King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 8
Em Chamas


Notas iniciais do capítulo

Aaah, amigo leitor! Há algum tempo não escrevo as notas iniciais e finais. Como vai? Agradecemos por você continuar nos acompanhando!
Esse capítulo é um presente para vocês que nos leem, e com certeza uma surpresa para todos nós. A escrita dele foi tão envolvente, tão contagiante, que ele criou vida e seguiu rumos próprios que nem mesmo nós pudemos controlar; é o melhor capítulo escrito até agora, isso podemos adiantar.
As aulas da faculdade começaram, então nós diminuiremos bastante o rítmo de postagem, e talvez se reduza para duas atualizações por mês; no entanto, tenha a certeza de que serão histórias o mais caprichadas possíveis só para agradar vocês!
Divirtam-se... e entrem Em Chamas.
~senhoritavulpix



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O dia começava a raiar, tingindo o céu de azul cinzento e vermelho-alaranjado onde a luz encontrava as nuvens. Naquela atmosfera úmida, três heróis usando capas surradas amarravam suas trouxas a cavalos de corrida, silenciosamente. Discrição era a ordem que imperava até que saíssem das vistas do reino.

Ronan fazia uma última revisão na bolsa que levava consigo, onde ficou uma parte dos ingredientes para o ritual. Checou fragmentos de rubis e safiras, gemas e cristais de várias cores e auras. Estava tudo em ordem. Mesmo assim, sentia-se incomodado e angustiado, e uma vontade de chorar lhe consumia — ao que ele lutava contra . O que era aquele nó na garganta, afinal? Atou o tecido com um laço bem forte e voltou a pendê-lo ao cinto.

— Ronan... está tudo bem. — Arme pousou gentilmente sua mão no ombro do arcano, e lhe sorriu compreensiva. Um brilho de bondade chispeava em seu olhar — Vamos trazê-lo de volta.

Elesis já havia subido em seu belo cavalo baio, e virou o rosto para não ver a cena. Não queria compartilhar daquela baboseira antes mesmo da ação; só a deixaria apreensiva. Queria acabar logo com o problema e trazer seu amigo de volta à uma casa aliada.

— Vamos logo, seus lerdos. Estou criando teias aqui. — E trotou alguns passos, impaciente.

— Estamos indo... — O cavalheiro ajudou a arquimaga a se acomodar em sua sela e fitou o sol que despontava no horizonte, detrás das grades do campo de treinamento real. — Que a benção das deusas esteja sobre nós. — Murmurou, consigo mesmo.

Os três subiram os capuzes a fim de que ninguém causasse alarde por sua fama, e Arme conjurou um feitiço simples de vitalidade e força sobre os animais. Antes que o astro rei estivesse alto no céu, eles cortavam a fronteira de Serdin em direção à Floresta Élfica.

Os equinos galopavam rapidamente, e por um tempo tudo que se ouvia eram os cascos contra o chão e o zunido alto do vento. Ninguém tinha coragem de dizer uma palavra de apoio que fosse, por concentração ou apenas respeito. A tarefa seria árdua, bem sabiam, e traria enormes riscos. Era a vida de Ryan em jogo... e também a de todos os envolvidos.

A quietude fez com que os aventureiros mergulhassem forçosamente em um estado de meditação e auto-exame. A Alquimista tinha, com frequência, flash de memórias que acusavam-na e reprimiam-na. A lembrança de ter invocado a Umarth Templa perseguia-a tal como um lobo faria atrás de sua caça, e a fazia se arrepiar e ter calafrios. Arrependia-se amargamente te ter sido tão imprudente; como esperava usar da Magia Proibida e sair impune? O ritual, em si, era um tanto parecido com o que eles estavam prestes a fazer: a diferença consistia no quê exatamente seria convocado para fazer o Elo entre Mago e Objeto. Lembrava-se exatamente dos sortilégios malditos que havia lançado na Floresta Élfica há alguns anos, e de como eram malígnas as risadas demoníacas que ouviu no fatídico dia — e que acompanharam-na desde então. Ao se tornar uma Impura, perdera parte da capacidade de usar magia convencional e adquirira a detestável habilidade de ver, ouvir e sentir demônios e espíritos perniciosos. Sentia ânsias quando aqueles seres inferiores brincavam de tocá-la só para atormentá-la e fazê-la sofrer. Conviver com criaturas asquerosas infernais era a maior prova de paciência que um humano jamais deveria passar. Sua alma fora vendida à Nemophila, e nada mais podia fazer à respeito.

Viajaram por dois compridos e intermináveis dias naquela silenciosa e tensa procissão, evitando a todo o custo passar perto de vilarejos ou todo tipo de assentamento humano. Na manhã do terceiro dia a floresta tornou-se visível, com as copas das árvores imponentes e brilhando sob o sol. Ainda não havia escurecido quando eles fizeram uma parada a alguns metros da orla para se alimentar e descansar um pouco antes da peculiar caçada. Aproveitando a pausa estratégica, os magos começaram a repassar o que sabiam, e a gladiadora se retirou ao leito do curso de água próximo para pensar.

Sozinha, na calmaria que antecede a tempestade, ela descalçou as pesadas botas de couro e colocou os pés na água, sentando-se à beira do rio e lembrando-se de alguns eventos passados na semana, durante o treinamento com a guarda de Serdin. Instintivamente, olhou para as mãos machucadas por negligência, pelos dias e noites de pancadas e movimentos repetitivos. A Nação da Magia claramente não era preparada para comportar espadachins de elite, e ela provavelmente causara um grande dano aos equipamentos e cavaleiros sem fazer muito progresso; bem, ao menos, já era alguma coisa.

A verdade é que aquilo não era capaz de apaziguar o fogo que consumia sua alma. Elesis era diferente dos amigos, que tinham a frieza de se trancar em um escritório mágico e teorizar o tempo todo, como fizeram muito na semana que se passara. Não! Ela queria gritar de frustração e quebrar coisas! Pois estava terrivelmente impaciente; não poderia dar-se ao luxo de ter tanta paz de espírito enquanto um dos melhores amigos chacinava inocentes na floresta. Ela precisava ser forte e se impor como líder que naturalmente era, e passar por cima de tudo com determinação e punhos de ferro. Precisava, mesmo que sozinha, salvar Ryan.

Céus. Como, ou melhor, por que as coisas tinham chegado a essa situação tão crítica?

Suspirando, limpou os olhos com as mãos, e trincou os dentes franzindo a tez. Não devia fraquejar daquela maneira.

— Hm? — Algo lhe chamou a atenção no riacho tranquilo, e a fez se levantar para ver mais de perto. Entre os muito gravetos que boiavam, havia algo maior, escuro e de aparência estranha. Sem pestanejar, ela puxou o volume.



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Não muito longe dali, Erudon e Glenstid ergueram acampamento. O fogo crepitava timidamente, estalando suavemente as folhas secas e galhos finos. Sob ele, uma espécie de sopa rala fervia, aromatizando o local com o cheiro das ervas do tempero; a Alquimista podia comer pouco ou se alimentar mal, mas fazia questão que a parca comida fosse, ao menos, saborosa. A tenda, comprada no reino um pouco antes da partida do trio, nada lembrava a antiga barraca da Sieghart: em verdade, a nova aquisição era esverdeada e pequena, muito mais discreta e invisível do que a antiga lona de guerra, onde as cores fortes predominavam para dar força ao ambiente.

Do lado de fora da aquisição recém-comprada, duas figuras conhecidas inclinavam-se sobre livros, pergaminhos e anotações confusas.

— Recapitulando, é aqui a parte de Isolamento. Você conjurará as runas e... e então... está me escutando?

As intensas e profundas orbes azuis que eram os olhos daquele belo homem estavam semicerradas e acompanhavam a dança voluptosa das labaredas, mas sem prestar atenção à elas. Respirava vagarosamente, apertando as pernas com os braços.

— Ronan! — Chamou impaciente, tirando-o momentaneamente da indiferença.

— ...O que foi? Perdão, o que dizia?

— Você não ouviu uma palavra, não é?

O Defensor a fitou com suas orbes distantes e cheias de desculpas, confirmando suas suspeitas. Arme estreitou os olhos.

— Isso não é hora para divagações! Estou dizendo algo imp... ah, quem liga. Você já nem me ouve de novo.

Ele fitava os nós dos dedos, absorto em outros pensamentos. Especificamente, nos que remetiam à maga a sua frente e a sua mudança drástica de personalidade, ao menos do lado visível. O Arcano pudera notar naqueles dias de reclusão que por detrás da fala ríspida, do sarcasmo e dos ataques ácidos, ainda havia uma garota delicada e preocupada com os companheiros, como ele costumava conhecer na época da Grand Chase.

Ah, a Grand Chase... o grupo de guerreiros mais improvável, e ainda assim mais efetivo que Ernas já presenciara em sua existência. Como brigavam e como brincavam depois, contando histórias ao redor da fogueira! Lembrava-se dos apelos de Ryan e Lire para não caçarem o jantar, e sim apanhá-lo das árvores, e de como Elesis e Sieghart riam e recusavam-se terminantemente a fazer tal coisa; lembrava-se de Jin, sempre correndo atrás de Amy e realizando seus desejos excêntricos de diva; lembrava-se de Arme... e de como ele a achava especial e radiante naqueles tempos.

E ali estava ela: adulta, mulher formada, e com muitos anos de idade na aparência. Ainda assim, uma pequena parte dela continuava a ser tão doce quanto antes, embora não demonstrasse isso com a amiga guerreira. Com o amigo, porém, existia uma espécie de cumplicidade mútua. Talvez fosse resultado das árduas e maçantes horas de estudo a que se dedicaram juntos em todos aqueles anos — e sobretudo nos últimos dias — , talvez fosse a empatia que tinham um pelo outro naturalmente, depois de tudo o que viveram. Relembrou dos momentos dos dias claros e despreocupados, onde marchavam ao encontro do mal para elimina-lo de Ernas, como Holy costumava dizer (e tropeçar logo em seguida, como desastrada que era). A feiticeira violeta estava sempre rindo, seus olhos brilhantes refletindo a luz de uma bela alma que era, fazendo seu rosto resplandecer de beleza e bondade.

— Erudon, seu imbecil, sei que está cansado, mas precisa se concentrar!

— Desculpe. Você tem razão. Estou mais cansado do que achei que estaria. É uma vergonha admitir, mas estou enferrujado.

— Todos esses anos na corte te deixaram relaxado e dizem que eu sou a mimada. Que irônico.

— Isso não é verdade. — ele arqueou as sobrancelhas, adotando uma postura mais séria — Canaban é uma bagunça, sempre entrando em conflitos internos e atraindo inimigos desnecessários. Você não faz ideia do que--

— O confronto entre os Cavaleiros Vermelhos e a Guarda Real? Lamentável. Como uma “rainha” pode deixar as principais defesas de próprio reino colidirem assim? Pff... Sinceramente, ela não devia governar se não tem competência para tal. — Deu de ombros, dando por encerrada a conversa.

Ele, entretanto, não consentiu em calar-se simplesmente.

— Desculpe, mas hei de discordar. Eu mesmo cuido de alguns assuntos para Vossa Majestade e digo que a instabilidade atual não pode ser resolvida em um passe de mágica. — fitou-a friamente. — E acho de bom tom você guardar melhor essa língua. Ao pessoal de alto escalão, como nós, não é prudente falar uma coisa dessas.

— Canaban está fadada à ruina e ao fracasso, e você sabe disso. Com essa administração péssima, teria sido melhor se Annyu tivesse morrido durante as Guerras de Vermécia e dado lugar a alguém mais capaz.

O Inquisidor não conteve a surpresa ao ouvir tais palavras, e logo a expressão boquiaberta se tornou um trincar de dentes e um olhar ofendido. A imagem da doce e ingênua Violet, que ainda vivia em algum lugar daquele duro coração, se desfez em um instante. Para ele, honra e lealdade ao reino vinha acima de absolutamente todas as outras coisas. Cerrou os punhos e respirou antes de falar, e ainda assim, não conseguiu controlar completamente o tom de voz:

— A Rainha Annyu, e que viva para sempre, — disse, com a mão em forma de punho sobre o coração — está fazendo o que pode para acalmar os ânimos internos enquanto ela e seus conselheiros tentam achar um modo de acabar com os embates. Se ela castigar muito severamente os dois grupos, a coisa só tende a piorar na surdina, e o pior poderia acontecer; ninguém quer uma guerra civil. — e num só fêlego, atalhou — E o que você pode falar sobre cuidado com um reino? Não parece que você tem se preocupado muito com Serdin em sua repentina frieza e indiferença pessoal. O que aconteceu para contrair tanta amargura assim, de repente? Um amor fracassado? — cortou, friamente.

— Um... amor fracassado?!... — Ela digeriu cada palavra com uma fúria que crescia a cada sílaba. — O que você acha que eu sou?!

Ele levantou-se, batendo o pó das vestes, ao que ela fez o mesmo, para encará-lo face a face.

— Certamente não é a Arme que eu conheci anos atrás! Tenho minhas dúvidas sobre seus motivos para salvar o Ryan.

— Ah, você tem suas dúvidas? Pois bem, continue. — desafiou-o ao cruzar os braços.

— Eu já não sei se você quer salvá-lo por ser nosso amigo ou pelo desastre que causaria à nossa imagem de ex-chasers se o povo descobrisse que o monstro assassino é, na verdade, uma lenda viva do passado que um dia lutou pela vida de pessoas. Aliás, “nossa imagem” não. Só está preocupada consigo mesma e no que os outros pensarão de você. Quer salvar o Ryan para ser a heroína de novo, não é? Quer que voltem a te amar e bajular como faziam antes. Sempre quis ser o centro das atenções.

— Bravo! — ela bateu palmas vigorosamente, cheia de veneno — Essas são as palavras de um homem que não poupa fôlego para exibir todos os pomposos títulos, não é mesmo senhor Defensor e Inquisidor, ex-membro da Grand Chase, ex-líder da Guarda Real de Canaban?! Eu esqueci alguma denominação?!

— Esse não é o ponto!

— Então me diga: qual é o ponto?!

— O ponto é que você virou um maldito monstro nos últimos anos, Arme! Insuportável, arrogante, fria! Eu cheguei a pensar que a semana que tinhamos passado juntos, estudando as runas e o cerimonial, havia sido até prazerosa, como nos velhos tempos. Você até tinha sido gentil e doce comigo! Mas vejo que eu estava enganado. Às vezes eu nem reconheço em você a mulher que... — deteve-se — ...que nós tanto apreciávamos.

— ...“A mulher que nós tanto apreciávamos”? Pensei que eu tivesse significado algo mais para você, mas em verdade continua o mesmo cretino de antes... Cretino esse, aliás, que juntou-se àquela vadia ruiva, se enfiaram no seu reino de contos de fadas e abandonaram o resto da Grand Chase completamente. Seu patriotismo barato me enoja. Olha o que vocês deixaram que acontecesse com a gente!

— Ah, sim! Claro! Muito conveniente de sua parte colocar em nossas costas a culpa de tudo ter dado errado nos últimos anos! Como se você não fosse o braço esquerdo de Elesis na época da Grande Guerra! Sinceramente, esperava mais de você. Estou desapontado.

— Desapontado?! Olha para a situação, Erudon! Você e Elesis eram os líderes da Grand Chase! Onde vocês estavam quando o grupo se separou, quando cada um foi para um lado? O que vocês estavam fazendo para não ver que nós dois nos distanciávamos cada vez mais? O que... o que você fez pra evitar? — chorava copiosamente, batendo no rapaz — Vocês são os responsavéis! Por acaso sabem onde está o Lass, ou a Lire, agora? Sabem o que aconteceu com a Amy, ou o Sieghart? Não! Eu... eu aposto que não sabem. Faz três anos que não te vejo, Ronan! Três malditos anos que nem ao menos pensou em responder minhas cartas... E...e você vem perguntar pra mim o quê aconteceu? Por que eu estou assim? — lágrimas quentes percorriam como um rio o rosto diáfano da mulher, enquanto ela socava de punhos fechados o peito do homem, que não esboçava reação e assistia impassível àquela explosão de ira — Por que eu estou assim...? Eu vou te responder porque estou assim. Porque você me abandonou, Erudon! Todos vocês! Os nossos dias felizes não significaram nada para você? E depois eu sou a insensível? E as nossas promessas? — gritou, enfatizando bem a última parte.

A memória de uma tarde de verão amena, as mãos dele enroscadas nas dela, ambos felizes enquanto faziam juras um ao outro, voltou-lhe à cabeça com a mesma intensidade que teria uma pedra acertando-lhe o crânio. Como havia sido tão idiota e insensível? Mesmo que ele tivesse superado e deixado aquilo no passado, nunca parara seriamente para perguntar se ela aceitara realmente aquele fim imprevisto e conturbado. Aceitara que sim; que a moça entenderia os motivos maiores, que um dias as coisas acabam. Mas agora via que não era bem assim.

— ...Perdão. — falou baixo, envergonhado pelo peso e verdade das últimas palavras. Um tapa estalou em sua face.

— Te perdoar? Como... como espera que eu faça isso? O Ryan estava desesperado, pedindo... gritando por ajuda! Olha o que os anos de reclusão fizeram... Transformaram-no em um... demônio. Vocês dois viveram na Corte de Canaban, fazendo discursos, inaugurando obras públicas, gerenciando as brigas idiotas daquelas duas Ordens inúteis, e esqueceram dos próprios amigos! Acha... que só vocês tiveram problemas, desde que voltamos? Como se sentiria passando seis ou sete anos praticamente sozinho, sendo bajulado por pessoas falsas até ter nojo de si mesmo? Vendo o próprio reino... definhar sem poder fazer nada? Ou você acha que eu não sei como está a situação de Serdin? Eu não virei a cara para meu povo como você vem fazendo com o seu, ou acha que as notícias de que desistiu sem tentar da Guarda Real não chegaram até aqui? Você... é um covarde. Não vejo mais a altivez que tinha antes... Não vejo mais nada em você. — seu semblante fechado marcava ainda mais as rugas e deixavam mais profundas as olheiras.

— Talvez seja porque você está cega. Cega pela sua própria obsessão em salvar o Ryan. Ou melhor: salvá-lo só para salvar-se de ficar só... De novo.

— Eu já o perdi uma vez. Não quero cometer de novo o mesmo erro... com o Ryan. —

Soltou um longo suspiro, desmanchando a dura expressão.

Uma lágrima escorreu das orbes violetas dela, a qual ele limpou com o dedo indicador. Ela tentou lhe acertar outro tapa, mas ele segurou seu punho e a encarou, preocupado. Logo em seguida a puxou e a envolveu em um apertado e quente abraço, como eles não faziam há anos. “Não quero cometer o mesmo erro... com o Ryan”. Aquela oração tão sincera ecoou nos ouvidos dele.

— Não, pequena... Você não errou comigo. — sussurrou em seus ouvidos. — Longe disso. O caso é que certas jornadas são melhores trilhadas sozinhas.

— Eu não acredito nisso. — Ela disse baixo e fungando, com uma nota de tristeza abafada pelo peito dele. — Não de você.

— Eu…

Ronan não pôde concluir seu pensamento. Algo o atingiu na perna e rolou para o lado de Arme. Algo molhado e de consistência pegajosa, e um pouco molenga. A arquimaga gritou aterrorizada ao tomar conhecimento do que se tratava, aguçando a atenção do companheiro: ao lado deles jazia uma cabeça humana que mais parecia um monstro coberto de podridão. A pele era macilenta e acinzentada, mostrando as veias escuras sobre os músculos e concussões feias na testa e bochecha direita; os olhos se mantinham virados nas órbitas, cuja a aparência era amarela, doentia e repugnante. O maxilar havia se partido, e a boca estava torcida num angulo estranho, mas com certeza em uma careta de terror. Cabelos negros e sem vida se emaranhavam como teias e ocultavam parte do rosto, e o pescoço.

— Encontrei isso no rio. Se as duas moças já acabaram com a cena melosa, podemos ir caçar nosso amigo, agora.

Elesis os fitava gravemente a alguns passos de distância, em cima de uma pedra e apoiando o braço em um dos joelhos. Uma troca de olhares foi o suficiente para saber que deveriam partir imediatamente.



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A área escolhida para a cerimônia fora previamente limpa e capinada. Uma pequena clareira a poucos quilômetros do local do acampamento servira bem para o propósito; um regato pequeno sulcava o terreno, e as árvores tinham um bom espaçamento uma das outras. Havia galhos e folhas secas em abundância para fazer fogo, e algumas pedras cobriam a terra desnuda. Os quatro elementos se reuniam em harmonia ali.

O sol ainda era visível por detrás das folhagens, colorindo o ambiente com seus últimos raios. Arme acabara de alquemizar o líquido mágico que usaria para o ritual. Usando seu cajado, começou o desenho dos círculos e linhas conforme especificara durante a semana; símbolos mágicos elementais e runas. Tomava o cuidado de não esquecer de fazê-los em sentido horário, ou senão tudo daria errado.

Após quase uma hora de caprichoso esmero, o solo estava gravado com um grande circunferência, dentro da qual havia um hexágono tocando as bordas, e, dentro dele, vários outros polígonos variados e anéis decorados com dezenas de escritos em línguas antigas e sinais. Ronan criticara, durante os dias de estudo, o uso de um hexágono ao invés de um pentágono, mas devido a situação extrema, seu uso era necessário. Ainda que as cincos pontas pudessem canalizar melhor as energias do universo, somente com as seis pontas uma invocação poderia ter maiores chances de ser feita — ou um selo, de ser imposto.

A si i-dhúath ú-orthor. — com a mão esquerda, Erudon fincou violentamente a Tirfing no chão, no anel central da figura, segurando o coração de luz na mão direita. O Arcano entoou a frase em élfico, e um vento gelado soprou de leste para oeste. O frio rápido e cortante bateu nas faces dos magos, bagunçando seus cabelos e chacoalhando as vestes. Então, o ar ficou estático, e um fino fio de magia encheu as veias ocas de tinta que a feiticeira havia deixado. — As trevas ainda não dominam.

Ele retirou a espada da superfície terrosa, e percorreu o grande círculo em sentido horário, parando em cada ponta do hexagrama, que tinha uma pedra à ser marcada com uma runa.

— Que traga o Sol sobre a noite que caiu em nossas almas, que possibilite a vitória, que aumente a força e afaste o mal. — Ele riscou a pedra com Sowelu, e da ponta da lâmina uma luminescência marcou o mineral, gravando nele a runa com sua própria energia espiritual. Deu alguns passos para a direita, e a luz branco-azulada o seguiu pela linha, até a próxima pedra.

— Que haja harmonia em nossos corações, que novas energias fluam para nós, que a a alegria e a felicidade nos guiem — repetindo o processo, fez um símbolo em forma de “P” arcaico, que logo brilhou, refletindo Wunjo.

Enquanto isso, Arme preparava Elesis para o ritual. A ruiva estava impaciente, como era de seu feitio, e reclamava das minúcias da maga, que ao seus olhos pareciam sem sentido. Era quase como nos velhos tempos, e as duas teriam percebido e rido disso se o momento fosse oportuno.

— Afinal, o quê tanto você marca aí?!

— Nunca ouviu falar dos pontos de energia? O Jin chama isso de chakras.

— Ah, bacana, e por isso eu tenho que ficar nua na sua frente nesse vento desgraçado? — ela bufou.

— Não reclame, o certo seria te deixar nua durante o ritual, mas não vou fazer isso. Em consideração ao Ronan.

— Você acha que ele é o quê? Viado, também? O Lupus vivia dizendo pro Lass tomar cuidado, que ele tinha uns modos esquisitos e tudo o mais. Aliás, você conheceu bem ele, não é? O Ronan. — Riu um tanto perversamente.

— Melhor do que você, ruivinha. — ela sorriu, ácida, marcando algo no pescoço da guerreira: Vishuda, o ponto do renascimento, quando o indivíduo se purifica de todos os carmas, morrendo para o passado e nascendo para o futuro de realizações — E posso garantir que ele não chega perto de garotos. Ou de machões, tipo você.

— O quê? Sinto ciúmes no ar? Não se preocupe, não tenho tempo para essas baboseiras sentimentais. Mas que pena que ele também não vai chegar perto de você agora nesse estado seu, não é? — Falou, despreocupadamente.

— Agradeça por eu estar fazendo isso pelo Ryan, senão estaria morta. Agora vá se vestir, e direto para lá — e apontou para o homem, que terminava de entoar para a runa Hagalaz.

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O círculo mágico pulsava lentamente com a energia depositada em seu domínio, enquanto Ronan continuava seu delicado trabalho.

— …dos espíritos, fazendo-nos suportar provações e sofrimento para que possamos renascer. — O defensor fez sinal para que Elesis esperasse, conforme sua aproximação, e marcou na pedra Uruz, seguindo para o meio do círculo, onde uma outra circunferência menor se encontrava, com uma última pedra. — Sinal de começo e de fim, afirme nosso destino, invoque a lei cósmica, ó runa branca, feche o ciclo. — A Tirfing desceu para desenhar um único ponto na pedra arredondada. Odin estava feita. — Tanya farnuva; Isso bastará.

O circuito brilhou intensamente por um instante, e então voltou à sua luminescência original, sinalizando o fim da preparação. Apenas naquele momento a guerreira teve permissão para pisar no solo mágico.

— Liberte sua mente, Elesis. Preste muita atenção no que digo: Torne-se Um com o Cosmo. Não fale ou pergunte coisa alguma, não pense em nada, não odeie nem ame ninguém. Não julgue, não sofra, não viva. Apenas exista. Respire fundo, e procure achar o seu próprio Rítmo. Ouça seu coração batendo, sinta a brisa suave no seu corpo e a terra sob seus pés, a água que flui em você, assim como as chamas internas que te consomem. Você faz parte da Natureza, logo, é a Natureza. Encontre a Conexão que te mantém presa ao mundo. Você é Um. O Universo, é o Todo. Deixe que o Todo seja Um, e o Um, o Todo.

— Aah... Eu não... não entendi muita coisa, mas não odiar ninguém é difícil.

— Vou dar só um aviso: leve isso à sério.

A espadachim engoliu em seco e tentou fazer o que lhe foi pedido. Era difícil para uma pessoa sempre alerta como ela. Respirou e expirou algumas vezes, tentando sentir o tal “Rítmo”. Lembrou-se do treinamento para controlar o gênio forte que por vários anos Lire tentou ensinar-lhe; era chamado de “yoga” ou algo assim, não sabia ao certo, mas repassou mentalmente todos os passos para conseguir relaxar.

De olhos fechados, ficou por um longo período concentrada, tentando achar o que lhe fora pedido, mas não conseguiu perceber nada de diferente nela mesma ou ao redor. Frustrou-se; como diabos poderia “encontrar a conexão do mundo” com aquela pressão cerimonial desmedida? Para ela, todo aquele floreio era desnecessário. Depois de minutos incontáveis e sem resultados, irritou-se. Não estava tendo progressos, e o tempo urgia. Mas então, ouviu ao longe uma agradável canção. De onde já escutara aquele som tão bonito, antes? Era cadenciado, harmonioso, e fê-la ter vontade de chorar, não sabia explicar por quê. Sentiu a mão de Erudon em sua testa, e involuntariamente a franziu, por conta do nervosismo. Mas ao sentir o conforto e o calor que o companheiro emanava, desfez a tensão e deixou-se levar pela energia da floresta. Um entorpecimento singular tomou-a, e já não sentia os membros; em breve, deixara de sentir o próprio corpo. Era como se tivesse mergulhado nas mais profundas águas, e esquecido de emergir.

— Você é Terra. — O Erudon sussurou na orelha da Sieghart, enquanto jogava pó naqueles cabelos acobreados e entoava do fundo da garganta o cântico antigo que embalava a garota. — Você é Ar. — Soprou calidamente na mão direita da dama. — Você é Água — e derramou o líquido na mão esquerda dela. — E, com certeza, você é Fogo. — Com um meio sorriso, ele conjurou em suas mãos uma chama branca, de calor agradável e brilho tenro, e este fogo serpenteou para o peito da guerreira, onde se localizava o coração. Um arrepio agradável percorreu pela espinha.

O jovem se afastou alguns passos, levando consigo uma parte do conforto que a moça sentia. Ela ficou tentada a se questionar sobre isso, mas lembrou-se que não era uma boa ideia sequer pensar naquele momento, e voltou a calar sua mente à força. O rapaz estendeu os braços, e uma gota de suor deslizou pela têmpora direita, pelo o que estava prestes a fazer.

Amin yala onna en' vilya, onna en' kemen, onna en' naur ar' onna en' alu*. Ó formosa Exaon, protetora das águas e do gelo, defensora da Lua, tutora das estrelas. Ó, bondoso Siba e sábia Sílfide, que abençoam a todos com a brisa suave no verão, e espalham o pólem na primavera para o outono ser cheio de frutos, e sempre renovam a terra no inverno, para que floresça na estação seguinte. Ó, Efreet, o senhor impiedoso do fogo, caçador selvagem dos mais fracos, guardião dos portões infernais. Eu, Ronan Erudon, um consagrado de Juriore e Perriet, os invoco e peço ajuda à vós em minha arriscada jornada. Hoje busco, por meio de vós, livrar Ryan Woodguard, guardião desta Floresta e de todas as outras do mundo, da espiral de loucura na qual caiu. Com vosso auxílio e com a sabedoria das runas mágicas sob vossa proteção, eu vos peço humildemente que me ajudem.

Para ele, aquela seria uma experiência nova e completamente inusitada. Por mais que tivesse o auxílio do mundo espiritual — ou Plano Superior — por ser um cavaleiro Arcano, até então só havia tido contato com as almas menores. Invocar os grandes Fea Templa, os próprios Espíritos da Natureza, aqueles que regem o Universo, era algo algo fora de cogitação para qualquer um que não tivesse tido um rigorossíssimo treinamento pelos melhores Arquimagos que já existiram. Entretanto, a tarefa de convocar esses seres tão altivos ao Mundo Material caia sob os ombros de Ronan Erudon. Devido a quebra de contrato de Arme com os Fea Templa, ao juntar seus poderes aos Espíritos do Inferno na tentativa frustrada de vencer Ryan, ela não podia mais ter contato com o puro Plano Superior. Portanto, cabia ao Defensor a tarefa árdua e delicada de convencê-los a cooperar com a humilde trupe. Para uma cerimônia daquele tamanho, e tão complexa quanto, era estritamente necessário a presença das próprias bases da harmonia universal, para que elas fizessem a ponte mágica necessária entre ambos os Mundos.

Três veias de energia surgiram em torno do iniciado, formando uma tríade e manifestando a presença dos espíritos em seu favor. Eles giraram e se moveram até as bordas do hexagrama, se postando em distâncias iguais, que formavam intencionalmente um triângulo. Uma dessas veias era de um vermelho palpitante, e representava o Fogo em toda sua voláptibilidade; a outra, de um azul celeste inacreditável, era a Água, em sua calma e constância, contrapondo a nocividade do Fogo. A outra veia, ainda, era o entrelaçamento de duas menores: uma verde, da cor das mais tenras folhas, e a outra violeta, sutil como a sétima faixa do arco-íris. Um pouco mais complexo para explicar, e talvez ainda mais para entender, essa era a junção do Ar e da Terra. Reza a lenda que, no começo de Tudo, esses dois elementos apaixonaram-se, e decidiram por ficar juntos para todo o Sempre. É um relacionamento estranho e inconstante, mas muito importante. Não haveria ar puro sem a terra, e nem haveria terra se o ar não erodisse as rochas.

Yaaraerea onna**. Grandiosos espíritos, solidários ao chamado, eu lhes apresento humildemente o Altar. — ele se voltou e apontou em direção da companheira, e a alma da guerreira gelou por um momento, vítima de certo medo e muita apreensão. Não era versada em magia, não tinha talento nem para escutar as complexas definições da palavra. E se os espíritos não lhe aceitassem? No entanto, cruzou seus olhos com os do Defensor, e ele era de uma serenidade e certeza indubtáveis, que a acalmaram boa parte dos ânimos. — Guardiões das almas arcanas, vossa visão alcança além dos olhos mortais e com certeza verá a chama da coragem neste coração, e a bondade necessária para transformar o mundo.

— Ronan Erudon... — uma das finas colunas de energia ondulou e se abriu como um grande casulo de luz, revelando o rosto de barbas longas e expressão severa de um dos espíritos. Efreet, o mais impiedoso, se manifestara; havia fagulhas em seus olhos e elas eram dirigidas especificamente ao invocador. — ...Não temos um contrato contigo. E, não obstante, nos invocais diante de uma não-iniciada e uma Impura.

— Bem sei disso, ó, Anciões, e é por isso que peço a vós que me aceitem como vosso novo Feiticeiro.

— Uma proposta ousada, Arcano. — O espírito arqueou as sobrancelhas de chamas de modo desdenhoso, e continuou. — Espero que a razão seja forte, para vosso próprio bem.

— Minha razão é nobre, gran--

— Cabe a mim julgar vosso merecimento, humano tolo! — O guardião cortou, ríspido. — Explicai.

— Precisamos salvar nosso amigo — ele disse, meio desnorteado pelo ataque repentino — e precisamos de vossa ajuda. Arme não conseguiu antes e…

— Esta maga arrogante nos abandonou diante de seu desespero e quebrou o contrato espiritual, isso sei bem. Qual motivação temos para ajudar a vós, voláteis criaturas?!

— Imensas desculpas pelo ocorrido, Grande Espírito. As ações de Arme foram sim equivocadas, isso é irrefutável, mas ainda assim, foram realizadas em bom intento, movidas por amor e fraternidade. Se não podeis perdoa-la, ao menos contribuam para que possamos salvar uma alma inocente e concluir nosso objetivo.

— Não. Não contribuiremos. — Balançou negativamente a cabeça. — Não importa o que dizeis ou o que façais, não terão nossa ajuda. Continuam sendo os espíritos de porcos que sempre foram, e por melhor que achais são são vossas motivações, o mal perscruta em vós. Não vos atrevais a nos invocar novamente.

— Ei, ô espírito estúpido! — Mago e entidade se viraram, surpresos, para uma Elesis irritadiça. Ronan gelou, pensando nas infinitas possibilidades que a espadachim tinha de estragar tudo naquele momento; muitas das quais envolviam o Mundo Superior se recusando completamente a cooperar com qualquer Erudon por gerações, e até mesmo as divindades matá-los ali mesmo — Não estamos aqui porque é divertido fazer uma coisa dessas, sabia?! Viemos salvar um amigo. Um amigo, aliás, que protege a natureza que vocês tanto amam, e que está sofrendo sozinho na própria insanidade enquanto vocês, ó grandes espíritos — falou, em tom de deboche —, estão aqui debatendo conosco por que deveriam nos ajudar. Eu lhes dou um bom motivo: nos auxiliarão, não por nós, mas pelo Executor supremo, aquele que sempre serviu vocês, e que vocês desampararam!

Efreet inflamou-se, furioso, e seu tamanho triplicou, fazendo com que o ambiente ao redor ficasse tão quente que o Draconiano teve que se afastar um pouco para poder respirar. As labaredas que formavam o corpo do Elemental ficaram tão fortes e altas que ultrapassavam até mesmo a copa das árvores mais frondosas, e mesmo algumas próximas se inflamaram — nisto, Exaon sutilmente apagou as chamas que as consumiam. A Justiceira, no entanto, não tirou os pés do lugar, e, ao menos por fora, não parecia nem um pouco impressionada.

— Humana insolente, como ousais falar desse jeito?! Sabeis quem eu sou?

— E você, sabe quem eu sou? Meu nome é Elesis Sieghart e eu já lutei contra deuses. Deuses! E venci. — Não era uma mentira, afinal. Mesmo assim, o que estava fazendo era extremamente arriscado; e mesmo: estúpido. Nunca blefara de uma meneira tão descarada. Mas se os espíritos realmente não cooperassem, não havia chance de vencer o drúida ensandecido. Logo, o que ela teria a perder, que não fosse “só” a própria vida? Precisava ao menos tentar.

— Pois as experiências passadas não salvar-te-ão da minha ira. Matar-vos-ei antes que possa se arrepender de ter proferido estas coisas.

— Então faça isso! Quer saber? Eu não vou me importar se eu morrer, desde que em troca vocês salvem a vida de Ryan. Eu era a líder do nosso grupo, e não percebi o que estava acontecendo com meus aliados e companheiros ao longo dos anos. Eu me responsabilizo pelo o que aconteceu. Talvez se eu não tivesse sido tão negligente, concentrada nos meus próprios problemas, ele ainda estaria são. Que caia sobre mim toda a responsabilidade e culpa, mas, em troca, quero que vocês parem de corpo mole e ajudem-no. Ele deu a vida dele por vocês; provem que vocês são tão sábios quanto dizem as lendas.

O próprio Fogo calou-se, por um momento, e tudo mergulhou na mais completa quietude. Era impossível mesmo ouvir a respiração pesada dos dois magos. A água do riacho parou de correr, a fogueira arcana dos aneis ritualísticos não crepitava, as árvores cessaram o constante farfalhar e fazia silêncio por toda a terra. A entidade diminuiu consideravelmente de tamanho, e lançou-se para frente, adquirindo a forma de um elegante e bonito rapaz humano, cujo corpo balançava sensualmente quando andava, assim como uma labareda. Era curioso, pois ele era vigoroso e robusto, e tinha seis braços, o que deveria dificultar a caminhada de qualquer um.

— Pois bem, assim será. Poderá provar o que dissestes. Duelará comigo, e se prevalecer, ajudar-vos-ei, eu e os outros. Mas, perdendo, consumirei a todos vós no fogo mais infernal que jamais imaginaram. E vós — apontou com os braços para Erudon e Glenstid — se ousarem pensar, e somente pensar, em ajudá-la, torturar-vos-ei até o alvorecer, e então matar-vos-ei sem compaixão.

Ótimo. Ele mudara de ideia. Apesar de envolto em ameaças sombrias, já era alguma coisa.

A criatura estendeu os dois braços superiores, e com os intermediários puxou de dentro de si mesma uma magnífica espada flamejante. Estendendo as outras cinco mãos, invocou para cada uma delas outra espada, uma lança, uma montante, e dois sabres.

— Escolha a arma. — declamou, estendendo os outros braços.

— Me dê qualquer uma, eu sou boa com todas. — Sorriu, como uma fera. Céus, onde estava com a cabeça? — É melhor estar preparado!

— Nesse caso, não se importará se eu lutar com todas as outras armas, suponho?

— Se precisa mesmo disso para me vencer, então vá em frente!

O espectro jogou a cabeça para trás, gargalhando, e o som de sua risada maléfica aterrorizaria até mesmo a mais corajosa das almas. Jogou uma espada para a mulher, que pegou-a no ar. Ronan estava tão boquiaberto que mal podia acreditar no que acontecia. No que diabos aquela imbecil estava pensando para desafiar um Elemental? Por mais que eles não fossem ajudá-los, ainda assim era melhor continuar vivo do que morrer inutilmente tentando fazê-los cooperar. Recompôs-se: “Espero que ela saiba o que está fazendo”, rezou.

— Muito bem. Aos dois: sem golpes baixos ou truques sujos. Será uma batalha justa até a morte, no caso da humana envolvida, ou até a desistência, no caso da divindade invocada. Vós concordais com os termos? Pois espero que façam uma luta honrada!

Ambos aquieceram e se curvaram, comprimentando-se. Assim que o Defensor pôs os pés fora do anel ritualístico principal, o embate teve início. Efreet provou que era um excelente guerreiro, e a coordenação motora que tinha era excepcional — considerando que tinha nada mais do que cinco lâminas em punho e mesmo assim parecia que todas tinham consciência própria.

Os dias de treinamento duro com os poucos espadachins de Serdin mostraram-se valorosos quando as várias lâminas a atacaram ao mesmo tempo. Recuperara o viço e a juventude de antes, e conseguia prever com facilidade os próximos movimentos do oponente. Tivera muitas experiências com grandes grupos contra sí, e foi fácil girar para trás e se defender. Esquivou-se com graça de uma estocada da lança, e com facilidade pulou para evitar a pesada montante. Era irônico estar correndo risco de morrer combatendo contra os tipos de armas que empunhou durante toda a vida. Subiu a espada e defendeu o ataque de um dos sabres, e, rolando para o lado, aparou o segundo. Aproveitando estar no chão, agachou-se e propulsionou-se para frente, estocando-o no abdômem, e jogou-se para trás para escapar do aço que tentava rasgar-lhe o pescoço. O duelo continuou por vários minutos, e Efreet conseguiu acertá-la com a chapa de sua montante, jogando-a para um lado. Em seguida vieram as espadas, e fagulhas saíam quando ambas se encontravam freneticamente no ar. Em um golpe de sorte, ele abriu a defesa minimamente, e ela aproveitou o descuido para abaixar como uma besta selvagem a espada sobre dois dos braços do Ancião, decepando-os e deixando-o sem a lança e um dos sabres.

— Espero não ter te assustado! — sorriu animalescamente, com os olhos brilhantes pelo calor da batalha. Apesar disso, havia alguma coisa errada na intenção dele, ela podia sentir. Fechou o cenho: por que ele não se regenerava?

Não houve resposta. Ao invés disso, as investidas tornaram-se ainda mais violentas, e sem demora a Cavaleira começou a arquejar. Por melhor que fosse, ainda assim era difícil manter-se concentrada. Era como se algo estivesse puxando sua energia, fazendo-na fraquejar. Era como se... se aquela maldita espada estivesse deixando-a esgotada. Por um segundo olhou de esgueira para as mãos, que tremiam, e sentiu um mínimo fio de energia fluindo para a sua arma. Ora, aquele bastardo...!

No pequeno momento de distração, Efreet jogou-se no chão e passou-lhe uma rasteira batendo violentamente na parte de trás do joelho, fazendo-na cair e estatelar-se no chão, gritando pela dor. Ele levantou-se rapidamente, pronto para enfiar a espada no peito da donzela rubra. Ao ver o Espírito do Fogo sobre ela, pronto para tirar-lhe a vida, um sentimento de desespero tomou-a. Então, era assim que se sentia uma presa, ou todos os inimigos que ela matou durante toda a vida? Mesmo no calor da guerra, nas batalhas mais ferozes, nunca ficara tão vulnerável daquela maneira — e, mesmo que ocorresse, sabia que contava com o apoio dos amigos para salvá-la. Agora, porém, estava sozinha. Fechou os olhos para não contemplar a chegada do próprio fim.

Então, o inesperado aconteceu. Ao voltar a abrir os olhos vermelhos, deparou-se com Ronan em sua frente, com a Tirfing em punho, defendendo-a.

— Vós achais mesmo que não perceberíamos o embuste? Basta! É o fim!

— Absolutamente, é o fim. — A entidade riu demonicamente, para a surpresa geral, até mesmo dos outros espíritos. — Mas não o meu.

Ao olhar para baixo, Erudon percebera o seu erro — e tarde demais. Ao defender o ataque desleal, não considerara em proteger o flanco direito, pois o ser estava sem dois dos três braços esquerdos. Porém, ao olhar novamente, viu que o segundo braço regenerara-se e estava com uma adaga. Adaga esta que lhe perfurava o tórax entre as costelas. A criatura girou-a dentro do corpo do rapaz, que gritou. Efreet tentou acertar-lhe o coração com a espada, mas o jovem herói foi mais rápido e aparou com a Tirfing. Porém a distância era muito curta, e o espírito tirou proveito da dor pungente do homem para enfiar o enorme sabre em seu peito.

Urrando pela dor lancinante, o Defensor caiu de joelhos no chão, e arqueou para trás quando o sabre era retirado de si — somente para dar espaço para a lança, que voltara para a mão do atacante, ser cravada em sua barriga. Ele berrou e convulsionou pelo sofrimento, jogando a cabeça tão violentamente no chão que sangue saiu do nariz e boca.

Tudo aconteceu tão rapidamente que ninguém — nem as mulheres, nem os espíritos — tiveram reação alguma. Mas, ao dar-se conta do que acontecera, a alma de Elesis foi invadida por uma onda de desespero, medo e, sobretudo, ira. Um desejo assassino contra aquele Elemental desonrado, um sentimento animalesco, subconsciente, pelo sangue que ele provavelmente não tinha. Ela se pôs em pé sem realmente saber como, e segurando firmemente a espada devoradora de energia, pulou sobre o amigo em direção à cabeça do espírito, enterrando a lâmina maldita até a guarda em seu crânio espectral. Em verdade, a espadachim teria mutilado-o várias e várias vezes, tal seu estado, mas o corpo se esvaiu em fumaça avermelhada antes que pudesse fazer qualquer outra coisa que não fosse cair novamente no chão.

Isso fez com que qualquer que fosse a energia sobressalente em seu corpo, a deixasse. Sentiu-se fraca e derrotada, mas então se lembrou de Ronan. Num esforço sobrehumano, devido ao que parecia um joelho deslocado, conseguiu ir até ele. Encontrou-o tingido de sangue, a haste da lança lhe brotando do abdômen como um souvenir macabro de batalha. Ela se inclinou para ele, ajoelhada ao seu lado, e o Arcano lhe sorriu ternamente.

— ...Meu dever... está... cumprido... Não... não resta... mais nada... a fazer... — falava sofrivelmente, cuspindo o precioso e viscoso líquido rubro. A lança amaldiçoada penetrava aos poucos a carne, ao mesmo tempo que sugava-lhe a energia vital. Mas pela posição que estava, tentar arrancá-la, porém, iria fazer com que sangue demais jorrasse. A consciência de que ele estava morrendo atingiu-a assim como um raio faria em um carvalho. Lembrou-se subitamente daquele garotinho, seis anos antes, nas Planícies de Artione, e de como ele mesmo se matara a fim de parar de sofrer.

— Ronan, ei!! Ronan!!! Fique acordado, seu idiota, eu não vou te perdoar se você me deixar! — Estava histérica, e, sem perceber, algumas lágrimas caiam de seus olhos vermelhos.

Nesse momento Arme chegou, acompanhada por Siba e Exaon, e se postou do outro lado do guerreiro, pronta para começar seu trabalho de cura. Balbuciou, junto aos espíritos, os cânticos mágicos que Elesis se lembrava de anos antes, mas ela simplesmente não os ouvia; o mundo ao redor havia se tornado turvo e estranhamente mudo para a guerreira. Tudo que ela via, sentia ou ouvia era o companheiro desenganado à sua frente.

— Lembre-se... do poder... de um cavaleiro... brava amiga... e... meu... aah... — a visão turvou-se, e uma ânsia fê-lo parar para respirar. Pôs a mão sobre o coração, trincando os dentes, e apontou a mão debilmente para a amiga, que a segurou forte contra o próprio peito. Infelizmente, a força dele se esvaiu logo em seguida.

— Ronan?! RONAN?! — No desespero, balançou-o pelos ombros e estapeou-o no rosto, sem obter reação.

— Elesis, pare! Elesis!!! — A maga teve que interromper seu encantamento e puxar a garota para longe do amigo, para que não acabasse o machucando mais. Não foi uma tarefa simples; A ruiva se debateu e se desvencilhou de Arme várias vezes antes de largá-lo, e vê-lo se distanciar, nem que fosse alguns metros, foi a pior das experiências. Cólera queimava-lhe as entranhas, e a angústia sufocava-lhe. Não conseguia mais respirar, e um nó indescritível formou-se na garganta. Não! Não poderia acontecer, não poderia perdê-lo! Não poderia perder mais ninguém por um descuido seu!

O mundo continuava envolto em uma névoa turva e sem som para a espadachim, mas ela sentia seu corpo queimar de dentro para fora com uma força devastadora, destruindo tudo em seu caminho: engolindo os anos passados ao lado do Defensor, esmagando memórias tristes, felizes, solitárias, suprimindo a dor e a percepção, triturando qualquer resquício de humanidade até sobrar um grande espaço vazio. Nada, absolutamente nada.

Então Elesis gritou até seus pulmões se torcerem pelo esforço e o fôlego ser mera lembrança. A terra tremeu e um rugido subiu de seu interior como um urro de dor profunda, como se o planeta estivesse se rompendo, e se juntou à voz da Justiceira. Rupturas se fizeram no chão, e entre os sons retumbantes que se ouvia, algumas poucas palavras se destinguiram para os ali presentes.

— Espada da Punição!!!

Envolta em uma poderosa aura avermelhada que crescia impetuosamente conforme sua ira expandia, a mulher de olhos rubis conjurou uma das lendárias Habilidades Supremas.



–-



* Amin yala onna en' vilya, onna en' kemen, onna en' naur ar' onna en' alu — Eu invoco os Espíritos Elementais do Ar, da Terra, do Fogo e da Água.

** Yaaraerea onna — Grandes Anciões.


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Notas finais do capítulo

Surpreso, caro leitor? Bem, nós também, hehe. No processo de escrita deste capítulo, nos pegamos várias vezes com as mãos na cabeça, correndo e rolando pelo quarto, devido ao rumo que as coisas tomavam: cada mudança, por menor que fosse, cada ferida aberta, tudo fazia com que as coisas mudassem drasticamente.
Talvez esse seja o último capítulo em uma ou duas semanas. Não deixe de comentar, por favor! Estamos realmente muito curiosas para saber o que vocês estão pensando!



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