Panem Et Circenses escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 20
Traição


Notas iniciais do capítulo

Estou doente... Odeio isso. Não estou conseguindo ficar três horas inteiras acordada, o tempo está todo confuso. Pelo menos não esqueci do capítulo...
Espero que gostem.



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Não sei que forma de pensar, exatamente, me trouxe a este momento.

Talvez eu tenha sido inocente e ingênua demais para crer com tanto afinco que Flavia não me trairia, como fez com os Carreiristas.

Ou, quem sabe, eu realmente estivesse fragilizada com a morte de Pine a ponto de querer confiar cegamente, como outrora confiei nele, em outra pessoa.

Mas Flavia não é como Pine era. Longe disso. Porque eu jamais acordaria durante a noite e encontraria Pine com minha lança, querendo me matar.

Outra coisa que eu não sei é o que seria de mim se eu não tivesse pensado rápido, ficado surpresa a ponto de congelar no lugar e não conseguido fazer algo para me defender. Mas, felizmente, o meu choque não me impede de levantar com um pulo e recuar um passo imediatamente. Bato em uma árvore, atrás de mim, ao tentar me afastar mais.

— Ah, mas que droga. Você acordou. – Flavia lamenta, mas não parece ter ficado nervosa por eu tê-la pego no flagra.

— Por quê? – Pergunto. Por minha vez, eu estou apreensiva. Ela está com a minha lança, e eu estou desarmada. Como pude ser tão burra a ponto de deixar isso acontecer?

— Porque estamos em um jogo onde, se você não mata, é morto. É um bom motivo para você? – Ela responde, com dureza. Mas alivia um pouco o tom quando continua: – De verdade, Edelweiss, você poderia ser minha amiga se não fosse por isso. Mas os Jogos são maiores que qualquer amizade. Sinto muito.

Com essas palavras, ela desfere a ponta da lança em direção ao meu peito. Com um giro, saio da frente, mas os reflexos de Flavia são suficientemente bons para ela não enfiar a lança na árvore por engano, e praticamente me seguir com a ponta.

Seria bom dizer que eu abaixo quando ela tenta me acertar do mesmo modo pela segunda vez, porém a verdade é que o meu movimento de desvio do primeiro golpe foi feito em tamanha velocidade que perco o equilíbrio e caio sentada, e é por isso que Flavia não consegue de novo, a lança perfurando o ar sobre a minha cabeça.

Vou me arrastando de costas, tomando impulso com as mãos e com as pernas para sair do caminho sem me levantar, saindo da frente e indo para trás dela. Só paro quando minha mão direita esbarra em uma pedra.

É isso.

Meus dedos se fecham em torno dela. Nisso, Flavia já está mais uma vez virada para mim.

Me levanto, indo simultaneamente para o lado, a pedra em mãos. Sou mais rápida que ela dessa vez, e antes que Flavia possa fazer qualquer movimento, ergo a pedra e a golpeio com toda a força na lateral de sua cabeça.

Ela pragueja, deixa a lança cair e cambaleia um passo para o lado. Sou em quem está na ofensiva agora.

Inspiro profundamente, para manter a calma. Eu não queria ter de fazer isso, mas Flavia não me deixou muitas opções. Bato de novo. Expiro. O grito dela é sofrido, não mais irritadiço, e ela não consegue mais se defender. Está quase caindo.

Na terceira vez em que a acerto, Flavia cai. Uma voz dentro da minha cabeça está gritando “Pare! Pare”!”, e é por causa dela que tento não pensar enquanto golpeio minha aliada traidora mais duas vezes.

Soa o canhão.

Parece que é só então que caio completamente em mim, como se eu estivesse fazendo tudo no automático e somente agora me desse conta de que, doravante, estou sozinha nesses Jogos.

E pior: Que eu sou uma assassina.

Parte de mim ainda se recusa a acreditar nisso. Mas, francamente. Por minha culpa, duas pessoas perderam suas vidas. Eu assassinei Flavia, e assassinei Junie. O que mais eu posso ser?

Olho para a mão em que continuo segurando a pedra. Tanto o objeto quanto meus dedos estão manchados de sangue.

E tudo repentinamente se torna insuportável. Solto a pedra no chão e saio correndo, sem rumo, apenas para longe. No caminho, apanho meu agasalho, que estava no chão por eu tê-lo usado como travesseiro para dormir, mas esta é a única coisa que eu me preocupo de levar comigo. A comida e até a lança ficam para trás.

Corro por mais de uma ou duas horas a fio, com os mesmos pensamentos em mente. Meus olhos estão totalmente secos, o que não expressa como eu estou me sentindo por dentro. É como se eu estivesse perturbada demais até para chorar.

E quando enfim consigo me exaustar, tanto física quanto psicologicamente, simplesmente desabo no chão. Me encolho, abraçando meu casaco, e fecho os olhos, desejando fervorosamente abri-los mais tarde e descobrir que eu estou na minha casa, e toda essa história de ser tributo na 32ª Edição dos Jogos Vorazes foi apenas um pesadelo. Mas não os abro tão cedo, pois depois de algum tempo, estando tão cansada, no meio da madrugada e deitada no chão, acabo adormecendo.

Quando acordo de novo, pela posição do Sol no céu, concluo ser quase meio-dia. Estou bem mais calma, embora não menos infeliz, e sinto dor ao sair da posição desconfortável em que eu estava dormindo depois de tantas horas.

Visto meu agasalho. Estou com fome, e suspiro ao me lembrar de que abandonei a mochila com a comida, depois do incidente com Flavia.

E, ainda por cima, abandonei minha lança. Como eu pude ser tão idiota a ponto de fazer isso?

Como se para me consolar, neste instante vejo um embrulho caindo do céu preso a um pequeno paraquedas prateado, como uma gota prateada de esperança pingando para dentro da minha vida.

Mal posso acreditar. É dessa maneira que os itens comprados pelos patrocinadores chegam – tecnicamente falando. Os patrocinadores, na verdade, apenas doam o dinheiro, e é o mentor do tributo patrocinado que o utiliza para comprar o que achar melhor para ele. E o paraquedas pousa bem na minha frente, de forma que isso com certeza é para mim.

Pego o pacote e desfaço o embrulho, esquecendo temporariamente de meus problemas, a preocupação dando espaço para a curiosidade.

Encontro um pote prateado como o paraquedas e um pequeno papel, com algumas palavras digitadas em letras elegantes:

“Não fique mal. Seus torcedores triplicaram desde a morte de Flavia. E lembre-se de que estou esperando por você.”

Mesmo sem ver o que há no pote, sei que não é algo tão bom quanto esta mensagem de Mastt.

Meu humor milagrosamente melhora um pouco. Penso se a minha solidão não é apenas relativa. Afinal, se eu sobreviver aos Jogos Vorazes e sair desta arena, vou encontrar Mastt me esperando. E não apenas ele, mas também um monte de gente de grande valor para mim.

Após ler aquelas palavras dezenas de vezes, dobro o papel cuidadosamente e o enfio no bolso do casaco. Eu nunca descartaria uma mensagem desse tipo. Então, pego o pote, e desenrosco a tampa.

Lá dentro há alguns pacotes de comidas desidratadas.

Elas são secas, mas muito boas. Como algumas, e deixo as outras para mais tarde.

Gasto um bom tempo pensando no que vou fazer em seguida. Por mais doloroso que seja, tomo a decisão baseada no que eu faria se estivesse com Pine: Andar. Manter-me em movimento.

É difícil não ter alguém com quem conversar. Eu me acostumei a ter, o tempo inteiro, outra pessoa por perto. E no silêncio, pensamentos angustiantes são bem mais frequentes, às vezes me dando vontade de gritar “Cale a boca!”, para mim mesma.

Eu estou enlouquecendo, definitivamente.

Mesmo tentando pensar o tempo todo na mensagem de Mastt, nas pessoas que estão me esperando fora da arena e nos meus torcedores triplicados, tudo está me parecendo tão doentiamente sem cor hoje que ando apenas por poucas horas até sentir vontade de parar, e somente ficar deitada no chão encarando o céu azul.

Só me convenço a continuar por pura recusa a deixar que meu mal-estar espiritual prejudique meu desempenho.

E essa atitude foi decisiva, pois tenho uma surpresa depois de andar por mais algum tempo.

Há algo além das árvores logo à minha frente. É um espaço, onde não tem árvore alguma, mas não é como uma clareira – embora isso também fosse ser inovador – porque não há mais árvores ao redor e nem mais adiante. Especificamente, mais adiante da área sem árvores, há um enorme lago congelado, no qual não é possível ver o final.

Eu sempre soube que a arena tinha um fim, mas nunca imaginei qual seria ele. Mas, pelo visto, é isso. Tudo termina em um lago, e eu cheguei a ele.

Eu atravessei a arena integralmente.

Mas isso não é algo de que eu pudesse me gabar, nem se estivesse no humor para tal coisa, porque eu não fui a primeira a chegar aqui.

Sempre que, nos Jogos, um determinado tributo começa a esbarrar vezes demais com os Carreiristas, começo a desconfiar que tenha um dedo dos Idealizadores dos Jogos por trás disso.

Todavia, eu devo estar, afinal, enganada. Pelo menos na minha situação, eu não acho que seja por causa dos Idealizadores que quando eu estou quase saindo da camuflagem que tenho atrás das árvores, tenho de me deter, pois vejo que quem está perto do lago, olhando para ele como se fosse algo profundamente interessante, são Adlex, Aven, Kalle e Aster.

Por alguma razão, não fico tão assustada como na primeira vez em que os encontrei, quando eu estava com Pine. Mas assustada o suficiente para me esconder atrás das árvores, também como na primeira vez.

Contudo, eles não estão interessados nem mesmo em olhar para cá. Me pergunto o que será tão interessante assim em água congelada, e minha dúvida é respondida quando Adlex pergunta:

— Aster, é possível que haja peixes nesse lago?

— Por que a pergunta? Quer dizer, até parece que nós estamos passando fome.

— Mas eu quero saber.

— Bom, O.K. Mas por que você acha que eu sei?

— Porque você é do distrito da pescaria...

— E isso por acaso quer dizer que eu entendo tudo sobre o assunto? – Se Aster estava até conversando como gente normal, agora ela voltou com o tom ríspido e odioso que eu sempre a ouço usando.

— Hm, sim.

Kalle dá risada baixinho, prevendo que Aster vai ficar irritada com a resposta errada de Adlex, e gostando disso.

— Você é tão patético... – Ela revira os olhos, e se vira para a direção das árvores para não precisar olhar para ele, mas não para área onde eu estou, e sim para uma mais a minha direita.

E a reação de Aster é como se ela houvesse se virado para cá e me visto.

— Vejam! Tem alguém lá! – Exclama, apontando. Estou paralisada no lugar. Me sinto descoberta, mesmo que ela não esteja falando de mim. Quem mais pode estar aqui perto?

Os outros três Carreiristas forçam a vista para olhar para onde Aster está indicando, mas não veem nada.

— Louca. – Cantarola Kalle.

— Sinto desapontá-la, Aster. Mas, não. – Aven desdenha.

— É que agora parou de se mexer. – Ela justifica. – Venham cá, eu vou mostrar para v....

Então, algo inexplicável acontece.

Um tributo sai correndo do ponto onde Aster estava apontando, totalmente à mostra. Não em direção aos Carreiristas, porém de forma em que vá passar a poucos metros deles. O garoto está indo em direção ao lago.

É o tributo de doze anos do Distrito 5, com quem os Carreiristas implicaram no treinamento por deixar uma lança cair num movimento fácil. Aquele que estava com uma garota mais velha, de quinze anos, que eu acreditava ser prima dele.

O que ele está fazendo aqui sozinho? Pelo que eu sei, nenhum dos dois tributos do Cinco já morreu, e eu achava que a menina ia ser aliada dele até o final.

E este quadro de “nenhum dos dois já morreu” está prestes a ser alterado, de qualquer forma. Aster saca uma faca e atira em direção a ele.

O garoto desvia com agilidade, sem parar de correr. Adlex, Aven e Kalle gritam chamando a aliada de incompetente e sem mira, o que acho que é muito bem-feito.

O rosto de Aster fica da cor de um pimentão.

Os outros três vão correndo atrás do menino do Cinco, que imprudentemente pisa no lago, quase escorregando, e, firmando-se como pode, indo para mais o fundo. Os Carreiristas param na margem do lago.

— E agora? – Pergunta Aven.

— Eu vou atrás dele. – Anuncia Adlex, pisando no lago, com um esforço sobre-humano para não escorregar.

— O quê? Adlex, volta aqui! O gelo vai quebrar e vocês dois vão cair! Volta! – Aven começa a gritar, histérica.

— Cara idiota. – Murmura Kalle.

Adlex escorrega, e cai no gelo. O garoto está indo bem melhor do que ele. Aven não para de gritar para que o companheiro de distrito volte.

— Deixe que eu pego ele! – Aster diz, seu rosto voltando a cor normal. Ela quer fazer isso porque não quer que continuem achando-a uma incompetente, creio eu.

Antes que possam impedi-la, ela também pisa no lago congelado, para tentar pegar o garotinho.

E como Aven já estava avisando que aconteceria, logo o gelo cede, e os três caem na água fria.

Eu fico completamente em silêncio enquanto espero algum sinal dos três ou um canhão, e Aven e Kalle também.

Adlex e o garotinho lutam para sobreviver. Eles em diversas vezes emergem, mas logo afundam de novo, parecendo cada vez mais desesperados, até que um canhão soa, seguido logo mais por outro. Já Aster volta à superfície uma vez e não torna a submergir.

Ela nada até a margem de maneira desajeitada, e sai da água tremendo violentamente de frio. Está encharcada, gelo grudado em seus cabelos e cílios, e com os lábios azuis.

Kalle tira o casaco, e o joga solidariamente sobre os ombros da aliada, que olha para ele com desconfiança.

— Você está precisando mais do que eu. – Ele dá de ombros.

— Ela está precisando é de algo quente para beber. Vamos voltar para o nosso acampamento. – Fala Aven, parecendo estar tentando disfarçar alguma frustração.

Os outros, fingindo não perceber, concordam, e os três vão embora, entrando no meio das árvores, num ponto que não é o que eu estou e nem de onde o menino tinha saído.

Fico parada por mais um tempo, me recuperando do que eu vi. Foi tão estranho. Depois, penso que também não faz sentido eu ficar por aqui, e vou me afastar.

Dou um passo para trás, antes de me virar para ir embora. E nisso bato de costas em alguma coisa, que não pode ser uma árvore, pois cobre a minha boca com a mão.

Tento gritar, por instinto, mas meu grito é abafado. Ouço uma voz masculina dizer:

— Quieta.

E um facão afiado é encostado em minha garganta.


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Notas finais do capítulo

Bem, se gostaram, comentem, e até o próximo!



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