King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 9
Dias de cárcere


Notas iniciais do capítulo

Nos perdoem pelo atraso! Como avisamos antes, a faculdade começou a puxar nosso pé quanto a trabalhos e tantas coisas mais. Mas fiquem tranquilos, a história não entrou em hiatus ou algo parecido; pelo contrário, estamos sempre arrumando uma frase aqui e outra ali para o capítulo sair perfeito!
Para compensar o atraso, trouxemos bastante material de leitura para vocês! Divirtam-se!
~LichiaW



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Vapores subiam do chão em uma dança sinuosa, e enchiam o santuário com o cheiro inebriante daqueles gases. As finas e elegantes colunatas que circuncidavam o local em forma circular se uniam no topo por grandiosos entablamentos, que eram adornados com estátuas representando batalhas épicas entre deuses e demônios. Nos capitéis que os sustentavam, anjos e querubins cuidadosamente esculpidos em mármore rosa zelavam pelos rituais realizados no terreno sagrado.

Um trono feito das madeiras maciças de teixo — árvore da imortalidade e das visões proféticas — e de carvalho — árvore da sabedoria — se dispunha no centro do salão cerimonial, em harmonia com as altas colunas. Em sua base lia-se as inscrições “conhece-te a ti mesmo” gravadas em runas; outras frases e desenhos menores enfeitavam o assento, que tinha os pés entalhados em formato de patas de dragão. Postado sobre esse majestoso trono, se destacava a figura de uma elfa esguia e alheia ao mundo ao seu redor. Seus olhos de prata líquida viam as energias que regem o mundo e os espíritos que as governam; apenas o transcendental.

O eco de passos quebrou o silêncio mórbido do salão, trazendo consigo uma mulher de vestes finas e saltos altos, de olhos rebeliosos e apreensivos. Sim, ela admitia que fora ao templo para se orientar sobre os acontecimentos, mesmo detestando de todo o coração aquele lugar de pessoas corretas. Porém, com igual certeza, afirmava que nunca fora convidada a entrar com tanta reverência e curiosidade por parte dos sacerdotes. “Ela clamou por ti”, diziam.

“E contou que viria”.

Essas palavras não aliviavam nem um pouco sua ansiedade enquanto caminhava para o ser de mística aparência à sua frente. Ela fora instruída a entrar sem o acompanhamento do clérigo responsável pela interpretação dos presságios; e sabia que apenas em momentos específicos e precedentes de acontecimentos extraordinários coisas assim aconteciam.

A alguns metros do Oráculo, uma luz esverdeada se desprendeu em névoa do chão, rodopiando em direção à elfa e a cobrindo de uma aura profética. De braços abertos, ela voltou as orbes prateadas para a convidada e seus lábios se abriram em um sussurro fantasmagórico:

“Venha.”

–-



— Minha senhora... — a figura alta começou, tomando cuidado na escolha de palavras. Era aparente seu nervosismo, e ela apenas acentuava-o ao tentar disfarçá-lo torcendo as mãos

— Eu sei que não tenho o direito de questioná-la, mas... o que está havendo?

— Querida, sabe que não precisa falar dessa maneira polida comigo... — a outra mulher rapidamente respondeu, enquanto conferia pela última vez pergaminhos e outros objetos.

— Sim, senhora... Mas eu insisto: por mais excêntrica que seja, ainda assim não é do seu feitio preparar-se para viajar no meio da noite. Além do mais, ainda não me explicou exatamente por que me quer aqui. O que está acontecendo?

A subordinada se movia desconfortavelmente, jogando os cabelos ruivos de lá para cá. Sua mestra a fixou com olhos bondosos, porém apreensivos, e afastou uma mecha do rosto da outra, colocando-a atrás da orelha e ganhando algum tempo para responder a difícil pergunta.

— O Oráculo despertou. E eu fui consultá-la. — disse, por fim, ao largar as cartas que tinha na mão. Lia-se seriedade e também temor em seus olhos claros — Ou melhor: ela me chamou.

O rosto da ouvinte contorceu-se numa expressão de surpresa, que logo se transmutou em susto. O Dia da Profecia era há muito tempo esperado por elas, e diversas escrituras relatavam sua importância para o futuro de Ernas. Era sabido que nessa data o Oráculo dispensaria seus intérpretes e falaria em palavras mortais àqueles poucos e escolhidos que devessem ouvir.

— Não posso lhe revelar a Profecia, sabe bem disso.

— Sim, Mestra.

— Porém... — por um instante, uma fagulha de hesitação perpassou por sua atitude, fazendo-a parar por segundos tudo o que fazia. — …Acredito que há algo que eu deva lhe contar. Ainda esta noite estarei partindo, e deixando-a temporariamente como o pilar das nossas garotas. Eu já avisei às nossas irmãs das castas mais altas que viajarei e que coloqueia-a no meu lugar. Elas acham que resolverei problemas em outra de nossas moradas.

No entanto, não é a verdade. Precisa saber que eu irei até os Portais da Aurora rever uma grande amiga para alertá-la do Despertar e pedir conselhos sobre os eventos futuros. E eu preciso confiar em você: há algo importante que possa vir a acontecer na minha ausência, e creio que parte do que a Oráculo falou era exatamente sobre isso. “Um enviado de Juriore será atacado por um filho de Perriet; O Corvo Albino há de surgir vacilante, prestes a atravessar os portões de Hades para se reencontrar com a nossa mãe, Gaia. Virá ao nascer do sol de um dia claro depois de uma tempestade.”

A mulher de longos cabelos subiu o capuz da capa, ocultando o rosto formoso. Montou na sela de sua bela égua negra assim que conferiu, pela última vez, seus objetos dentro do alforje.

— Você o reconhecerá pela marca do Escolhido. Proteja-o, custe o que custar, e faça-o esperar por mim. Isso é o que posso lhe dizer por hora. — suspirou, e completou pesarosa — Esses são tempos de mudança, minha querida…

Ela esporeou a égua, que empinou e bateu as patas no ar de maneira altiva. O pelo negro do animal e a capa escura da mulher logo desapareceram no horizonte, quando ambas penetraram na escuridão noturna. Ao olhar para o céu, observou que um risco irregular cortava parte do azul celeste, e brilhava fracamente como um prisma, ora mais claro, ora fosco e espelhado. No peito, sentia o coração bater forte; na cabeça, um só pensamento.

“Começou”.



–-



Em um beco sujo e escuro de uma cidade a extremo leste de Canaban, um gato se enroscava preguiçosamente em cima de caixotes, onde se encontrava protegido do sol e dos transeuntes. Humanos sórdidos, que lhe atrapalhavam o sono! À sombra das construções e invisível aos homens, enrolado em um trapo velho de roupa, ali era o lugar perfeito para uma soneca imperturbável…

Algo pesado colidiu violentamente com algumas das caixas empilhadas, causando um enorme barulho e espantando o felino, que soltou um miado de revolta. Ele pulou arrepiado e correu para longe, misturando-se à multidão de homens apressados que andavam pela grande rua adjacente, enquanto alguma coisa se erguia cambaleante das madeiras partidas: pelo visto, um homem jovem. A primeira característica a se identificar era uma cabeleira prateada e lisa, que ondulou suavemente para trás quando este levantou o rosto. Era bonito e tinha os olhos azuis da cor das estrelas mais poderosas — olhos estes que estavam contraídos e lacrimenjantes devido à dor lacerante que o rapaz sentia.

Sangue escorria de sua testa para a curva do nariz, boca e queixo — ele ofegava como se sua capacidade de reter o ar se esvaísse a cada segundo. Um dos globos oculares recebera uma pancada violenta e inchara-se, diminuindo consideravelmente a visão. A outra orbe azulada estava encoberta com o sangue que caía da cabeça, fazendo com que enxergar fosse um esforço em vão. Pressionou fortemente o ombro esquerdo — uma fonte rica em sangue ensopando tudo ao seu redor — e se apoiou com o corpo na parede. Dando passo após passo débilmente em direção ao lado contrário da avenida, penetrou mais profundamente nas sombras dos edifícios altos daquela cidade guerreira.

“Tsc, tsc. Que vergonha...” Ele ainda podia ouvir o riso de escárnio, baixo e divertido, ecoando em sua mente. “...Você fede a medo.”

Cretino... Como aquele bastardo pudera fazer aquilo com ele?!

Ele estivera nos últimos dias recolhendo informações e executando queima de arquivos, trabalhos rotineiros, para um dos seus vários clientes. Seus serviços, naturalmente, eram executados de modo exímio e para tal, pediam uma justa quantia de moedas de ouro. Compilara, com certa dificuldade, material relevante e esclarecedor para seu empregador, e estava prestes a concluir sua missão — que também consistia em caçar e se livrar de um verme qualquer que lhe fora indicado — quando de repente viu-se interceptado por seu antigo e conhecido rival. O resultado do inesperado encontro ali se via: fora baleado no braço e havia um projétil alojado no ombro. Com sorte e destreza, escapara do embate. Desgraçado maldito, filho de uma puta!

Queria que aquele imbecil queimasse nas chamas mais vorazes de Hades!

O homem de cabelos platinados apalpou por dentro da blusa para averiguar se a bolsa de couro que carregava consigo e continha as preciosas informações permanecia bem escondida. Soltou um suspiro de satisfação ao saber que sim, ao menos os papéis que havia roubado ainda estavam salvos.

“E é assim que se escolhe o caminho para o mundo dos mortos, Lass.”

Usara seus dons de gatuno para passar despercebido e se infiltrar entre os homens encapuzados de uma organização nova relativamente perigosa que se reunia à noite em tavernas pela cidade. Seu líder empunhava uma espada negra, de lâmina curva e espinhosa, e fazia um discurso inflamado sobre mudança e revolução para seus aliados, que bramiam excitados diante da possibilidade de revolta... Revolta contra o quê, mesmo? Ele não lembrava-se ao certo. Mal havia saído daquele bar sujo para dar cabo da vida do homem que era sua presa, quando ouviu — e sentiu — os disparos.

Mas, se por um lado escapara da morte iminente na taverna, por outro, desfalecia naquele beco imundo. Tinha completado somente metade da missão que lhe fora destinada, e não conseguia mesmo por-se de pé. Caminhando a esmo, em seu íntimo rogava aos deuses — se eles ainda existissem — que o salvassem, ao menos daquela vez. Sua pele sentia o áspero do reboco mal feito da parede, e o corpo parecia-lhe mais pesado a cada respiração. O chão lhe faltou, pisara em nuvens; logo foi de encontro a ele, peito e cabeça sentindo o impacto no chão molhado e imundo. Os ouvidos zumbiam, e em sua cabeça escutava uma música maldita que há muito tempo tentava esquecer. E havia risadas, também, junto com os rugidos demoníacos de leões.

O fôlego o deixou, assim como o controle de si mesmo, e conforme sua visão escurecia e os músculos relaxavam, deixando-o entorpecido, uma última visão penetrou sua mente: alguém vinha em sua direção. Uma silhueta obscura e serpenteante. E podia jurar que ela usava roupas circenses.



–-



“Eu... estou morto?”

Viu-se em um ambiente completamente escuro e vazio, e, no entanto, podia enxergar com clareza a si próprio. Olhou as mãos caleijadas e cheias de arranhões, tentando colocar as ideias no lugar. Sentia-se incrivelmente leve, tal como uma pena que flutua no ar e que baila ao sabor do vento. Era como se, de repente, tudo houvesse sumido, e só restasse ele no mundo.

“Lass...”

Assustou-se e virou bruscamente em direção ao som. A alguns metros atrás dele, flutuava suspensa no meio do nada uma cortina peculiar, cujas listras verticais do tecido eram nas cores laranja e púrpura. Soube imediatamente que se tratava de uma divisória circense, e aquilo lhe repuxou o estômago e fê-lo cerrar os punhos inconscientemente. As lembranças malditas que aquilo evocava ainda fustigavam-no.

Depois de um longo tempo olhando o aquilo — o que lhe pareceu ser séculos, mas poderia ter sido só alguns minutos —, ele resolveu mover-se para lá, temeroso. Mesmo que algo ruim fosse acontecer — o que era bem provável, aliás — era melhor averiguar de uma vez a ficar flutuando para sempre na escuridão.

Tocou o tecido cautelosamente, como se aquilo fosse proibido; e então o jogou violentamente para o lado, fechando os olhos para entrar no show da noite. Ainda ressoava em sua cabeça as palavras malditas que lhe atormentaram durante intermináveis anos:

“Respeitável público, vocês estão preparados para o maior espetáculo do mundo?!”

O maior, sim... Bestas e feras acuadas, pobres homens amaldiçoados; malabaristas que manipulavam instrumentos completamente em chamas, suas peles derretendo diante do público e estalando sob o calor escaldante. E ele? O número principal: o mestiço amaldiçoado. Filho de Ernas e Hades, a criatura imunda.

“Lass! Precisa tomar mais cuidado.”

Uma voz feminina, de ar altivo e toque sedutor, ecoou da escuridão. Ele abriu os olhos, assustado, e encarou uma tenda de tons escuros escarlate e púrpura, e uma grandiosa arquibancada vazia montada sobre ferros. Conhecia aquele lugar. Sim, cada centímetro do picadeiro estivera em sua infância e em boa parte de sua vida. Uma figura sensual tremulava no centro do espetáculo. A domadora de feras lhe encarava com seus olhos penetrantes de amaldiçoada que era. No entanto, sua feição, outrora arrogante e sorridente, agora trazia uma nota acentuada de preocupação e temor.

“O... o quê? Ortina?! Você não--”

“Fique quieto, pirralhinho.”

Havia uma certa irritação — e também um toque de afeto — na voz decidida. Um estalar de chicote se fez ouvir.

“Não temos muito tempo. Finalmente você c..... manter uma con... … ...”

Ele tinha inúmeras perguntas a serem feitas — começando com o motivo dela estar ali, onde quer que ambos estivessem — e tantas coisas queria relatar, porém, tudo isso teria que ficar para depois. A voz dela tornou-se baixa e abafada, fazendo com que fosse impossível discernir algumas palavras. Sua imagem tremia e bruxeleava junto ao circo como numa projeção malfeita; então voltava a ser um cenário perfeito, somente para o processo se repetir, pior e pior, e cessar completamente.

O mestiço mergulhou na mais completa escuridão, e teve medo. Chamava por sua companheira e corria cego na tentativa de alcançá-la. Correu até suas pernas reclamarem o esforço; então arranjou forças para se lançar mais ainda em sua busca, quando a exaustão realmente o pegou. Arfava como se sufocasse, e tinha certa cãibra nos músculos inferiores abaixo dos joelhos, mas não desistiria de procurá-la. Pelo que sabia, devia estar morto, de qualquer forma...!

“Lass! Lass, você está aí?!”

Ela voltou fracamente, e parecia fazer um esforço imenso para se comunicar. Ele a teria segurado as mãos se ela não tivesse feito sinal para que não se movesse.

“Ortina! O que foi?!”

“Tem algo acont.... ...droga! Tem algo de errado a.... Lass!....L...!!”

“Ortina?! Ortina!!”

Ele gritou por ela diversas vezes, e não parou enquanto teve fôlego. Mas ele podia sentir que ela se fora totalmente, e que estava preso e sozinho no meio do nada. No entanto, não teve muito mais tempo para se preocupar com isso; algo começou a puxá-lo para cima, e, como em um sonho, não podia mais se mover. Sentiu uma sensação de queimação no ventre, e, subitamente, mais nada.



–-



Apesar dos abajures iluminando o cômodo com suas luzes avermelhadas, o lugar era obscuro; as sombras lançadas nas paredes balançavam de maneira fantasmagórica. O aroma estonteante no ar lembrava algum perfume feminino barato, e as janelas estavam fechadas por cortinas pesadas cor de carmim, o que aumentava ainda mais o calor e o ambiente etéreo. Lass acordou devagar, e a primeira impressão que teve foi de estar em uma tenda de adivinhos e ciganos, que inebriam os sentidos dos homens e os fazem acreditar, como crianças, no que eles querem. Piscou algumas vezes e começou a recuperar os sentidos vagarosamente, percebendo que suava fortemente e os lençóis grudavam no corpo... devido ao sangue.

Instantaneamente, a consciência de tudo o que lhe acontecera atingiu-lhe tal como um raio; e, com a mesma velocidade de um, ele rapidamente tratou de impulsionar para a frente, sentando na cama onde tinham deitado-o — o que fê-lo gemer de dor. Sem refletir, levou a mão ao ombro, percebendo que estava enfaixado com esmero, apesar da ferida ter aberto e começar a molhar tudo com o líquido vermelho mais uma vez.

“Onde... eu estou?”

Procurou instintivamente por suas armas. Entretanto, com horror, constatou não só que estava sem seus equipamentos e sua bolsa, como também estava sem suas roupas.

Escutou alguns murmúrios e sussurros, que os tiraram de seus pensamentos. Ele não estava sozinho.

— Quem está aí? — Semicerrou os olhos para poder ver melhor. Não encontrara nada para defender-se, nem mesmo sua pequena adaga. Alguém, seja lá quem tivesse sido, havia desarmado-o. Seu coração palpitou forte, com o perigo iminente.

— Descanse, fofinho, seus ferimentos ainda não sararam! — Uma voz melosa o surpreendeu, à direita, fazendo com que puxasse mais para cima o fino lençol que o cobria. A figura feminina sentou-se ao lado dele na cama, provocando-o.

— Sim, coitadinho! — Agora outra voz, mais inquieta e manhosa, veio pela esquerda; a mulher que proferira essas palavras inclinou-se de forma sedutora para o homem.

— Ainda bem que já acordou! Estávamos tão aflitas... — Uma delicada mão, cheia de anéis, tocou as mechas brancas daquele mercenário. Ele retesou imediatamente ao contato: todavia, não escapou por muito tempo. Em instantes, sentiu novamente os teimosos e impertinentes dedos finos que acariciavam-no.

Lass não conseguia ver os detalhes, porém distinguiu que todas ali eram silhuetas femininas. Concluiu que estava, de fato, num bordel; reconheceria o ambiente mesmo que nada enxergasse. Como raios viera parar ali?

— O rapaz foi encontrado no beco aqui perto. — Uma das moças comentou, rindo baixinho, ao posicionar o dedo sobre os lábios.

— Cuidado por onde anda, jovenzinho! Ainda mais com esse rosto tão branquinho e esse... porte tão bonito... — uma outra provocou, ao passar as mãos nos próprios cabelos loiros voluptosos e cheio de enfeites.

— Juliette o encontrou, por sorte. Achou que estava bêbado ou coisa parecida, mas então viu que estava ferido e o trouxe para cá! — Disse outra donzela num tom de alívio, enquanto abanava-se vigorosamente com um leque nada discreto, bordado com fios de prata em tecidos refinados.

— ...Me trouxe... sozinha? — Lass arqueou uma das sobrancelhas.

— Sim, não subestime a força feminina. — A dona da voz aproximou-se de braços fortemente cruzados, revelando uma silhueta incrivelmente alta e forte, e em comparação à todas as outras, e também mais rústica. — Além do quê, seria um desperdício deixar alguém com esse rostinho caído para morrer, não é? — soltou uma risadinha.

— Obrigado por me salvar, mas não poderei ficar para a festa, madames. — O Retalhador se pôs rapidamente de pé , mesmo ante os protestos de seu corpo. Porém, tão logo levantou, foi empurrado novamente a se deitar — Que diabos--?!

— Tudo bem, branquinho. Poderá ir embora, só que antes terá que falar com nossa Superiora. — a dita Juliette falou, puxando os lábios grossos e balançando os cabelos vermelhos.

— ...Superiora?

— Sim, a Mestra! Ela vai querer vê-lo! — uma das meninas gritou, chamando a atenção do homem pela voz jovem e ainda cheia de inocência.

Explodiram diversas exclamações de êxtase, vindas de todas as direções. “Eu nunca vi alguém com cabelos tão claros assim...” ou então “Será que ele poderia ser um daqueles bravos guerreiros que a Mestra fala?”, sendo cortado por um “Sim! Talvez ele seja!”, “Então será que a Mestra o conhece?”,“Sim! A Mestra conhece todo mundo!”.

A cabeça do ninja doia e pulsava ainda mais com as vozes agudas e esganiçadas especulando sobre quem ele era ou de onde havia vindo. Seria ele amigo de uma dona de bordel? Corou ao pensar em algumas possibilidades. "Não, não seria Madeleine, ela só piscou pra mim e... Georgina? Não, também não... Verônica...! Hm, não, quem sabe Mary... Mary... Oh céus”. Balançou a cabeça negativamente, tentando tirar toda aquela baboseira da mente.

— Vamos deixá-lo sozinho agora, para que descanse. Isso vale para todas! Vamos, suas assanhadas, circulando! — a ruiva fuzilou com o olhar as figuras presentes e tratou de as enxotar dali. Algumas murcharam a expressão, outras apenas bufaram de raiva.

— Durma bem, branquinho! — Uma garota aproximou-se do rapaz e o beijou na bochecha, saindo logo em seguida, assim como as outras.

Então, tão de repente quanto surgiram, todas as garotas se foram, deixando-o sozinho. Deitou-se e tentou relaxar um pouco a musculatura para diminuir a dor — aquela cama era a mais macia que vira em muitos dias — mas definitivamente não podia mais dormir. O ambiente estranho obviamente o incomodava, e seu treinamento deixava-o sempre alerta a qualquer barulho que fosse — que não eram poucos, visto o lugar que se encontrava. Sentia-se terrivelmente cansado, e seu coração palpitava fortemente.

Entretanto, ele também era humano; ou quase isso. As pálpebras invariavelmente pesaram, e, ao fechá-las, a imagem de orbes cor de sangue lhe vieram à mente. “Lupus, seu maldito...”, pensou. “Por que atirou em mim?”. Surgiram então cenas difusas que rodopiavam em sua mente, e nenhuma fazia muito sentido.

“Insolente! Como ousa ficar na minha frente?” Lupus lhe apontava uma pistola, os olhos vermelhos cheios de raiva e ultraje. Com a outra, atirou em um homem que veio tentar lhe acertar com uma pá. “Eu estou lhe avisando: fique fora disso! Este verme é meu!”

“Lass! Precisa tomar mais cuidado.” Ortina o repreendia, sentada no picadeiro com sua pantera, enquanto acariciava seu pêlo. Ele tinha um coelho maltrapilho em mãos e seu rosto voltara a ter aquelas marcas estranhas. Seu joelho sangrava.

Uma coluna do lugar ruía enquanto Lupus tentava acertar o seu alvo. O retalhador procurava encurralá-lo em outro ponto, mas fora atordoado por uma pedra que se desprendera, e por um segundo quase fora atingido por uma espada, mas algo impediu quem quer que fosse de…

Estava deitado em um chão frio, e a visão embaçada. Pela primeira vez em muito tempo, retomara o controle de sí mesmo, e dessa vez para sempre; Cazeaje se fora. Como era bom sentir seus braços e pernas, e pensar com a própria cabeça... Mas tinha mais alguém ali. Eram... garotas? Havia também um elfo, um lutador e um guerreiro misterioso…

Abriu lentamente os olhos e se colocou sentado, tomando um pouco mais de cuidado ao se mover, a fim de não reabrir os ferimentos. Não tinha certeza se aquelas cenas diversas que acabara de ver tinham sido um sonho pertubado ou uma alucinação. Estava confuso... Não conseguia colocar os pensamentos em ordem e suava frio. Para começar: o incidente com o irmão. O que aquele bastardo tinha na cabeça para atacá-lo daquele jeito?! E por quê? E depois: Ortina. Aquilo definitivamente não fora um sonho.

O mestiço precisava voltar para a sua guilda, para os Assassinos da Cruz de Prata. Aquele caçador de recompensas cretino poderia ainda estar em seu encalço, e não era um prostíbulo meia-boca que poderia defendê-lo da fúria desmedida e irracional do Wild.

Onde estariam suas roupas? E aquele maldito pacote roubado?

Levantou-se, largando com certo temor o lençol, e foi em passos lentos averiguar o recinto. A escuridão não ajudava em sua busca; abriu algumas gavetas e um pequeno armário, onde achou apenas uma calça de algodão um tanto larga para seu tamanho. Bem, teria de servir.

Voltou para a cama e vestiu-a com certa dificuldade e reclamações dos seus ossos. Deu um jeito de amarrar as calças e ergueu-se novamente, preocupado com uma coisa maior: como sairia dali. Bem, era um bordel, então supunha que não teria que lutar com ninguém, mas mesmo assim não podia ser visto. Vasculhou o local em busca de qualquer coisa que lhe servisse de arma; contentou-se em pegar uma espécie de tesoura.

Cogitou pular a janela, mas isso seria catastrófico no estado em que estava. Pois bem... não custava nada dar uma olhadinha no corredor, não é? Foi se apoiando nos móveis até a porta e girou a maçaneta polida, abrindo o caminho com o click abafado. Colocou a cabeça para fora. É, parecia que estava tudo--

CLANG!

Lass ouviu um barulho metálico e gosto de sangue em sua boca; no segundo seguinte se dirigia outra vez de encontro ao chão, apagando logo em seguida.



–-



“Dessa vez, com certeza eu estou morto.”

“Ainda não, Lass.”

Novamente estava naquele pesadelo; naquela loucura. Não sabia ao certo. Parecia um sonho, mas era muito mais real. Sentia como se flutuasse em uma bolsa quente; algo parecido, talvez, com a sensação de um bebê no útero da mãe. Estava no escuro e no meio do mais absoluto nada, porém, apesar de tudo, havia paz em seu espírito como há muito tempo não tinha.

“Ortina...? O que quer dizer com ‘ainda’? E onde estamos?”

Na sua frente, a domadora de feras estava sentada sobre um leão, brincando com as orelhas da fera. Sua imagem tornava-se instável por alguns instantes, mas estava muito melhor do que da outra vez. Ela levantou os olhos preocupados.

“Esses são tempos de mudança, Lass”

“Do que está falando?”

“Não há tempo para explicar-lhe tudo. Há anos eu tento fazer contato com você, seu albino imundo. Ou achou mesmo que todas suas noites mal dormidas de pesadelos infernais com o meu amado Circo eram só reflexo de sua mente doentia?”

“Poderia ter escolhido memórias mais felizes para tentar se contactar comigo, Ortina. Aliás, onde estamos?”

“Em Hades, meu querido. Ou melhor: eu estou. Você só está aqui espiritualmente.”

“Mas... como?!”

Ela levantou-se do animal, que como um gatinho ronronava. Caminhou elegantemente em direção ao amigo, como se andasse em uma corda bamba com a mesma graciosidade de um felino. Ao chegar perto, sua imagem iniciou-se a tremer e dar sinais de instabilidade.

“Eu, Ziddler e toda a companhia acabamos vindo para cá quando seu querido irmãozinho nos fez o favor de nos condenar à morte para sempre, depois do nosso último encontro. Se lembra, querido? Naquela ocasião eu disse que não queria lutar contra você, só que você não me ouviu... E Wild nos matou. Mas não é como se você e suas chamas azuis não tivessem tentado fazer isso antes, não é? Quando você escapou do Circo. Quando fugiu de mim.”

“Não há tempo para isso! Fale logo! O que está tentando me falar há tanto tempo?!”

“Sim, sim... Isso tem a ver com seu estado atual, docinho. Consegui fazer esse contato às pressas porque você ainda está fisicamente fragilizado e beira os Portões da Morte. Agora, ouça: você é um mestiço de Hades, e, apesar de ainda não saber disso, tem o poder de controlar esses contatos com outros mundos, assim como suas chamas azuis. Preciso lhe dizer que as coisas estão muito ruins aqui embaixo.

Você não entendeu porque seu irmão te atacou... … ...te digo, Lass! Isso foi um aviso... … ... Ele te passou um recado, assim como eu estou tentando... Aconteceu para que a Palavra da Profecia se cumprisse... ...bei descobrindo alguma coisas, aqui embaixo: você é o... … ...Escolhido de... Juriore, entende? Será uma peça fundamental daqui pra frente... … volte para a Cruz de Pr… os portões estão se abrindo, os mundos estão instá... ...você precisa reencontrar aqueles seus amigos.”

“Eu não estou entendendo nada, Ortina!! Não consigo te ouvir!”

“Tudo bem, eu tentarei falar com você depois, então lhe explicarei tudo. Tome cuidado, você não pode morrer... … ...não tente mais impedir o contato comigo! … ...Isso é importante, seu mestiço!”

Então, mais uma vez, aquela sensação de ser puxado veio por trás de sua barriga. Sabia que no instante seguinte não estaria mais lá.



–-



Acordou com alguém lhe dando tapinhas fracos no rosto, e seus olhos de estrela azul focaram Juliette, aquela gigante musculosa. Ela girou os olhos e suspirou, entediada, quando percebeu a movimentação. A primeira coisa que ele fez foi tentar levantar num ímpeto, quando percebeu que estava imobilizado: suas mãos e pés tinham sido presos nas pontas da cama por lençois improvisados de cordas.

— Mas que droga é essa...?!

— Eu deveria saber que não ficaria quietinho no seu canto. — ela balançou a cabeça em reprovação e seus cabelos curtos e ruivos foram de um lado para outro. — Não queria ter lhe batido, mas foi necessário. Você estava armado, o que mais eu poderia fazer? Lutar contra um moribundo?

— Bater em sua nuca e fazê-lo desmaiar é realmente a melhor opção, claro! E foi necessário?! Necessário pra quê?! — Lass vociferou, indignado. Já tinha passado por situações como aquela antes, e sabia o que fazer. Era quase como o trabalho de um mágico: ele devia distrair a atenção da pessoa à frente para conseguir realizar com destreza seu glorioso truque, que terminaria com ele liberto de suas amarras; e, talvez, se vingando do seu sequestrador.

— Para você esperar pela Mestra, claro. Além do mais, bandagens e medicamentos não se pagam sozinhos, sabia? Você ficou alguns dias sob nossos cuidados, precisa parar quieto. Isso é realmente importante, branquinho!

— Dá pra você parar de me chamar assim?!

— Oh, então você tem um nome? Eu adoraria sabê-lo, por sinal.

— Se eu lhe contasse — e fez uma careta involuntária de escárnio — teria que te matar. De qualquer forma, o que diabos é que a sua mestra quer comigo?!

— Isso eu não posso lhe dizer. — Ela tinha um sorriso esperto nos lábios e um dedo erguido como uma enfermeira que pede silêncio. Lass de repente quis ir mais para longe, se fosse possível. Entretanto, ele não estava nem perto de liberar seus pés ainda. — Ninguém aqui vai te fazer mal.... Foram ordens expressas.

— Se “não fazer mal” é bater no convidado, fazendo-o desmaiar, obrigado! Não quero nem ver o que é ruim pra vocês!!

— Como eu disse, não podia deixar você sair daqui. Sem ressentimentos, ok?

— Ah, claro. Imagine. — e virou os olhos, bufando.

— Você acha que eu salvaria sua vida só pra te fazer mal?

— Eu não duvido de nada nesse mundo. — Ele disse sombriamente, lembrando-se de um certo mestre de cerimônias que tinha feito de sua vida um inferno logo após resgatá-lo. Aqueles, sem dúvida, foram seus piores dias…

— É mesmo? Você vai me contar essa história, bonitinho, mas vamos deixar pra outra hora. Eu só estava passando para ver se você continuava vivo, sabe como é. Minha Mestra não iria me perdoar se algo ruim acontecesse contigo. — Ela lhe lançou uma piscadela um tanto perturbadora. — Até mais tarde!

Novamente ele se viu sozinho, mas agora sequer podia levantar para procurar uma saída. O trabalho de livrar as mãos estava demorando mais do que ele previra, e quando finalmente conseguiu, estimava que tivesse se passado mais de meia hora. Depois disso, livrar os pés foi simples. Se colocou de pé num salto — notando com orgulho que mesmo com os acontecidos dos últimos dias, ainda estava saudável o suficiente para que seus membros não reclamassem demasiadamente daquele simples ato —, e vasculhou o quarto a procura de uma coisa, qualquer que fosse, que pudesse lhe servir de arma caso precisasse. Arrombou com alguma dificuldade o cadeado de um dos dois pequenos e únicos armários que se encontravam na parede da esquerda, e se arrependeu logo em seguida: não encontrara nada realmente útil; alguns instrumentos de trabalho das “garotas” estavam ali, tais como algemas com penas coloridas, alguns produtos de higiene, plumas, roupas de couro e chicotes... Ele pegou este último, apesar de duvidar que fosse realmente protegê-lo de alguma coisa, além de deixá-lo embaraçado.

— Fofinho, você não dá sossego mesmo, em? — a moça adentrou de repente no quarto com uma bandeja de comida em mãos, que largou displicentemente em cima da cômoda ao vê-lo de pé.

— Saia da frente se não quer se machucar! — e estalou o chicote no ar, dando ênfase na ameaça. Julgou-se incrivelmente ridículo.

— Uh, que arisco! Mas eu quem devo lhe avisar para tomar cuidado... — ela jogou a cabeça para os lados e esticou os braços para flexionar os tendões. Apontou dois dedos para ele — Venha.

Isolet teve um mal pressentimento, mas não desviou-se do seu objetivo. Sairia dali o mais rápido possível, acabaria a missão que lhe fora incumbida e procuraria seu próprio grupo de elite dos Assassinos da Cruz de Prata para relatar o ocorrido. O tempo urgia, e ele já perdera-o demais; não iria ser impedido de cumprir com seus propósitos — mesmo que, para isso, tivesse que lutar contra os próprios benfeitores.

— Você foi avisada! — com a agilidade de um guepardo e a coragem de um tigre, avançou para a oponente com nada mais do que aquela arma ridícula e uma vontade extraordinária de escapar.

Juliette levou duas chicoteadas que ribombaram em sua pele, subindo vergões vermelhos e dolorosos nos locais do impacto. Entretanto, na terceira investida, ela surpreendeu o ninja pegando o instrumento de tortura em pleno ar, e puxou impetuosamente a corda de couro, trazendo para frente o rapaz. Ele usou do desequilíbrio momentâneo para dar dois passos e desferir-lhe um chute no abdômen — só que, logo após receber o golpe, ela imediatamente pegou-o pela perna e jogou-o com força no piso de madeira.

O mercenário tomou proveito do impulso para baixo e, ao cair, cruzou as pernas na perna da adversária, fazendo-a desabar. Ele se colocou de pé num salto e vendo o caminho livre, tentou seguir para a porta, mas esqueceu que ainda segurava o chicote — e foi puxado novamente, dessa vez se desequilibrando para trás. Ao mesmo tempo, ela agarrou seus calcanhares e impediu uma reação, levando-o novamente ao chão.

Rolaram pelo quarto derrubando a mobília, ora desferindo, ora se protegendo de socos. Apesar do tamanho e do peso de Juliette, ela se movia com uma rapidez impressionante. Protegeu-se da maioria dos ataques, e conseguiu acertar outras tantas vezes; em questão de força ela ganhava do ladino, e ele começava a ficar tonto de levar tantos golpes na cara. Não conseguia enxergar nada em meio à loucura, e as coisas só pioravam com o olho ainda inchado.

O Ninja tinha que fazer alguma coisa ou perderia aquela briga, isso era claro. Por três vezes falsou alguns golpes porque as feridas abriram e causaram dores agonizantes. Precisava acabar de uma vez com aquilo: concentrou todas as suas forças e usou suas habilidades para se desmaterializar em fumaça e reaparecer a um metro, em cima da ruiva, e prendê-la numa chave de braço sofrida, usando todas as forças do seu braço ainda bom.

— Rá! Agora... vamos ver quem manda aqui! — ele abriu um sorriso triunfante e apertou ainda mais o golpe. Porém, ao contrário do que qualquer um poderia prever, ela riu. — Mas o quê...?

— Isso é tudo que você tem, branquinho? Que decepção…

Quando ele estava pronto para rebater, começou a ser erguido do chão... e com a mesma rapidez que aparecera ali, a mulher pegou seus braços e o jogou em um arco direto para o assoalho, que se partiu e afundou alguns centímetros, com um rugido semelhante a uma demolição. Quanto ao Retalhador, o impacto pareceu moer todos os seus ossos e espremer a força o ar de dentro de seus pulmões, deixando-o completamente acabado, largado para todos os lados como uma marionete naquela cratera de lascas de madeira que se formara e começava a engolir um criado mudo.

— Você vai esperar pela Superiora, entendeu? Eu não estou lhe dando opções. — segredou ameaçadoramente em seu ouvido, enquanto torcia os braços dele para trás com tanta força que teria rompido os ligamentos se continuasse por mais alguns instantes — Espero que isso não se repita.

— Aah... AAH...! — o Mercenário cerrou os dentes se consumindo de raiva. Sentia-se humilhado. Como havia deixado que uma coisa dessas acontecesse? Perder de modo tão vergonhoso e estúpido. Se estava naquele estado, era tudo culpa do Wild. Maldição!

A mulher arrastou-o de volta para a cama puxando-o pelos cabelos, e o jogou de qualquer jeito em cima do colchão. Sacou de dentro das roupas algo que realmente iria prendê-lo; puxou os braços dele para cima e algemou-o junto ao móvel. Nesse momento, ouviu-se o barulho de passos atropelados no corredor, e as outras meninas chegaram esbaforidas na soleira da porta, fazendo uma algazarra de vozes que perguntavam se estava tudo bem e o que tinha acontecido. Uma delas viera enrolada em uma toalha de rosto, o que não cobria muita coisa, tamanho o susto.

— O quê aconteceu aqui?! — gritou uma, assustada.

— Como está o bonitinho?!

— Ju, o que aconteceu com esse chão!?

— Ai! Pelos deuses, amiga! Seu rosto! E essas marcas hor-ren-das nos seus braços! Não se preocupe, eu tenho um creme que é ótimo pra disfarçar--

— Aaah! Eu achei que a casa fosse cair com aquele barulhão!

— Fiquem quietas!! Bando de gralhas!!! Céus... — Juliette massageou as têmporas, fazendo uma careta involuntária — Eu não consigo me concentrar aqui, oras. Não aconteceu nada demais, só... um imprevisto. É, um grande imprevisto que eu taquei no chão e já resolvi, então podem ir voltando pros seus afazeres!

As meninas rapidamente foram embora, sendo empurradas pela meretriz irritadiça. Ela olhou de soslaio para a cômoda e para a tigela de comida e temperos que havia trazido para alimentar aquele menino malvado. Sorriu de forma perversa com uma ideia um tanto inusitada.

— Meninos maus merecem um bom castigo.

O estômago do albino embrulhou, e ele começou a suar frio — se é que podia discernir isso em seu estado tórpido.

— Isso é para aprender a se comportar. — e soprou um pó vermelho nos olhos do rapaz.

Ele urrou como uma fera selvagem e debateu-se até se machucar ainda mais — Sua puta maldita, que merda é essa?!

— Pó de pimenta. Você não vai morrer por causa disso, pare de escândalo.

— Eu vou matar você e sua família, está me ouvindo?! — A dor e ardor o fez parar e arfar violentamente.

Antes de sair do cômodo, ela sussurou para dois rapazes que ali trabalhavam, e assistiram assustados toda aquela cena:

— Fiquem de olhos bem abertos nele. Mas não o machuquem.

Um deles assentiu, e ela sumiu no corredor.



–-



Se comparasse o ronco de sua barriga a um troll descontrolado, diria que o barulho de seu estômago daria três das criaturas, uma brigando com a outra. Lass suspirou, olhando para o teto. Maldição... no que fora se meter? E quem era aquela misteriosa mulher de força monstruosa, que podia acabar com ele daquele jeito, com tanta facilidade?! Estava com tanta fome que isso até lhe impedia de pensar claramente. Suas entranhas se contorciam só dele imaginar um bife bem suculento e pingando a gordura, batatinhas ao molho de pato selvagem, carne de porco tostada na manteiga... “ARGH!”

Na cômoda ainda jazia o prato de comida que aquela ruiva havia lhe trazido ainda mais cedo. Daria tudo para poder esticar-se o suficiente só para pegar o pão cheiroso que impestiara o ambiente com o cheiro de recém saído do forno, e também para provar aquilo que parecia ser um prato de arroz selvagem com carne vermelha. Quanto tempo não se alimentava? Ou, melhor: por quantos dias permanecera desacordado? Sentia suas forças se esvaírem a cada segundo, conforme o apetite aumentava exorbitantemente.

Antes que sequer pudesse pensar no assunto, a porta se abriu exibindo a odiosa meretriz com algo à tiracolo. Ela veio rebolando com uma bandeja nas mãos, e o conteúdo da cumbuca desprendia um vapor de cheiro um tanto desagradável.

— Vamos, hora de comer. Você bateu em uma dama, mas não vou ficar ofendida por tão pouco.

— Dama? Onde? — sorriu sarcasticamente.

— Ora, ora, que pirralho malcriado. — Ela sacudiu os cabelos, girando os olhos. — Aqui está sua comida. Acho que muito mais apropriada do que a que eu trouxe antes, aliás. — deu uma piscadela.

— Mas que droga é essa? — o conteúdo da tigela era verde e gosmento, e boaivam algumas coisas estranhas dentro. A primeira coisa que lhe veio à mente foram olhos humanos, e a ideia logo lhe embolou o estômago.

— Umas misturinhas aí de coisas que você não iria querer saber. Porém, já que insiste: tem tripas de porco e orelhas de boi, patas e olhos de lebre. Agora, coma.

Ele a fitou com cara de “Você está de brincadeira, né?!”. Em resposta, ela lhe mandou um sorriso cínico muito amistoso. Mesmo que aquilo fosse nojento, ele logo tratou de tomar tudo avidamente. Comeu também uns pedaços de pão seco e bebeu uma água salobra e meio pútrida. Preferia viver com o estômago derretido, como certamente ficaria, do que morrer de inanição por nojo de comer uma mistura duvidosa.

— Durma bem. — e estalou um beijinho na bochecha dele.

— Dormir? Eu acabei de acordar, do que você... está... falando... — as pálpebras pesaram, e seu corpo entorpecia aos poucos. Os dedos dos pés e mãos formigavam, e logo não sentia mais as extremidades do corpo. Arfava pela falta de ar, e sentiu como se não pudesse mais respirar e a agonia de suforcar o desesperou. Escutou o som de uma risadinha divertida de escárnio.

Haviam o drogado.

Mais uma vez o albino apagou.



–-



Acordou tonto de um inquieto sono sem sonhos; dessa vez, nem Cazeaje, nem Ziddler ou Ortina vieram lhe assombrar. Fitou o teto longamente, alheio a tudo e pensando em sua vida miserável. Constatou que ainda estava fortemente amarrado, e seu corpo doia como se algum bastardo houvesse espacando-o enquanto estava desacordado. Seria ainda efeito daquele golpe que rachara o chão? Aliás, que coisa mais inumana, romper o assoalho daquele jeito…

Um sorriso involuntário veio aos seus lábios: lembrava de Elesis e as coisas fantásticas que podia fazer com os punhos nus.

Não era sentimental, mas aquela época da Grand Chase havia sido a melhor. Nunca antes se divertira tanto como com aquelas pessoas, e nem depois... Tinha amigos que estavam prontos para defendê-lo com a vida, se fosse preciso, e que se reuniam em volta da fogueira depois de uma batalha ganha a duras penas, para contar histórias engraçadas e olhar o céu estrelado, se perguntando intimamente quanto tempo mais aquilo duraria. E agora, o que ele tinha? Algemas apertadas em seus punhos, uma cama cheia de caroços e uma mobília... espere.

Onde estava a mobília? E o buraco no chão!?

— Que bom que acordou! Espero que goste do seu novo quarto. — Aquela já onipresente figura musculosa adentrou repentinamente o lugar, carregando uma caixa de madeira, e sentou-se na cama, o único móvel do ambiente. Não havia cômodas, abajures ou armários; até mesmo a janela estava trancada com um grande cadeado e correntes.

— No bordel inteiro só tem você para cuidar de mim? — bufou, injuriado.

— Oh, branquinho! Não me trate tão mal, eu gosto de você. Hora de trocar as bandagens.

As mãos grandes porém delicadas deslizaram pelo corpo do rapaz retirando as ataduras com ligeireza e a destreza de uma enfermeira dedicada.

— Quanto tempo faz que estou aqui?

— Você ficou desacordado por quase quatro dias, pequeno. Tivemos que colocar gaze molhada em sua boca para não morrer de sede. Você nos deu trabalho, sabia? É seu quinto dia e meio com a gente.

Suspirou entediado, enquanto observava o trabalho feito com esmero.

— Antes que pergunte, tivemos que te drogar para poder mudar o quarto. Ainda que estivesse amordaçado e amarrado, eu não confiaria em te transferir acordado. Você é bem forte, fofinho! — ela soltou uma risadinha.

“Você também é”, o Mercenário pensou, mas guardou o comentário para si.

Os dias seguintes passaram arrastados e monótonos. A comida progressivamente melhorou à medida que ele diminuiu a agressividade e melhorou o comportamento, e em uma semana já estava comendo carne e bebendo vinho. No entanto, continuava fortemente encarcerado, e vigiavam-no dia e noite. “Se ainda quero dar o fora”, refletiu, “tenho que, ao menos, me reestabeler”. É claro que isso era só uma desculpa moral para não fugir; afinal, recobrara suas forças rapidamente, e, se quisesse, escaparia das algemas num piscar de olhos. Mas estava ele num prostíbulo, rodeado de garotas bonitas e com uma guarda-costas devota que provara ser bem forte ao lhe dar uma surra fenomenal. O que teria demais em perder um pouco de tempo ali? Estava seguro; Lupus não o procurara. Além do mais, as meninas serviram muito bem a ele, em todos os sentidos. Com um pouco de astúcia, arrancara delas diversas informações importantes, e conseguira algumas informantes preciosas. Descobriu que alguns dos maiores lordes e condes dos arredores frequentavam o Distrito das Flores Vermelhas, como era chamada a região. Reunira muito material para os seus futuros trabalhos, caso necessário.

— Então, Juliana-- — iniciou Isolet, em uma tarde abafada e úmida. Ele e aquela ruiva começaram, de maneira estranha, uma amizade um tanto insólita. Respeitavam-se mutuamente como grandes rivais, e um laço esquisito formou-se entre eles. Ela visitava-o todos os dias para trocar os curativos e ver como as feridas cicatrizavam. Lass percebeu que elas estavam demorando a se fechar, mas não fez menção a isso.

— Tsc, ainda não aprendeu? Juliette. Ingdan Juliette, mas pode me chamar só de Jully.

— Que seja... — fitou longamente o teto, formulando o que iria dizer — Nós não conversamos sobre isso antes, mas deixe-me ver se entendi direito... Eu estou preso aqui porque a puta suprema falou para você que eu ia aparecer?

— Seu malcriado, tenha mais respeito! A Mestra, nossa Superiora, foi sábia e misericordiosa. Se está vivo hoje, é por causa dela que teve o presságio de que você viria e nos alertou.

— Sim, claro, claro... — concordou enfastiado — E ela falou que eu iria surgir num beco escuro, sujo e machucado, e que era para você me salvar só para me prender na cama e ficar esperando por ela?

— A princípio não era para acontecer desse jeito. Pelo seu estado, pensamos que você se comportaria bem e esperaria bonitinho por ela. Só que vi que não seria possível. Me desculpe, mas te amarrar foi a única saída.

— Aham, sei... E essa mestra tem nome, aliás?

— Sim, mas não é como se qualquer um fosse digno de pronunciar. — riu de forma devassa — Madame Divine Bouvier. É uma santa... tenho uma dívida de gratidão com ela. Aliás, todas nós, meninas que trabalham aqui, temos muito o que agradecer à ela. Madame Divine nos tirou da rua e da miséria quando não tinhamos mais nada; nos ensinou a palavra sagrada dos deuses e nos deu um motivo para viver. Mesmo com todas as dificuldades, nós somos felizes, agora. Ela é maravilhosa, você irá ver.

“Sim, uma santa. Santa essa que é dona de um prostíbulo.” E riu com seus botões.

— Tudo bem... Então, a Madame eu-não-sei-das-quantas saiu em uma viagem excepcional e teve uma visão fantástica do futuro. Ela pediu para que vocês cuidassem de alguém que iria cair quase morto num beco... que poderia ser só um bêbado qualquer, mas, por infelicidade do destino, era eu. Desde então eu sou mantido encarcerado por causa desse capricho do destino?

— Não, não poderia ser um “bêbado qualquer”. Eu sei que você é o Escolhido; a Profecia disse isso, meu corvinho branco.

— A... Profecia? “Escolhido” para o quê?! Corvo... o quê? — retesou-se, por um momento. Não eram palavras parecidas com essas que Ortina havia tentado lhe contar?!

— Ih, falei demais. Esse assunto é só com ela.

Fuzilou-a com o olhar. Ela balançou os ombros, como quem pede desculpas.

— ...Só por curiosidade, como tem certeza que realmente sou eu esse tal de “escolhido”?

— Porque ela disse que você teria a marca do Escolhido, e também viria em um dia claro depois de uma tempestade.

Um dia claro depois de uma tempestade. Esse era o maldito sinal divino para mostrar que alguém é ou não um “escolhido”?! Se ele estivesse com as mãos livres, teria batido na testa em desaprovação e vergonha alheia — e, talvez, também aproveitasse para esganar a senhorita Julliete Ingdan depois disso.

“Estou preso numa cama porque uma esquizofrênica que saiu numa viagem fantástica falou que o ‘Escolhido iria aparecer’... É pior do que eu pensava.” O mestiço respirou algumas vezes tentando controlar o estresse. “Não sei se isso é um bordel ou um hospício”.

— Você ao menos faz ideia de quem sou eu? Do por que eu estava mortalmente ferido, de quem fez isso, ou qualquer coisa?!

— Não sei de absolutamente nada a seu respeito. Você não abre o bico! Nem sei o seu nome ainda, branquinho. Tudo que sei é que você é bem teimoso e bastante forte, e que eu tenho que te proteger. — declarou, enquanto tirava uma pena do chapéu e fazia cócegas nos pés do albino.

— Me proteger?! E quem me protege de você?! — cerrou os dentes se controlado para não se debater na cama devido as inoportunas cócegas. A ruiva ria do desespero dele e divertiu-se torturando-o por alguns minutos. Finalmente largou o objeto.

— Agora, mudando de assunto, fiquei sabendo que você andou, ãhm... conhecendo mais a fundo... alguma das minhas meninas.

— Ah, elas não são nada mal. Tem uma loirinha especialmente ótima aqui... — regojizou-se lembrando de uma tarde maravilhosa que tinha passado na companhia da inocente e pueril garota em questão. Pedira para ela coçar-lhe o corpo, já que ele não podia fazê-lo. Ela prontamente atendeu ao pedido. “Aqui?” “Não, aí não... Mais para baixo” “Aqui?” “Não... um pouco mais para baixo...”. Ela sorrira maliciosamente ao descobrir o intento dele. Como fora uma criaturazinha adorável, tirando-lhe o estresse daquela maneira formidável! — Descobri os prazeres em ficar por baixo, sabe como é.

— Pff... elas com certeza são boas, mas nenhuma te fez homem de verdade. Ainda. — e sorriu convidativa, mostrando os brancos dentes enfileirados, adornados pelos lábios vermelhos e volumosos.

Isolet olhou fixamente para a nova amiga, e levantou uma sobrancelha.

— Nem pense.



–-



“Se minhas contas estiverem certas, acredito que seja o vigéssimo oitavo dia em cativeiro” refletiu o Ninja, enquanto fazia seus exercícios físicos matinais.

Com muita lábia e charme ele conquistara o privilégio de se movimentar durante algumas horas por dia. Ainda no início da segunda semana de cativeiro, argumentou choroso com suas salvadoras que seus músculos invariavemente atrofiariam pra sempre se ele ficasse por mais tempo acorrentado, e elas seriam as responsáveis por fazer um rapaz tão bonito e encantador nunca mais poder andar. As garotas ficaram alvoroçadas; Juliette, entretanto, não convenceu-se. Suspeitava que aquilo era só uma artimanha para ele escapar — o que era verdade, de fato. Porém, sofrendo pressão por parte das meninas, acabou cedendo, com uma condição: ele deveria usar uma grossa coleira enforcadora no pescoço, sendo segurada pela própria senhorita Ingdan. Se ele ousasse tentar fugir, ela não teria misericódia nos castigos. Contrariado, aceitou mesmo assim. Pelo bom comportamento apresentado, ganhara também o direito de tomar dois banhos por semana, em uma tina de água quente que colocavam em seu quarto. Claro que, como ele permanecia preso nesse momento, alguém tinha que lavá-lo, e era aí que as garotas entravam novamente. A loira que o ladino citara, principalmente, parecia ser uma devotada dama de companhia do Mercenário.

Formava essas ideias enquanto chutava o ar, em um golpe marcial que o Jin o ensinara certa vez. Girou os calcanhares, chutou violentamente o nada; virou-se ao cair, apoiou-se na perna esquerda, pulou e golpeou de novo o oponente invisível. E estava nessa sequência de golpes quando sentiu algo fechando contra seu pescoço.

— Acabou o tempo, bonitinho! É muito bonito vê-lo treinar, mas temos mais o que fazer!

— A Mestra! Madame Divine retornou! — uma das mulheres entrou num ímpeto no quarto, anunciando a chegada da tão ilustre meretriz.

O coração de Lass falseou, por um instante. Finalmente conheceria a mulher que fora o motivo dele passar tanto tempo preso. Juliette bateu palmas de satisfação e piscou para o Ninja.

— Muito bem, não podia ser melhor! O dia chegou, fofinho! Hora de dar um trato em você! Margareth, Susana, Eleonora! — gritou a última parte batendo palmas. Tão logo chamou, três mulheres apareceram para atender ao pedido — Vamos prepará-lo para a Mestra! Preparem a banheira e uma navalha!

— ...Navalha? — temeroso, uma gota de suor escorreu da testa.

— Sim, para fazer essa barba horrível!

— Ah, sim. Se livrar minhas mãos, eu mesm--

— Nada disso, mocinho! Esse mês inteiro tive que ficar de olho em você. Acha mesmo que eu te livraria agora?

Empurraram-no para a banheira de água quente, e quatro pares de mãos esfregaram-no avidamente. Pentearem seus cabelos platinados e fizeram com cuidado a barba já crescida, e puseram-lhe roupas finas de diversas estampas, adornadas com penas e pedras coloridas. Sentia-se ridículo sendo tratado feito uma boneca, porém aproveitou a situação para passar as mãos ágeis pelos corpos das garotas e pegar escondido alguns pequenos objetos.

Juliette colocou-lhe a coleira e algemou suas mãos para frente, e as mulheres saíram do quarto para se aprontarem, deixando para trás um rapaz e uma jovem vigiando o convidado. Cuidadosamente, para não levantar suspeitas, Isolet tirou das dobras da roupa um arame fino que servia como prendedor de cabelo. Mexeu no buraco de chave das algemas até sentir o sutil click metálico; estava livre, mas permaneceu com as algemas em punho. Esperaria pacientemente até a hora do show.

Cerca de meia hora mais tarde, as suas novas amigas surgiram pela porta alvoroçadas, e a senhorita Ingdan tratou de segurar firmemente a ponta da coleira. Levaram-no para fora, passando por alguns corredores.

Finalmente, depois de tanto tempo, o Ninja saía daquele cárcere entre quatro paredes. A procissão caminhou alegre até o que parecia ser o jardim interno daquela casa de prazeres; o sol já estava baixo no céu, lançando os últimos raios nos rostos dos presentes. Aparentemente chovera ainda aquela tarde, pois gotículas de água acumulavam-se tênuamente nas folhas das árvores frondosas e nos pequenos arbustos coloridos. Uma pequena multidão esperava-o no meio do jardim, onde havia também um lago ornamental com carpas laranjas e vermelhas que nadavam como se bailassem. Respirou profundamente, deliciando-se com o ar puro, e uma borboleta negra voou bem na sua frente. Àquela altura ele poderia facilmente escapar, era verdade. Todavia, todo aquele teatro que fizeram à respeito da “Mestra” o incitaram de alguma forma. Estava curioso para descobrir a identidade dessa figura quase sobrenatural que tanto havia ouvido falar.

E lá estava ela. Postada majestosamente sobre uma espécie de sofá feito de almofadas de camurça vermelha fina e plumas de ganso, ela parecia ser ainda mais mística do que os relatos. Estava contra a luz do entardecer, o que lhe dava um toque divino; e, por um momento que fosse, ele realmente acreditou que ela pudesse ser uma santa.

Ela estendeu os braços, espreguiçando-se de uma forma deliciosa. Usava um corpete que marcava as curvas de sua fina cintura, sustentando e projetando seus seios. As roupas de linho fino e branco caíam-lhe no corpo com graça e suavidade; nem mostravam demais, nem exigiam que se fizesse muito esforço para descobrir as formas do corpo da dama. Os cabelos escorridos emolduravam um rosto jovem, que era coberto por um véu que deixava somente seus olhos azuis à mostra. Aos seus pés, um imponente tigre preso numa coleira cravejada de diamantes testemunhava o encontro que mudaria o mundo. A Mestra era a extravagância em pessoa.

— Ora, ora... Quem diria que os deuses fossem conspirar dessa forma, e que o Corvo Branco e vacilante que traria as correntes de Samsara seria você, Lass Isolet? — ela falou deliciada com a surpresa, enrolando a língua em um sotaque estrangeiro. — E pode parar de fingir, meu querido. Eu sei que você já livrou-se dessas amarras, e, se quisesse, teria fugido há muito tempo. Mas parece que a curiosidade te fez esperar, não é mesmo?

Lass sentiu como se recebesse um soco no estômago. Não havia revelado à ninguém seu nome verdadeiro nos quase trinta malditos dias de cárcere. Mas aquela completa estranha, de algum modo, o sabia. Como?! E como sabia também de suas habilidades particulares em fugas?

Ele largou as algemas e as correntes no chão, displicentemente, ao mesmo tempo que deixava cair da manga de sua blusa para a mão direita uma vareta fina de metal que poderia lhe servir de arma, caso necessário. As meninas — inclusive Juliette — assistiram atônitas à isso, enquanto a Mestra ria deliciosamente das expressões das subordinadas.

— Quem é você, o que quer comigo e como sabe meu nome?

— Ora, Lass! Não reconhece mais seus amigos? Assim você me magoa! Me chamam hoje em dia de Madame Divine Bouvier, mas você me conhece por outro nome... — e com suas pequenas mãos, retirou o véu esverdeado que cobria sua face. Sorriu agradavelmente contemplando a expressão embasbacada do albino.

Depois de segundos de silêncio, o mestiço explodiu em risadas, como nunca havia feito… a vida inteira. E riu tanto que foi necessário sentar-se no chão e golpeá-lo com os punhos, tão descontrolado foi o acesso cômico; mesmo lágrimas correram em seu rosto por não conseguir parar e respirar. Todas, exceto a Mestra, observavam perdidas a cena excêtrica — se alguém perguntasse à elas algumas horas antes, nem suspeitariam que ele tivesse senso de humor ou sentisse graça nas coisas, tão sério e decididamente sisudo ele era.

— Céus, pelos deuses! Valeu realmente a pena te esperar por tanto tempo! Em todos os sentidos... — disse ao enxugar os olhos na manga da blusa.

— Fico feliz em ouvir isso. Temos muito o que conversar. — e lançou-lhe um olhar atrevido.

— Sim, temos. É realmente um grande prazer revê-la, minha velha amiga Madame Divine Bouvier. Ou, seria melhor dizer... Holy Serenity?


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Notas finais do capítulo

Então? Muito surpresos? Hehe, a partir de agora tudo tende a mudar. Mas não pense que esquecemos do primeiro núcleo, estamos guardando o melhor. ♥
E comentem, por favor! Uma palavra sequer já nos deixaria feliz o suficiente para continuar, contamos com vocês.
~LichiaW



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