajuda em química é um sinal de que eu estou flertando com você? E são sete da manhã, tipo, sério?

— Meu Deus. – Disse Pedro, realmente demonstrando certa surpresa – Me desculpa. Tipo, sério mesmo. É que a carência bateu na porta e eu não tive como impedir... E, vamos colocar de uma forma mais apropriada para essa hora da manhã: você não é nada de se jogar fora. E, assim, desculpa mesmo, mas meu gaydar não é a melhor que existe e... e eu não sei mais o que falar.

— Relaxa, tá tudo bem. Quando a carência bate nenhum gaydar aguenta mesmo. Mas há de se dizer que, para um bi, seu gaydar é meio ruim mesmo... – E riu ao ver a expressão do garoto. – Sim, eu sou hetero. Sim, eu tenho gaydar. Sim, eu sei que você é bi. E sim, para todos os efeitos, eu ainda estou te oferecendo ajuda em química.

Pedro sorriu novamente, porém desta vez tirou seu caderno da mochila e abriu na parte destinada à química, mostrou-o a Henry e informou-lhe que “química não é pra mim”. Passando os olhos rapidamente sobre as folhas do caderno, foi possível concluir que a matéria em questão era hidrocarbonetos e que, depois da aula do técnico que teve, Henry conseguiria explicar aquela matéria para qualquer pessoa.

Dez minutos se passaram e outro ônibus se aproximou do ponto em que estavam. Henry entregou o caderno a Pedro e entrou no ônibus, sendo seguido pelo outro. Sentou-se no fundo e continuou a explicar a matéria. Depois que o veículo se encheu completamente, ele partiu. Quinze minutos se passaram, e os dois meninos desceram no ponto próximo à escola.

— Então, é isso que dá pra explicar em vinte e cinco minutos de transporte público, cara, espero que você consiga ir bem na prova... – Disse Henry, assim que ele e Pedro entraram na escola.

— Cara, você me fez entender química em vinte e cinco minutos, você é muito foda. Obrigado de verdade, eu realmente tenho esperanças de conseguir tirar pelo menos sete nessa prova, o problema só vai ser as ramificações, mas isso eu dou um jeito. Obrigado mesmo. Agora, deixe-me ir para conseguir entrar na aula antes de o professor chegar. – Henry estendeu a mão para se despedir do garoto, mas acabou sendo surpreendido por um abraço e um beijo na bochecha, realmente nela desta vez. – Esse é só de amizade, cara. – Disse rindo e piscando com um olho.

— Boa prova. – Respondeu Henry, também rindo. – E, ah, você também não é de jogar fora. – E também piscou com um olho de volta. Esperou até que o outro ficasse a certa distância dele, para seguir até sua sala. “Cara, ele rebola demais”, pensou, ao perceber o jeito que Pedro andava. Começar uma amizade com um beijo pode ser estranho, porém não quer dizer que não dará certo. “Mas ele rebola muito mesmo.”

Assim que chegou à porta de sua sala, a professora saiu, encarou-o e informou-lhe que esperava que ele não se atrasasse no dia prova, porque normalmente a prova de recuperação era mais difícil que a primeira prova. Sem saber exatamente o que responder para a professora, apenas sorriu, aquele tipo de sorriso que se dá a professores que forçam simpatia, e depois entrou em sua sala.

Chegou ao seu lugar habitual, logo a frente de Bruno, deixou sua mochila, e foi cumprimentar a todos.

— Hello, sweetie. – Disse Billie, antes que ele conseguisse dizer qualquer coisa, e depois o beijou na bochecha. – Sonhou com os anjinhos essa noite?

— Na verdade, – começou Henry, logo depois de cumprimentar a todos os outros – não. Porém, eu realmente queria. Eu fui dormir tarde ontem porque fiquei acordado até tarde fazendo nada. Como se eu não tivesse coisas demais para fazer, claro. Perdi muita coisa?

— Só exercícios de revisão e algumas dicas para prova. – Respondeu Bruno. – Te passo, se você quiser.

— I’d love to, bro. – Respondeu, pegando o caderno do menino sem que ele o oferecesse, sentando no seu lugar e voltando começando a copiar. O professor da próxima aula chegou e toda sala sentou e se aquietou, o professor era Paulo, lecionava Biologia, e o cara era simplesmente um gênio.

Assumindo a forma de pássaros, os minutos voaram e a aula acabou tão lindamente como começou, na verdade eles ainda teriam mais uma aula com ele, a próxima, porém era depois do intervalo, cujo momento tinha acabado de chegar.

— Hey, você vem? – Perguntou Larissa a Henry, enquanto todos esperavam-no na porta.

— Num minuto, podem ir, eu vou com o Murilo. – Respondeu o garoto, já que ainda estava copiando os exercícios e as respostas, para depois resolver em casa.

— Murilo! Meu Rá! – Exclamou Henry, assim que eles saíram do prédio, arregalando os olhos.

— Que é, cara?

— Você. Pisa. Torto. – E riu como se não houvesse amanhã.

— Entre todos que podiam notar isso, tinha que ser logo você? – Respondeu Murilo, revirando os olhos. – Sabe, você realmente engana a todos que te olham. A maioria deve pensar “hey, olha aquele preguiçoso lá, não faz nada da vida, só quer pensar em dormir”, eu sei que eu pensei assim, mas depois que te conhecem o pensamento passa a ser “esse moleque é exatamente nada do que eu pensava.” Jurava que você era a pessoa mais desligada do mundo no primeiro dia de aula, mas depois descobri que você presta atenção em tudo e zoa com todos.

— Zoo com todos com a mesma liberdade que eu dou para me zoarem, cara, ou seja, toda. Então relaxe, tortineo, você também pode me zoar, mas só depois que compartilhar com todos. – Disse Henry, rindo e correndo para a mesa que os outros estavam. — Apresento-lhes: tortineo. – Falou Henry, assim que Murilo se aproximou da mesa.

— Tortinho? Sério mesmo? Já me chamaram de torto, pé torto, curupira, curva, e, logicamente, de tortinho, estava crente que você seria original, pelo menos, Henry.

— Não é tortinho, cara, é tortineo, com uma letra E no lugar do H. Porque aí só vai ser você assim, você será único, cara, completamente único. – Disse, apertando a bochecha do outro, realmente entusiasmado.

— Tortineo, por que tortineo? – Perguntou Bruno, recebendo apoio dos outros.

— Porque ele pisa torto. – Respondeu, entre risos, Henry. – Vá, mostre Murilo. – Ele mostrou, todos riram, muito.

— Como é que eu não tinha visto antes, cara. – Disse Bruno.

POP.

— Exatamente! Como que passou despercebido? – Comentou Larissa.

— Isso é muito foda, sério. – Riu Billie.

POP.

As risadas duraram algum tempo ainda, mas depois cessaram e apenas o que foi o apelido que Henry colocou, cujo acabou sendo muito bem aceito (nem mesmo Murilo achou ruim, na verdade, também achou engraçado). Gabriela e Gabriel passaram pela mesa deles (coisa que já tinha se tornado muito comum, o que talvez fosse uma coisa boa, porque permitia a todos terem amizades de anos diferentes, e não só de suas salas), ela sempre tinha bastante coisa pra contar e envolvia a todos animadamente, Gabriel conversava com Murilo, com o qual tinha desenvolvido uma amizade diferente.

— Cara! – Henry sentiu que alguém pulava em suas costas e se segurava nele, envolvendo seu pescoço com os braços e sua cintura com a perna. – Eu devo minha vida a você, e nem é o final do ano ainda.

POP. POP.

— Mas que porra... – Disse Henry, inicialmente espantado com o gesto da tal pessoa anônima. – Pedro, desce de cima de mim! – ordenou, assim que reconheceu quem era. Este o obedeceu.

— Desculpa, cara. É que eu fui muito bem na prova de química e tinha que te falar! – falou, animadamente, Pedro, claramente ignorando o rosto espantado de todos da mesa que o encaravam. – E eu preciso te agradecer de alguma forma, o que você quer?

— Não precisa, cara, sério.

— Precisa sim, você me ajudou sem precisar e mesmo depois do que eu fiz... Preciso retribuir sim! Hoje eu pago seu almoço e não quero ouvir desculpas, te espero na frente do seu prédio pra gente ir almoçar. – E com isso saiu, sem nem dar tempo de Henry falar qualquer coisa que quisesse.

POP. POP.

— De onde você o conhece? – Perguntou Gabriela, curiosíssima.

POP.

— Do ponto de ônibus, hoje de manhã. – POP. – Ele estava com dúvida em química – POP – então eu ofereci – POP – ajuda – POP – a ele. – POP ­– Dá pra parar de estourar essa porra desse chiclete, Bruno? – E então o barulho finalmente parou.

— E o que foi que ele fez, que você ajudou mesmo assim? – Perguntou Larissa.

— Ele me beijou. – Respondeu Henry, indiferente, apenas ignorando os olhares espantados. – Mas eu não retribuí, se é o que os olhos arregalados de vocês querem saber.

— Sabe – iniciou Gabriela, logo assim que Henry terminou de falar, e incrivelmente atraiu a atenção de todos instantaneamente. “Cara, essa menina é filha de Afrodite ou o quê?” – Isso não é uma surpresa. Rolam boatos de que, numa festa de quando ele ainda estava no segundo ano, ele pegou seis pessoas ao mesmo tempo, dizem, ainda, que foram três meninas e três meninos...

— Como que se pega seis pessoas ao mesmo tempo? – Ironicamente ou não, quem se manifestou foi Gabriel, já que até ele e Murilo tinham parado de conversar para ouvir o que a menina tinha a dizer. Sua pergunta foi sustentada por todos que a rodeavam.

— Partindo do princípio que “pegar” não exija, apenas e necessariamente, a boca... – respondeu Gabriela, – eu creio que deixo a resposta para a imaginação de vocês. Aliás, toma cuidado no almoço hoje, Henry, vê se volta inteiro para as aulas de tarde. – E o sinal, como que programado para aquele momento, bateu e todos tiveram que voltar para suas respectivas salas.

Voltaram todos para sala mais rápido do que alunos normais voltariam, afinal, era aula do Paulo.

A aula voou, novamente, e assim também foi o resto da manhã. Em o que pareceu ser pouco tempo, Henry já estava descendo novamente as escadas e passava pela saída de seu prédio, realmente encontrando Pedro esperando por ele.

— Hey, vê se volta vivo para o laboratório de inorgânica, mad man with blue eyes. – Comentou, completamente segurando o riso, Billie, fazendo questão de utilizar ainda um quote de Doctor Who, mudando apenas o final.

— Relaxa, lindinha, não vou fazer nada com seu amigo aqui. – Disse Pedro, batendo a mão no ombro de Henry e piscando com um olho para Billie. Incrível como ele não perdia uma oportunidade de dar em cima de alguém. – Vamos, “mad man with blue eyes”? – Com um aceno positivo do outro, eles saíram para o almoço.

Pedro guiou Henry para um lugar que ele nunca tinha ouvido falar, não que isso fosse muito relevante, uma vez que ele não conhecia muito os arredores de sua escola, mas aquele lugar em especial tinha algo a mais, porque eles tiveram que fazer muitas curvas, mais do que Henry podia lembrar, caso tivesse que voltar sozinho para escola.

— Você não tá me levando pra nenhum lugar para me sequestrar ou me usar, né, Pedro? Porque eu realmente já perdi a conta de quantas curvas já fizemos.

— Não, eu sei reconhecer uma derrota sem volta quando sofro uma, cara. – Respondeu o outro, mais sério do que o normal, sem nem mesmo encarar Henry. – Aliás, nós já chegamos. – Concluiu, apontando para a porta do local onde almoçariam. – Eu espero que você não seja vegetariano, cara, porque aqui é a melhor churrascaria ever.

O local se chamava Cícero. Sua fachada não era a das mais atrativas, era apenas um pano branco e encardido em cima de uma porta de vidro, em que se lia o nome da churrascaria escrito em vermelho. Os garotos ultrapassaram a porta e o local de dentro fez jus à sua fachada, mesmo que a organização do local tentasse ocultar tal feito.

— Pode parece nojento e tals – Comentou Pedro, quase que lendo as impressões do outro. – Mas faz tudo parte do “estilo” do local. O dono daqui, Cícero, não gosta de coisas muito arrumadas, mas adora coisas limpas e antigas. A fachada e as toalhas podem parecer sujas, mas elas estão limpas, só que elas são antigas, então não há alvejante que consiga manter branca uma toalha de quarenta anos. As mesas e as cadeiras parecem velhas porque são velhas, mas são de madeira de boa qualidade, vai por mim. O dono daqui fez a melhor escolha da vida dele em não se adaptar aos conceitos atuais de decoração e estética, e olha que quem está falando não é Pedro e sim um futuro engenheiro civil com pós-graduação em arquitetura.

— Mesa para dois hoje, senhor Pedro? – Era realmente engraçado como o recepcionista conhecia (e o chamava pelo primeiro nome).

— Exato, Alberta, muito obrigado.

O local estava cheio, ou mais cheio do que se esperava ao se observar de fora, poucas mesas sobravam e a bancada que circundava as cinco churrasqueiras tinha mais gente do que conseguia suportar, todas as pessoas dela pareciam se conhecer a anos e todas elas conversavam animadamente. Ao passarem por ela, enquanto ainda seguiam Benedita, Pedro cumprimentou o churrasqueiro com um aceno de mão, que foi correspondido com animação.

— Achei que não voltava mais para cá, senhor Pedro! – Disse o churrasqueiro animadamente, assim que avistou o garoto.

— E o senhor acha que eu ia deixar de comer aqui? – Riu Pedro, como se ele e o dono do lugar fossem amigos há décadas.

— Ele é bem simpático. – Comentou Henry, assim que ele e Pedro se sentaram em uma mesa próxima a uma janela, que dava para um jardim cheio de arbustos e algumas flores aleatórias.

— Ah, ele é. Foi assim que conseguiu boa parte da clientela dele. No começo eu não sei como foi, mas sei que agora ele tem altas histórias para contar sobre o bairro e sobre o “tempo dele”, por isso que a maioria do pessoal vem aqui, além da ótima carne, é claro. Eu mesmo já matei umas tardes inteiras só para ouvir, esse cara viveu e sabe muito bem como contar.

— Interessante.

— Você vai querer o quê?

— É... eu não sei. Como carne muito raramente, porque quem faz a comida em casa sou eu e, convenhamos, carne boa não é tão simples de se fazer, pelo menos para mim, então não sei o que pedir. Peça o mesmo que você, que eu como de boas.

— Cara, todas as meninas com quem eu saio deviam ser como você e minha vida seria muito mais fácil, sério. O de sempre, por favor. – “O quão filme de cinema clichê algo é de zero a ‘o de sempre, por favor’, pesquisar”.

— Então você não sai com muitos caras, e mesmo assim tentou me agarrar hoje de manhã.

— Parece errado do jeito que você coloca as coisas. Sim, de fato, eu saio com muito mais meninas do que meninos. Porém, antes que você me julgue por qualquer motivo, todos os meninos com os quais eu me senti atraído fugiram de mim, porque peguei maioria deles em baladas gls ou porque eles não me queriam. Mas quem acabou perdendo foram eles. – E sorriu maliciosamente.

— Você tinha dito que sabia reconhecer uma derrota.

— Mas eu nunca disse que eu tinha perdido pra você. – E então encarou Henry profundamente, como se quisesse invadir a mente do outro, torcendo para que encontrasse uma brecha que pudesse usá-la ao seu favor.

— O que mostra que você não é um bom estrategista. – Rebateu Henry, encarando o outro de volta e inclinando sua cabeça mais para frente, querendo chegar mais perto dos olhos do outro, fuzilando-o com seus olhos azuis, que naquele momento ficaram mais ameaçadores que o comum. – Napoleão perdeu por entrar num território que não tinha ideia das dimensões.

— Cara, você me deixa sem ar. – Riu Pedro. – É uma pena que você não curta meninos, eu juro que adoraria namorar você.

Nesse momento o pedido deles chegou. Um prato de arroz com feijão, batata assada, um pouco de farinha e um grade pedaço de carne que Henry, com seus poucos conhecimentos sobre carnes, não ousaria tentar descobrir qual parte de qual animal aquela era. Pedro agradeceu a garçonete e ela saiu, deixando-os sozinhos novamente.

Colocando uma garfada de arroz com feijão na boca Henry se surpreendeu e, se a carne seguisse o padrão do arroz e do feijão, ela realmente era muito boa. Porém, quando chegou o momento de experimentá-la, ele viu que ela era, na verdade, muito melhor.

— Meu Rá.

— Eu disse.

— Como você descobriu esse lugar?

— Meu pai me trouxe aqui no meu primeiro dia de aula, ele disse que costumava vir aqui quando era criança, Cícero até reconheceu ele, eu juro que tenho até medo de descobrir quantos anos tem esse cara... Mas quando eu ficar velho, quero ser como ele: ter histórias para contar, ser foda em alguma coisa, e ser conhecido por bastante gente.

— Você faz Edificações, não é?

— Aham, por quê?

— Só pra saber, eu não tinha te perguntado ainda, quer dizer, te ajudei com química e tal, mas não sabia seu ano nem seu curso...

— Terceiro ano, Edificações, como já disse: futuro engenheiro civil com pós em arquitetura.

— Posso te fazer uma pergunta?

— Até duas.

— É verdade que você ficou com seis pessoas de uma vez?

Para qualquer observador daquela mesa, sentado onde quer que fosse, ou mesmo voando pela janela, seria difícil para ele decidir o que era mais engraçado no momento que se seguiu depois da pergunta: o nariz de Pedro ter ficado incrivelmente vermelho ou a indiferença com que Henry fez a pergunta, indiferença tanta que o garoto, logo após a pergunta, continuou comendo como se nada tivesse sido perguntado, estava esperando apenas a resposta.

— Que foi, Rudolph? Vai me dizer que você tem vergonha disso.

— Bom, normalmente eu não ligo para nada do que faço, porém sim, esse é o único caso que eu me envergonho de lembrar e/ou contar para alguém. Mas como você é gente boa, eu conto, desde que você não saia espalhando para meia escola a real verdade sobre os rumores que rolam por aí.

“Então, tudo aconteceu numa balada chamada Lipschitz, um balada em que há, literalmente, todo tipo de gente. Eu fui sozinho, era no segundo ano, não encontrei ninguém que quisesse ir comigo, porém realmente tinham outras pessoas da escola lá, mas até aí de boas. Eu comecei e beber e acabei bebendo mais do que deveria, e acabei ficando bêbado. Bom, agora imagine, eu já dou em cima das pessoas enquanto estou sóbrio, pense sobre quando estou bêbado.

“Comecei ficando com uma menina, depois eu fui atrás de outra porque tinha cansado daquela, só que ela não tinha cansado de mim, então me seguiu. Quando eu encontrei a segunda, a outra simplesmente apareceu e começou a dançar junto com a gente, digamos que eu estava no meio e uma dançava na minha frente e a outra atrás... Eu encoxava a que estava na minha frente, logicamente, e a de trás queria continuar me beijando e eu não sabia mais nada e comecei a beijá-la.

“Dali a pouco simplesmente surgiu mais uma menina que começou a se esfregar na minha mão eu não falei nada, porque né, e comecei a passar a mão nela. Então outra surgiu na minha outra mão, eu sei que pode parecer estranho, mas é real, ela simplesmente apareceu ali. Ficamos dançando nós cinco acho que por pelo menos meia hora, até que elas me arrastaram para uma das salas ‘particulares’ que tem nessa balada.

“Elas me jogaram no sofá e começaram a fazer o que bem queriam comigo e eu apenas fiquei lá, sentado, deixando com que fizessem o que quisessem. Eu estava de olhos fechados, e fiquei com eles desse jeito por pelo menos vinte minutos, quando eu resolvi abrir, e vi que estava só de cueca e que tinham mais duas pessoas naquela sala: dois caras.

“Então foi uma festa dentro da festa, todos em cima de mim como se eu fosse, sei lá, um doce no meio do formigueiro, e cada um me mordia, me lambia, se esfregava em alguma parte de mim. Acho que foi mais ou menos nesse momento que um dos caras me deu alguma coisa pra cheirar, e eu, idiota como sempre fui e bêbado como já estava, cheirei. Tudo girou e apagou.

“Acordei no outro dia num quarto que não era a antiga sala, deitado numa cama que eu realmente não tinha ideia de onde era. Estava com uma puta dor de cabeça e me sentia acabado. Olhei para mim e percebi que estava sem roupa, olhei em volta e vi que todos estavam dessa mesma forma e que o quarto estava uma zona, bebida no chão, drogas, camisinhas, roupas e lençóis. Eu levantei e comecei a caçar minhas roupas, foi nesse momento que um dos caras também acordou, olhou pra mim, sorriu e disse ‘você foi foda ontem, hein cara, vai querer uma carona?’, eu aceitei, achei minhas roupas e saímos.

“No carro, ele me perguntou onde eu queria descer, eu respondi e logo depois perguntei o que tinha acontecido no quarto, porque eu não me lembrava de nada. Long story short, o cara riu e disse que eu tinha feito sexo com cada um deles pelo menos duas vezes, eu fiquei quieto com medo dos detalhes. Quando chegamos ao metrô, ele me deu o celular dele e disse que se algum dia eu estivesse com tédio e quisesse repetir a dose ‘só com ele’ era só ligar, mas eu nunca liguei, porque eu tenho vergonha de olhar na cara dele.”

— Então foram quatro meninas e dois meninos, de fato os rumores estavam errados. – Comentou Henry, logo depois que Pedro terminou de falar e o seu nariz estava incrivelmente (mais) vermelho. O outro pareceu desconcertado.

— Você só tem isso a comentar? – Respondeu Pedro e dessa vez Henry olhou para o garoto, que realmente parecia envergonhado, o que era, para todos os efeitos, surpreendente.

— E você queria que eu falasse o quê? Cara, assim, eu já li coisas piores, então não, não me surpreendeu. Porém, não quer dizer que não seja chocante, quer dizer, não significa que você precisa sair contando assim, como se não houvesse amanhã... Agora controle-se Rudolph, e vamos embora porque quero chegar a tempo na escola.

Pedro realmente pagou a conta dos dois, mesmo Henry insistindo em não deixar. Saíram e pegaram o caminho de volta. Pedro parecia bem menos envergonhado e realmente parecia interessado em conversar.

— Boa aula, cara. Curti almoçar com você. – Falou Pedro, quando já tinham voltado e estavam no pátio, o sinal tocando e os alunos voltando para suas salas.

— Foi engraçado, Rudolph, muito obrigado pelo almoço, qualquer necessidade com química, estarei esperando.

— Sério, pare de me chamar de Rudolph porque isso é...

— Vergonhoso.

— Exato.

— Pode ter certeza que eu não vou parar, então. Boa aula.

Voltou, então, para sua sala de aula para esperar o professor, pois passariam a tarde inteira no laboratório. Ela já estava completamente cheia e seus amigos estavam conversando animadamente sobre um casal que eles viram na rua, enquanto voltavam do almoço do lugar habitual. Henry não falou nada, apenas sentou-se e ouviu o que eles estavam dizendo, sem realmente entender ou fazer questão disso.

— Como foi seu encontro? – Perguntou Murilo, sorrindo depois.

— Se tivesse sido um encontro, teria tido muito mais coisas do que realmente teve. Descobri coisas sobre ele ter pegado seis pessoas de uma vez.

— E aí? – Incrível como Larissa pareceu interessada em saber sobre isso.

— Foram quatro meninas e dois meninos. E basicamente é só isso que eu vou falar, mas achei que seria legal plantar uma semente do mal em vocês.

— Ei, vocês viram Mary-Ann e Lucia? Elas gostam tanto de laboratório e eu não as vejo desde o almoço. – Perguntou Bruno, querendo saber onde estavam as outras companheiras de laboratório.

— Ah, elas devem estar na rua aqui do lado, ainda faltam cinco minutos para a professora realmente chegar, ela sempre atrasa. – Comentou, vagamente, Billie.

— E o que elas estariam fazendo lá?

— Talvez alguma coisa que elas teriam contado para nós, caso quisessem que soubéssemos. – Respondeu Henry, instantaneamente, quando viu que Billie se mostrava muito perdida em relação à resposta que devia dar.

A professora chegou (o que surpreendeu a sala toda, pois ela só era esperada dali a cinco minutos por todos) e anunciou que todos poderiam ir para o laboratório, alegremente, todos seguiram sua ordem.

— Quando elas te contaram? – perguntou Billie, no corredor, para Henry, esperando que ninguém ouvisse nada. – Mary-Ann e Lucia, digo.

— Elas não me falaram nada, mas eu realmente sei somar dois com dois, Rose. – Henry tinha começado a se referir a Billie como Rose porque, em sua série preferida, uma das atrizes que fez uma das protagonistas da primeira e segunda temporada se chamava Billie Piper, Billie adorou a ideia.

— Então você é...

— Não, não sou. Aliás, nem você é, mas também tem, então pare com estereótipos.

— Sim, mas todas as meninas têm, elas que não querem usar, agora meninos... Mas desde quando você sabe?

— Terceiro dia de aula, porém não achei que elas fossem ficar, acabou que no final deu certo, não nego que elas combinam, mas acho que se elas não querem contar para ninguém, ora, é nosso dever esperar e ainda ficar surpreso quando elas finalmente anunciarem. E, aliás, só para questões de fatos, mesmo os meninos da nossa sala que deviam ter um gaydar bom, eles não têm, o que é triste, porque né.

— Meu Timelord, você também acha?

— Eu tenho certeza.

— Cara, a gente realmente precisa sentar e conversar em um lugar quieto e vazio, porque temos muitas coisas para falar que não podem ser ouvidas por todos. – Talvez, em toda sua vida, Henry nunca tenha gostado tanto dessa informação, tanto que ainda sorriu de lado, mas esperou que a garota não tivesse visto.

Entraram todos no laboratório e esperaram as instruções da professora. Naquele dia, eles fariam várias reações de neutralização, e deviam entregar uma lista com todas as possibilidades que tinham, com os ácidos e bases fornecidos, dos sais que se formariam, seus nomes, fórmulas, a reação devidamente balanceada, sua classificação quanto a solubilidade e evidência de reação (sendo necessário colocar mais de uma, caso houvesse), além do próprio sal, num saquinho de plástico devidamente etiquetado, a forma como extrairiam o sal era de inteira de responsabilidade do grupo, afinal eles tinham que começar a pensar como químicos.

A professora disponibilizou quatro bases e quatro ácidos, o que daria um total de dezesseis sais diferentes formados, o trabalho começou, todos os grupos estavam animados. O grupo de Henry dividiu as tarefas, ele se candidatou para montar as reações, Lucia queria classificar os sais, Bruno e Murilo ficariam com a realização das reações e Mary-Ann extrairia o sal. Lucia e Henry ficaram juntos com a responsabilidade de montar a lista e organizar o que deviam entregar para a professora.

E então começaram a trabalhar.

Henry montou as reações necessárias tão rápido que surpreendeu Lucia, balanceava-as, ainda, com uma facilidade impressionante, cinco minutos, no máximo, foi o que tomaram suas mãos para todas as reações que precisavam.

— Nossa. – Foi apenas o que Lucia conseguiu dizer quando Henry estendeu para ela suas reações, para que a menina classificasse os sais, enquanto ele passava a limpo o que acabara de fazer, para uma folha definitiva, a qual entregariam para a professora.

Bruno e Murilo, antes de começar a reagir tudo com tudo, separaram dezesseis béqueres e mostraram quais reações que seriam feitas neles. Como a professora não tinha estabelecido a quantidade que queria para cada reação, eles estabeleceram 10 mL como a quantidade de uma unidade e, depois, utilizariam os números fornecidos no balanceio da reação, para que conseguissem neutralizar completa e corretamente todos os sais, obtendo o desejado com sucesso. Separaram ainda mais oito béqueres em que colocariam os ácidos e bases necessários para todas as reações, assim não teriam que se mover de sua bancada toda hora para pegar reagentes, evitando excesso de esforço físico e possíveis problemas com o transporte. Só então começaram.

Mary-Ann tinha que esperar até que as reações, pelo menos algumas delas, fossem feitas, então começou a pensar como separaria o sal da água que se formaria, decidiu que o aquecimento seria a melhor forma. Pegou um bico de Bunsen, um tripé, uma tela de amianto e fósforo; conectou o bico na saída de gás, posicionou o tripé e depois colocou a tela de amianto.

Cada reação completa feita por Murilo e Bruno era passada para Mary-Ann, que colocava os béqueres para serem aquecidos, até que toda água evaporasse e sal fosse obtido, passava todo o sólido para um plástico e entregava para Lucia, dizendo qual era a reação de formação, então a menina escrevia o produto formado e entregava para Henry, que fixava na folha de entrega logo abaixo do nome do sal, junto com todas as informações pedidas pela professora.

Estavam com um ótimo sistema de trabalho, de modo que tudo progrediu muito bem e rápido, provavelmente conseguiriam terminar tudo antes do final da aula. Henry, às vezes, olhava para o resto do laboratório, para observá-lo, mas sempre parava na bancada de Billie, para ver como estava o trabalho dela. Mesmo que a bancada estivesse meio bagunçada, parecia estar fluindo muito bem, tinham divido tarefas, e cada um parecia fazer a sua, estavam numa ótima sincronia.

Foi quando se ouviu um barulho, uma vidraria quebrando, que o laboratório inteiro se voltou para a origem do som, todos os olhos arregalados, e sentindo um cheiro asfixiante tomar conta de todo laboratório.

— Mas que squish foi esse? – A professora Norberta adorava onomatopeias, mesmo que elas talvez não fossem adequadas para o momento.

— Derrubaram ácido sulfúrico no chão, professora. – Disse um dos alunos do grupo 8, Henry não lembrava o nome dele, exatamente.

— Beatriz! Papel toalha aqui, logo! – Gritou a professora para a estagiária, mesmo estando bastante calma, enquanto corria para o local onde o líquido tinha sido derrubado, e pegava um grande recipiente de vidro para colocá-lo. Henry e Billie se apressaram para abrir as janelas.

— Está aqui – disse a estagiária, estendendo o papel para a professora.

— Ótimo, limpe isso saí, é ácido sulfúrico, a propósito. – A garota arregalou os olhos, surpresa e com medo.

— Com papel?

— Lógico que com papel, menina, depois coloque dentro daquele recipiente de vidro e deixe a reação acontecer, tome cuidado para não se queimar, melhor não usar luvas, TOME CUIDADO e depois passe uma base qualquer no chão, em pequena quantidade, só para ter certeza de que limpou tudo, e saia desse transe, garota, antes que o ácido comece a reagir com o laboratório inteiro! – Beatriz demorou um pouco para realizar o que foi pedido, mas acabou fazendo, mesmo que com medo. – Bom, apenas para curiosidade, o que se deverá formar é carvão, porque o ácido tem um grande poder para desidratar e roubará todos os hidrogênios e oxigênios na proporção 2 para 1 das moléculas de celulose que formam o papel, deixando apenas o carbono, que caracteriza a formação do carvão.

“Bom, agora, quem foi?”

Norberta chegou perto do grupo e foi encarando cada um deles, todos respondendo com um “Uh uh” quase que inaudível, até que o culpado se manifestou.

— Fique calmo, Nicolas, isso é comum. Deixe seu nome com Beatriz depois que o valor do béquer será enviado para seus pais. Agora todos de volta ao trabalho!

Oito sais já tinham sido conseguidos pelo grupo de Henry e colocados corretamente para entregar à professora. Vinte minutos se passaram e os outros oito foram conseguidos, o grupo de Henry foi o primeiro a terminar.

Cada um seguiu o seu rumo, cada um para suas casas, Henry praticamente correndo para a sua: queria saber se seu irmão tinha lhe mandado as entradas.

Depois da odisseia diária, finalmente chegou. Jogou seu material no sofá e foi tomar banho. Saiu, “vestiu-se”, sentou-se em sua cama e conectou-se ao seu e-mail. Agradecendo aos deuses por seu irmão não ter esquecido, abriu o e-mail e leu. Um anexo estava com suas entradas e o corpo do e-mail estava com um link, que ligava-o para o site dos organizadores do evento. Numa leitura rápida: Henry descobriu que de fato era sexta-feira, porém era às 10 da manhã, ou seja, teria que matar aula. Na hora, Henry pegou seu celular.

Henry: Billie, diga que você gosta de musicais.

Billie: Eu gosto (?)

Henry: Isso é verdade ou você disse porque eu disse?

Billie: Eu disse porque você disse.

Henry: Ah )= Tudo bem.

Billie: Brincadeira, eu gosto, ou melhor, tenho nada contra, não é meu tipo preferido, mas eu não odeio como muitos por aí... Por quê?

Henry: Adiuhanihfciuosdhfcandsufhioasdfhcioahfsiudhfusa ainda estou me perguntando se você é real, cara, sério. Porque assim, vai ter uma sessão especial de Chicago essa sexta-feira, meu irmão comprou duas entradas e eu queria alguém pra ir comigo, porque amo esse filme e odeio ir ao cinema sozinho... Já tenho até as entradas e tal...

Billie: Sério? Que foda! Vamos, vamos sim, que horas?

Henry: 10 da manhã...

Billie: Bom, não temos nada na sexta-feira, nenhuma prova nem nada, só revisões para as provas, podemos nos virar pegando dos outros, Bruno principalmente, ainda assim podemos ir para o técnico... O shopping é longe da escola? Podemos ainda ver a primeira aula e dará tempo para tudo.

Henry: É até perto... Pode ser, pra mim de boas. Obrigado, Billie, sério.

Billie: Eu é que agradeço.

Desligou.

Comeu.

Dormiu.

Acordou.

E uma quinta-feira nunca passou tão rápido.

Sexta-feira chegou e Henry nunca se vestiu tão bem para ir à escola, nem saiu tão feliz de sua casa para a odisseia de cada dia, acabou chegando ainda mais cedo que o normal, avistou Pedro de longe e foi falar com ele.

— E aí, Pedro. – Disse, sentando-se ao lado dele e espiando o caderno aberto em suas pernas. – Resolveu chegar mais cedo que o normal dessa vez?

— Henry, beleza cara? – Engraçado mesmo é como essas perguntas nunca são respondidas. – É, né, tem que fingir que é bom aluno no último ano pra passar... E você? Decidiu não se atrasar e se arrumar bem dessa vez? Assim não fica fácil resistir ao seu charme. – E piscou com um olho. “Mas ele ainda não desistiu disso, meu Rá.”

— Pode ser tão difícil quanto for, mas da próxima vez que me beijar eu te dou um soco.

— Nossa, com toda essa marra... – Mordeu o lábio inferior, depois riu. – Brincadeira. É que eu tinha que fazer umas lições, achei melhor chegar mais cedo, porque em casa, de noite, não tem muita coisa que eu realmente tenha vontade de fazer, sem contar que eu realmente estou com as coisas em dia e tal...

— Você devia parar de galinhar e investir em alguém seriamente, Pedro, você realmente é mais legal do que sua imagem demonstra, de verdade. Precisa deixar pra lá essa fama de pegador e parar com isso porque eu sei que nem você gosta disso. – Pedro encarou Henry e sustentou o olhar, seu nariz ficou inconscientemente vermelho. – Bom, Rudolph, vou te deixar sozinho porque eu sei que você não curte ficar sem graça. – E seguiu para sua sala.

— Boa sorte com a mina, cara. – Foi o máximo que o outro conseguiu falar, ainda piscou com um olho e sorriu de lado. Seu nariz não estava menos vermelho que antes.

Foi para a sala de aula, sentou-se e começou a ler. Pouco tempo depois Bruno chegou (ele sempre era o primeiro a chegar, e estava acostumado a encontrar a sala vazia).

— Henry?

— Bruno.

— Por que você chegou tão cedo e se vestiu tão bem?

— Porque as forças maiores me mandaram uma mensagem e me mandaram fazer isso, engraçado né, foi tudo pelo meu sonho. Brincadeira, vou sair com a Billie depois da primeira aula pra assistir Chicago e ele merece pessoas bem vestidas, porque é o melhor filme ever.

— Aham, e é Chicago que está fazendo você se vestir assim, claro. Mas pelo menos é um bom filme. Por que entrar se é só para a primeira aula?

— Porque a vida não tem sentido, nem os adolescentes.

O resto da conversa antes que toda a sala chegasse foi tão sem noção quanto é possível prever pelas respostas dos dois. Billie demorou a chegar, mas chegou. Estava tão bem arrumada quanto Henry, porém também bem mais bonita que ele. Sorriram um para o outro e se cumprimentaram, disseram oi para o resto dos amigos, se sentaram, e assistiram à aula mais rápida da vida deles. Inglês nunca pareceu passar tão simplesmente quanto naquele momento.

Assim que a professora saiu, eles pegaram suas coisas, despediram-se e afirmaram que voltariam para as aulas do técnico, e saíram logo atrás dela, passaram pelos portões de entrada e a liberdade bateu suas asas na forma de dois garotos. Correram para o ponto de ônibus, animadíssimos, esperando que não se atrasassem para a sessão, nem para perder o ônibus.

— É a minha primeira vez. – Comentou Billie, quando ambos já se sentavam no banco do metro e ouviam o barulho da porta antes de fechar. O metrô estava bem vazio, além dos dois, no máximo mais cinco pessoas estavam lá.

— Que você mata aula?

— Não, que eu vou ver Chicago.

— Sério? – Respondeu Henry, arregalando os olhos e abrindo um sorriso. – Eu preciso escrever o que eu sinto, porque falar não é possível. – Pegou seu celular e enviou uma mensagem a Billie.

Henry: HUDNOIAUHFIUASHDFIUOCSHAFIOHASDFUCSHDFICHADSIOUFHOVINSHIODFUVHNSIOFNHVASIOFHSIUDHNFVIASUDHNFIDVSUHFIUVSHNFHDIFUSHNIDUFHNVISUFHSDFHNVSIUDFHNSIUDVHNFISUFHSIUDHVFNIOSDUHFIOSUADHNFVIUSAHFAUNDOFIAUHI.

— Cara, que foda, sério. Me sinto até lisonjeado de ser a pessoa com quem você vai ver pela primeira vez, sério! – Instintivamente abraçou a garota, depois ficou meio constrangido com o fato, não se lembrava se já tinha feito aquilo alguma vez, mas apostava muito na resposta negativa.

Chegaram. Desceram. Foram para o shopping e correram para o cinema, almoçariam depois da sessão, pelas contas de Henry daria tempo para fazer isso antes que as aulas de tarde começassem, o que faria tudo uma manhã perfeita. A sala não estava lotada, mas também não estava vazia, entretanto os únicos menores de vinte anos eram os dois. O longa começou.

O musical de fato era fantástico. Catherine Zeta-Jones dava um show de atuação, as coreografias eram magnificamente bem preparadas e atuadas, a edição, o diálogo, as músicas, tudo perfeito, ainda mais nos olhos azuis claros que admiravam aquele espetáculo. Cada música era um sentimento, sabia aquele filme de ponta a ponta, do começo ao fim e do fim ao começo, Henry mexia a boca conforme a música era cantada, não perdia uma prolongação de vogal ou mesmo a menor pausa possível, se segurava para não cantar em voz alta e não sair dançando, afinal não estava em sua casa sozinho.

Olhando para o lado enquanto suas músicas preferidas eram cantadas, Henry observava Billie, adoraria saber o que estava achando. Seus olhos castanhos prestavam completa atenção na grande tela, piscavam raramente, o cabelo azul caia para o outro lado, numa trança feita rapidamente, tanta concentração, mas tão natural, que nem parecia aquela a primeira vez que ela via.

Parecendo levar menos tempo do que realmente devia, o filme já estava em sua música final e a emoção de assisti-lo no cinema tomava conta de sala inteira, Henry não teria podido ver aquele filme quando lançou, afinal era muito mais novo e não teria motivo para se interessar por um filme em que as pessoas só cantam.

Billie se voltou para Henry, este encontrou seus olhos, ela apenas sorriu. Afinal, era só aquilo que bastava, um sorriso simples, que significava confirmação. Claro que aquilo não queria dizer que para a menina aquele era o melhor filme de todos os tempos, mas ela tinha gostado, e a primeira vez tinha sido com Henry, talvez o garoto nunca estivesse tão feliz como naquele momento.

Ao redor deles as luzes acendiam-se lentamente, a sala ia esvaziando, os créditos subindo, e ambos olhares cruzados, ambos sorrindo natural e levemente, ambos saboreando o ato de matar aula para ir ao cinema assistir a um ótimo filme. Felizes, os dois estavam felizes. Não tinham nada para dizer, talvez nem quisessem algo para dizer, apenas queriam estar ali, verdadeiramente ali, olhando.

Os incisivos olhos de Henry, os atentos olhos de Billie. José de Alencar gastaria pelo menos três páginas para descrever romanticamente todo aquele cenário, faria comparações, idealizações, imaginaria o cenário perfeito, a luz não estaria tão clara nem tão apagada, ambos olhos brilhariam, ambos corações disparariam, ambos sorrisos seriam comparados com a coisa mais pura que o narrador pudesse lembrar; Machado de Assis gastaria três capítulos de meia página para descrever aquela cena, num deles falaria dos olhos, suas cores, reais cores, o que causavam um ao outro; no outro, o cenário seria o palco de suas palavras, que dançariam pela página e montariam o melhor e mais verossímil local que os dois estavam; e o último seria o que se passava dentro de cada cabeça, cada pensamento, cada desespero. Ah, mas antes fosse tão simples como em Til ou Dom Casmurro.

O verdadeiro problema estava no interior. Negando ambos os movimentos marcantes e sendo na verdade três escolas anteriores àquela última, era como Henry estava. Sentia coisas por Billie, queria demonstrar tais coisas, mas nunca soubera como, queria fazer tal coisa, mas sua naturalidade comum mandava beijos e abraços e saia em viagem longa, e também não queria que a garota pensasse que ele só a tinha chamado para aquilo, realmente gostava dela, queria ter visto aquele filme com ela, mas não negava para si mesmo, lembrando-se das palavras de Pedro, que se houvesse algo mais, não teria nenhum problema em acontecer. Estava ali, a luz em seus cabelos azuis, fazendo sombra nos olhos azuis do outro, então o garoto escorregou o olhar e por milésimos de segundo pousou-o nos lábios da outra, depois voltou, seus olhos não mais os de antes, incrivelmente não mais os de antes, agora perguntavam, ansiavam a resposta, esta que veio fina e leve, curta, rápida, mas a necessária, aquela que queria. Sem correr, sem vencer aquela distância com rapidez, quase que obedecendo a um dos paradoxos de Zenão, ambas faces se encontraram e se envolveram, envolveram do jeito que tinha que ser, do jeito natural das coisas, do jeito sempre foi, não importando qual narrador conte, não importando de qual escola é, mas sendo sempre o mesmo quando o sentimento é o mesmo, sempre lá, pairando sobre o mundo, apenas caçando alguém para atingir, e felizmente sempre tendo sucesso.

Ficaram lá mais tempo do que deveriam, não veio ninguém interrompê-los, estavam abraçados, conversando sobre o filme que viram, Billie sendo sempre crítica e com comentários certeiros, as vezes repetiam a dose anterior, e adoravam, era cada vez melhor. Não sabiam se realmente voltariam para a aula aquela tarde, sabiam que seriam caçoados, principalmente por seus amigos, não ligavam. Estavam matando aula juntos, pela primeira vez. Cometendo um metafórico assassinato, tão metafórico, que nem mesmo crime podia ser considerado.


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