Panem Et Circenses escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 29
Retorno


Notas iniciais do capítulo

Bem, chegamos ao último capítulo - penúltimo, se forem considerar o epílogo - e eu honestamente estou emocionada. Tenho muitas e muitas coisas para falar, mas vou deixar para dizer no próximo capítulo. Espero, do fundo do meu coração, que gostem.



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— Edelweiss! Edelweiss!

Nunca apreciei tanto o fato de haver tantos travesseiros e almofadas sobre a minha cama no Centro de Treinamento quanto agora, em que ao alcance de minhas mãos há um travesseiro que eu posso pegar e colocar sobre minha cabeça, para me ajudar a ignorar a voz de Simary Loyel me acordando e chamando, insistente.

— Edelweiss!

O som fica mais abafado, mas ainda audível. Ela está gritando, no corredor em frente à porta do meu quarto.

— Edelweiss, eu preciso que você venha até aqui!

Mal-humorada, tiro o travesseiro da cabeça e olho o horário no meu relógio-despertador.

São dez horas da manhã. Como Simary pode estar me acordando a esta hora? Ela sabe que ontem eu só pude dormir depois das cinco. E ela estava junto comigo, logo, dormiu no mesmo horário. Como ela pode já estar de pé e gritando?

— O que foi? – Grito de volta, voltando a fechar os olhos.

— Venha cá!

Levanto-me e vou, determinada a gritar com ela quando a vir. Acabo não tendo tempo – assim que abro a porta, Simary estende uma revista para mim. Só não antes, é claro, de olhar com uma careta para minha aparência, já que quando cheguei ao Centro de Treinamento estava tão cansada que apenas tirei as sandálias e a coroa, e dormi com meu vestido e tudo.

Dou uma olhada na capa da revista.

Há uma foto minha e de Mastt, no saguão da mansão do presidente, e ela foi tirada no exato momento em que estávamos nos beijando. Sei que devo ser uma baita celebridade na Capital agora que venci os Jogos, e que continuarei sendo-o para sempre, mas a foto na revista me deixa para lá de assustada, me perguntando por um segundo o porquê de terem tirado esta foto, antes de a resposta óbvia se passar por minha mente e, por fim, pensando em quem pode ter tirado a foto.

— Em que página está isso? – Pergunto, folheando a revista rapidamente, meu sono passando.

— Na revista inteira.

— Como...?!

— Queria tanto ser famosa como você. – Simary suspira. – Veja, praticamente não se fala em outra coisa nesta revista, e é a mais popular por aqui. Claro que há outras, mas todas estão falando sobre isso, naturalmente.

Continuo folheando a revista, embasbacada.

— Hm, certo, Edelweiss, eu sei que você deve estar muito contente, mas a sua equipe de preparação vai estar aqui ao meio-dia para te arrumar para a entrevista, então – Ela arranca a revista de minhas mãos – vá tomar banho, e depois venha comer. Daqui à uma hora vão parar de servir o café da manhã e começar a preparar o almoço, mas vou pedir para eles segurarem mais um pouco para você.

Dito isso, Simary vai embora, me deixando plantada na porta pensando no que ela acabou de me mostrar. Algo me diz que esta será a primeira de muitas situações assim. Bufo, e então volto para o quarto, procurando não pensar mais nisso.

Vou para o banheiro, tomar banho. Eu tinha me esquecido totalmente o quanto é tranquilizador estar debaixo de um jato de água quente, algo que eu nem sonhava em ver de novo enquanto estava na arena.

Eu nunca mais quero sentir frio. Na verdade, eu até lamento profundamente que minha pele esteja agora lembrando a neve, sendo que isso é algo que eu repudio tanto. Sim, sempre tive a pele pálida, afinal, no meu distrito, por causa da poluição, nunca temos muito contato com o Sol, mas o que a Capital fez comigo já é exagero.

E não dá para eu continuar a me convencer de que aparência é futilidade. Não com a minha imagem espalhada por todo o canto.

Visto roupas confortáveis após o banho, me aproveitando do tempo que tenho antes de Kallux me entregar a roupa da entrevista, e vou para a sala de jantar.

Mastt está lá, sentado diante à mesa, tomando o café da manhã. Sorrio enquanto vou me sentar ao seu lado.

— Você viu? Aparecemos em uma revista.

— Você acha mesmo que a Simary não foi me acordar para mostrar, também? – Ele pergunta, em tom de brincadeira.

— É verdade, foi falha minha.

Encho meu prato com torradas e ovos fritos. Apesar de eu ter comido tanto no banquete de ontem, todas as vezes em que me lembro da arena, parece que sinto novamente um buraco negro se abrir em meu estômago.

Mastt olha para o meu prato, curioso.

— Você, comendo fritura pela manhã?

Nisso, já levei a minha primeira garfada à boca, e paro de mastigar no ato, pensando no que acabei de fazer por um segundo.

Então, engulo.

— Acho que o meu apetite mudou. – Encolho os ombros.

— Isso sim deveria ir parar na capa de uma revista.

Rio.

Termino de comer, repito, e Simary vem me chamar, dizendo que minha equipe de preparação já está no meu quarto, me esperando.

Eles demoram pouco tempo para me aprontar e prender meus cabelos em uma complicada trança de lado, e não param de me fazer perguntas sobre como foi o banquete. Eles dariam de tudo para terem estado lá. Kallux, por sua vez, parece bem feliz quando vem trazer minha roupa da vez.

Um vestido, mais uma vez tomara-que-caia, mas desta vez com uma saia que termina um palmo acima do joelho, diferentemente dos outros, que iam até meus pés. Ele não tem enfeites, e é feito de veludo azul-escuro. Para calçar, uso botas de veludo branco sem salto, o que é um alívio, porque as sandálias de salto que tive de usar ontem machucavam.

Ele me acompanha até a sala onde a entrevista ocorrerá – que, por acaso, é a mesma onde aconteceram os ensaios para a outra entrevista, antes dos Jogos – e lá encontro uma equipe de filmagem montando o equipamento para a entrevista, Mastt num canto conversando com alguém que nunca vi na vida e Ava Cantall, que surge para me cumprimentar.

— Esta é a primeira vez que conversamos fora das câmeras. – Ela comenta, apertando a minha mão.

— Sim. – Me resumo em dizer. Realmente não gosto dela depois do que ela me induziu a quase dizer na outra entrevista.

Ava fica me olhando e sorrindo por mais algum tempo, como se esperando que eu fale algo mais, mas como não, ela dá de ombros e vai se sentar na poltrona designada para ela. Um membro da equipe faz um gesto me indicando um sofá perto dela, e vou me sentar lá.

A entrevista se inicia, e fico alegre por Mastt ficar no aposento o tempo inteiro, atrás do cameraman. Também é bom porque posso olhar para ele enquanto respondo a primeira parte da entrevista de mais de uma hora – a parte em que Ava fala da arena. Eu diria que esta é a terceira vez em que tenho de passar por toda a agonia daquelas terríveis semanas.

Depois disso ela fala sobre mim e Mastt. É mais tranquilo, e posso falar olhando para ela. Ava conclui a entrevista me fazendo perguntas sobre o que eu quero da minha vida a partir de agora, e como vai ser voltar para o meu distrito e reencontrar minha família e amigos, o que me deixa com ainda mais saudades.

Quando a câmera é desligada, vou abraçar Mastt. Após alguns segundos ele me diz, gentilmente:

— Você foi bem. Por que agora não vai para o seu quarto pegar a sua pulseira? Me contaram que ela foi colocada em um dos porta-joias. O carro que vai nos levar até a estação de trem já deve estar chegando.

Concordo de prontidão.

— Maravilha.

Vou correndo até o quarto, e pela primeira vez paro para pensar que trinta e uma garotas já chamaram aquele mesmo quarto de delas, e várias chamarão depois de mim. E todas as que estiveram aqui no passado, agora, estão mortas.

Mas deixo para ficar deprimida com isso mais tarde. Agora estou prestes a seguir o meu caminho de volta para casa. Não há como me chatear sabendo disso.

No quarto, percebo o quanto posso demorar a achar a pulseira da prefeita Vimberg. São muitos porta-joias. Acho-a no terceiro, no entanto, e vou para a sala de estar, que por ser o aposento mais próximo do elevador, suponho que seja onde todos estão.

Estou correta. Mastt, Simary e Kallux estão lá, os dois últimos apenas para se despedir.

— Até ano que vem, Edelweiss. – Diz Simary, colando o rosto no meu e beijando o ar como já fez antes.

— Até. – Respondo, embora não seja uma boa notícia que ano que vem eu tenha de voltar para cá, para ser mentora de dois novos coitados.

— Edelweiss, eu separei uma roupa para você vestir amanhã, para estar apresentável quando chegar ao seu distrito. – Fala Kallux, colocando a mão amigavelmente no meu ombro.

— Certo, obrigada. – Não acrescento que posso muito bem ficar apresentável sozinha.

— Vamos, Edelweiss? – Chama Mastt, já indo chamar o elevador.

— Vamos! – Com um último aceno para minha acompanhante e o meu estilista, vou até Mastt.

Nós descemos pelo elevador, e realmente há uma limusine esperando para nos levar à estação.

É a primeira vez em que vejo a cidade sem uma multidão em volta. No fundo, sei que ela é bonita, mas meus sentimentos por ela são por demais odiosos para eu admitir que acho isso.

Na estação, o trem também já está nos esperando. É questão de minutos para estarmos dentro, e ele logo parte rumo ao Distrito 3.

— Acabou. – Não sei dizer se isso que eu falo é uma afirmação ou uma pergunta, que faço logo quando a porta se fecha e encosto-me a ela.

— Nunca acaba. – Mastt corrige, pesaroso. – Seja bem-vinda ao resto de sua vida, Edelweiss.

— Acho que quero começar o resto de minha vida com um bom copo de chocolate quente.

— Foi assim que comecei o resto da minha também. – Ele me dá a mão, e nós dois vamos ao vagão-restaurante.

O resto da tarde é tranquilo. Nós tomamos nossos chocolates e conversamos um pouco, e então eu vou até o meu quarto do trem para conferir a roupa que Kallux separou para mim. Vejo que é uma peça tão amarela e exagerada que meu queixo cai. Kallux fez roupas legais para mim do desfile até a minha última entrevista. O que deu nele agora?

Resolvo que não vou vestir isso amanhã. Kallux não estará aqui para me obrigar.

De noite, eu e Mastt jantamos e assistimos à reprise da entrevista. Apesar de eu ter feito um comentário sobre chocolate quente indicando pouco-caso quando Mastt falou que tudo isso nunca acabaria, as palavras dele ficam ecoando mais e mais vezes em minha mente. Isso, misturado à ansiedade de chegar a minha casa, me deixa com medo de não conseguir dormir esta noite.

Medo que é, depois, comprovado. É uma noite em que não paro de rolar em minha cama, pensando no passado, no presente, e especialmente, no futuro.

Mas é só por causa dessa noite de insônia que acabo podendo me levantar na hora certa, visto que não tenho mais Simary Loyel para vir me acordar todas as manhãs.

Ao ver que o Sol já está nascendo, vou tomar banho, e depois me ponho a escolher uma roupa. Acabo optando por um vestido amarelo liso, e ponho um casaquinho branco por cima, combinando com a faixa de cabelo e as sapatilhas que escolho. Não seria a combinação que eu normalmente escolheria, mas quis algo amarelo para não desvalorizar totalmente a roupa escolhida por Kallux.

Assim como mal consegui dormir, também mal consigo comer na hora do café-da-manhã. Por uma janela, consigo ver ao longe um distrito que creio ser o Dois. Tento ampliar a imagem em minha mente e imaginar Kalle e Junie por lá, parecendo, quem sabe, mais humanos do que pareciam na arena. E não consigo.

É um fato que o Distrito 2 sempre foi um dos meus menos favoritos, mas é bom vê-lo, pois significa que estamos perto do Três.

Entre os dois distritos há um longo descampado, e é quando estamos atravessando-o que não consigo mais me aguentar e desisto completamente de comer para não perder nem por um segundo a minha atenção na janela.

Dentro de meia-hora, confiro que o céu azul de repente vai se tornando cinzento. Começo, mesmo sem querer, a sorrir. Nunca gostei de morar no distrito mais poluído de Panem, mas neste momento, nada me consolaria mais do que estar nele.

Passamos pela cerca que define os limites do Distrito 3, e já posso ver as primeiras fábricas. Mais adiante, alguns prédios de no máximo quatro andares, que é o tamanho máximo permitido para os prédios do Três. Então, adentramos a estação.

Ela está abarrotada de gente. Parece que todos do distrito decidiram que iriam me ver chegar, e não levo mais de dois segundos para começar a entrar em desespero, sem localizar meus irmãos e pais no meio da multidão.

— Onde estão eles? – Pergunto, nervosa, tendo a plena consciência de que eles podem me ver, mas eu não posso vê-los.

— Calma, Edelweiss, você poderá procurá-los lá fora em um minuto. – Diz Mastt.

E este único minuto parece uma eternidade, mas por fim a porta do trem é aberta, e nós podemos sair. Também há câmeras da Capital por aqui, para gravar a minha volta, mas dessa vez consigo ignorá-las plenamente enquanto salto para fora do trem, olhando para os lados em busca de alguém da minha família.

— Edelweiss! – A voz de minha irmã mais nova soa como música para os meus ouvidos.

— Penn! – Corro na direção em que veio a voz, mal conseguindo enxergar a garota quando chego a ela e nós nos abraçamos, de tantas lágrimas que estão em meus olhos.

— Eu sabia que você ia vencer.

— Eu não conseguiria vencer se não tivesse recebido aquela foto com você e o Kevan.

— Ah, Edelweiss, quanto àquela foto... – É só então que percebo que ela também está chorando, mas as lágrimas dela não parecem tão felizes assim.

— Penn, o que houve? – Indago, assustada, afastando-a um pouco para poder olhar para ela.

Penn não tem a oportunidade de responder, pois nisso a prefeita Vimberg chega, parando ao nosso lado.

— Este é um momento familiar. – Digo a ela, tentando não parecer tão mal-educada, e principalmente não querendo ouvir o que quer que a prefeita tenha a me dizer.

— Tudo bem. Eu só quero a minha pulseira de volta.

Pego-a no meu bolso – não voltei a colocá-la depois da arena – e a entrego.

— Meus pêsames. – Falo, e verdadeiramente sinto muito pesar pelo filho dela.

— Nós tínhamos um acordo em que você dizia que iria cuidar dele.

— E eu cumpri o meu papel. Cuidei do Pine, e muito bem. – Defendo-me, e subitamente sinto que as minhas lágrimas também não são mais tão alegres. Abraço Penn de novo.

— Então, por que ele não está vivo?

— Porque Junie o assassinou. Repare que falei “Junie”, e não “eu”.

A expressão da prefeita Vimberg deixa de ser apática e se torna amargurada e sombria.

— Vou tornar a sua vida a partir daqui um inferno, Edelweiss Roxteed.

— Minha vida a partir daqui já será um inferno com ou sem a sua interferência. Com todo o respeito, prefeita. – Pronuncio a última frase com sarcasmo.

Ela se vira e some no meio da multidão novamente. Já deu a sua mensagem.

E a presença dela é substituída pela mais agradável de Kevan, que aparece vindo em nossa direção e pula em cima de mim, me abraçando com tanta força que tenho de soltar Penn para abraçá-lo. Penn provavelmente veio correndo até aqui, e só agora mamãe e Kev nos alcançaram.

— Você cresceu enquanto eu estive fora, não cresceu? – Pergunto, bagunçando os cabelos louros do meu irmãozinho.

— Cresci? – Ele fica em dúvida, e rio brevemente.

— Acho que sim. Você parece ter... – Olho bem para ele – Nove anos agora!

— Uau! – O menino de oito anos me olha, encantado com minha declaração.

— Edelweiss. – Ouço a voz de minha mãe, e solto Kevan para ir abraçá-la também.

Percebo que o choro dela também não é lá muito alegre enquanto nos abraçamos.

— Mãe, o que aconteceu? – Tenho de perguntar, já ficando impaciente com isso.

— O seu pai, Edelweiss.

— É. Vi que ele não está aqui. Por quê? – Isso me deixa apavorada, olhando para os lados, procurando-o.

— Ele conseguiu mandar aquela foto sua e de seus irmãos para a Capital, mas descobriram. Os Pacificadores... Eles...

— O quê?

— Eles o mataram, Edelweiss.

— O quê? – Minhas lágrimas de alegria cessam.

— É proibido mandar fotos para os tributos, e descobriram. Foi isso.

Sem saber como lidar com a notícia, solto mamãe e dou um passo para trás. Penn afaga meu braço com gentileza.

— O Mastt sabia que isso aconteceria? – Pergunto, num fio de voz.

— Ele estava pensando no seu bem. Não fazia ideia de que papai morreria. – Conta Penn. – E se ele morreu por você, acho melhor sermos gratos por estarmos todos juntos.

Minha irmã está tentando fazer eu me sentir melhor mesmo que ela mesma esteja abalada com isso, como estava fazendo na nossa despedida depois da colheita.

Puxo para um abraço tanto mamãe quanto Penn e Kevan dessa vez. Agora sou a garota mais rica e famosa do Distrito 3, que mora com a mãe e os irmãos em uma casa na Aldeia dos Vitoriosos, com todo o luxo possível.

Vou tentar pensar só nisso, por ora. Quanto ao resto, ainda tenho a vida inteira pela frente para me preocupar.


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Notas finais do capítulo

E pela última vez... Até o próximo!