King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 10
Uma Conversa Franca


Notas iniciais do capítulo

Olha eu aqui de novo! (LichiaW)Venho pedir sinceras desculpas pela demora, pessoal, espero que compreendam. :(
Capítulo 10 de K.a.L. quentinho, saindo do forno do Vulcanus, só pra vocês. Ajeitem-se em suas cadeiras e boa leitura!



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— Eu já entendi que está muito feliz em me ver. — Enfastiado, ele pousou no pires a delicada xícara de porcelana ornamentada — Mas agora você sabe que eu quero saber sobre outras coisas. Aliás, que imundície é essa que me serviu? — Completou, lançando um olhar desdenhoso à amiga acompanhado de uma careta de desgosto.

No ameno fim de tarde alaranjado, cuja luminosidade quente fazia com que as grandes almofadas cor de carmim parecessem incandescentes, Lass Isolet e Holy Serenity encontravam-se acomodados sob os baixos divãs e entre as dezenas de almofadas, finalmente prontos para uma conversa franca. Isso foi, claro, depois que a cafetina resolvera seus assuntos com Juliette e as outras meninas, e o assassino conseguira conter o ataque histérico de risos que tivera uma hora antes devido a surpresa um tanto insólita.

Ao lado da Paladina, o tigre branco aparentava descansar tranquilo, certo de que não seria incomodado em sua opulência; mesmo assim, ele semicerrava com frequência um dos seus enormes olhos azuis, observando atentamente cada movimento do Ninja. Este, por sua vez, também mantinha vigilância constante, travando uma batalha silenciosa de olhares fatais. A mulher apenas se deliciava com o sutil jogo de poder entre as duas feras de poderosas orbes azuladas.

— Acho que ele gostou de você, meu amigo... Vocês tem mais em comum do que só a cor do pelo ou dos olhos, sabe? — desconversou, passando as mãos do animal altivo — E essa “imundície” é uma iguaria exportada de Áton para a corte de Canaban e Serdin, e é muitíssimo cara, por sinal. Chamam de kahve, ou cahue, por lá, mas por aqui está ficando conhecido como café.

— E vocês ganham tão bem aqui nesse prostíbulo, para importar coisas de outros continentes?

— Consideravelmente. Mas quem disse que eu importo? Tenho meus próprios métodos de arrumar alguns pacotes disso, lá no cais. O que achou?

— É amargo demais. Mas me sinto muito mais alerta. — disse, optando por ignorar perguntar quais seriam os métodos que ela usava para arrumar aquela preciosa carga.

— Exatamente, meu caro. Ficamos mais cautelosos bebendo isso. E é por essa razão que ofereço vinho, e não café, para minhas meninas e seus acompanhantes... Não que nós dois não possamos tomar vinho depois... De qualquer forma, não vamos nos aprofundar nesse assunto! Bem, você queria saber de outra coisa? Pois fale! Espero que a Jully não tenha te tratado tão bem que tenha se esquecido de como lidar com pessoas. — E, ao soltar uma risadinha divertida, pousou a xícara sobre uma pequena mesa de centro, onde também repousavam um bule de porcelana e prata polida, biscoitos amanteigados e pães frescos. Serenity havia pedido que trouxessem a pequena refeição para ser apreciada no jardim, e desde então ela vinha enchendo o Mercenário de perguntas e paparicos, e repetindo constantemente como era bom vê-lo ali.

Ainda absorto na luta de olhares e no falario sem fim da bela mulher, o mestiço suspirou e começou a falar sem prestar muita atenção.

— Para começar, como foi a garota mais id-- — conteve-se, rapidamente — inocente que já conheci, foi virar a dona de um bordel? Abandonou os deuses? Ou eles te abandonaram? — riu de forma escarnecedora, observando desejoso as curvas da prostituta.

A expressão de felicidade e encantamento anuviou-se, transformando o cenho da sacerdotisa, que repuxou os lábios e fitou um ponto qualquer na mesa, perdida em pensamentos. Ela apanhou a xícara e levou-a aos lábios sem pressa alguma, e depois lançou um olhar penetrante na direção do ladino.

— Imaginei que fosse perguntar. É uma longa história, não faz sentido te incomodar com isso agora.

— Depois dos monólogos intermináveis de sua amiga, ­— e olhou discretamente para o lado, para conferir se Juliette os escutava — acho que aguento qualquer coisa. — Admitiu. Holy abriu um sorriso enigmático.

— Por hora, vamos dizer que eu e a Igreja discordamos fortemente sobre alguns aspectos, que agora sou uma herege procurada, e aqui é o lugar perfeito para me esconder.

— Essa é sua longa história? Estou decepcionado... Ei? Está tudo bem?

— É só... uma dor de viagem. São muitos dias no dorso de um cavalo, você sabe do que estou falando. Ei, Mariam! — Ela chamou, ao bater palmas, e uma garota veio trôpega de dentro da casa — Vá lá dentro e peça para Jully me trazer meus cigarros. Aproveite e prepare um banho bem quente, sim? Obrigada.

— Você fuma também?

Ela apenas aumentou o sorriso. Céus, as coisas podiam ficar mais estranhas?

A careta de dor que ela havia demonstrado alguns momentos antes não se parecia em nada com uma trivialidade como dores de viagem — Lass podia jurar que a vira sufocar a agonia por um instante, porém, seus instintos lhe diziam para ficar quieto por hora. Permaneceram em silêncio, estudando um ao outro, por um longo tempo, até que Juliette viesse em passos rápidos, trazendo um estojo de couro fino que continha as cigarrilhas. Eram longas e de aspecto caro, e assim que Holy puxou e acendeu uma, uma expressão de contentamento surgiu em sua face. Ela deu uma longa tragada antes de voltar a falar:

— Aah! Bem melhor... Onde estávamos? Você estava decepcionado com a minha história... Mas como foi mesmo que você chegou aqui? Ah, sim... levou um tiro, Jully me contou. Devo culpar Lupus Wild? — Só de ouvir aquele nome a musculatura do Retalhador se retesou, e uma sutil chama de ódio perpassou em seu olhar. — Claro que sim. Foi o que pensei.

Ela falava com a voz tranquila de quem já viu muito do mundo, e concluiu que não valia realmente a pena se inflamar por nada. Isso o incomodava um pouco.

A Paladina tragou mais uma vez o cigarro e sentiu o gosto adocicado das ervas medicinais que Juliette preparara. Ela era mesmo uma ótima curandeira... Soltou a fumaça devagar, como quem se entretêm com alguma coisa no horizonte, e não prestou atenção ao ângulo estranho e perigoso que sua piteira traçava em direção à mesa. Sim, ela se lembrava... Lembrava-se de como as duas haviam se conhecido; mais precisamente, dos motivos que levaram a esse encontro extraordinário. O eco de seus passos naquele colossal salão de mármore e ouro não sairiam de sua memória tão facilmente. Era uma cicatriz dolorosa, assim como os dias em que, inocente, presenciara horrores dos que considerava santos, sacrifícios de infantes em favor da luxúria…

— Não! Não, por favor, não!

A voz abafada e amedrontada de um garoto ecoou em seus ouvidos de forma metálica, distorcida. Ela andava apressadamente por entre os corredores do palacete do Papa Constantino, cheia de deveres para cumprir e relatórios a entregar antes do sol nascer, quando o gemido peculiar chamou-lhe a atenção. Olhou por uma ampla janela e constatou que a lua já encontrava-se muito avançada em sua caminhada pelo céu; não era hora dos meninos que auxiliam os padres nas missas — os ditos coroinhas — vaguearem por aí. Estava decidida a encontrar o malandrinho, que provavelmente havia se metido em encrenca quebrando alguma coisa valiosa, e mandá-lo direto para o quarto, puxando-lhe a orelha e dando um sermão sobre como ele devia se comportar e obedecer a palavra dos mais velhos.

Porém, por alguma razão, seus pés falsearam por um instante, e um frio incômodo percorreu sua medula espinhal. O ganido que havia ouvido não era bem o de uma criança malcriada preocupada em ser descoberta em sua mais nova traquinagem. Não. Havia um tom de angústia naquela voz esganiçada.

— Silêncio, traste. Quer que nos ouçam? Você quer que nos ouçam, seu bastardo?

— Não, senhor... Não... — havia uma nota chorosa em sua fala, como se estivesse sofrendo…

Holy percebeu que algo errado estava acontecendo no salão, e se aproximou devagar, porém com o coração batendo violentamente contra sua caixa toráxica. Seria um exorcismo? Ela nunca tinha visto um desses tão de perto, e sinceramente, tinha medo de espíritos. Disseram à ela que ela deveria enfrentar seus medos caso quisesse continuar a ser praticamente o braço direito de Constantino; ela respirou fundo e seguiu em frente, mesmo com as mãos tremendo um pouco. Apenas quando chegou perto do portal conseguiu distinguir o que estava realmente acontecendo. Aquela imagem ficaria marcada a fogo em sua retina, e nas noites que se seguiram, mesmo depois de anos, era aquilo que iria ver. Ela levou a mão à boca, na incapacidade de fazer qualquer outra coisa, e as lágrimas começaram a brotar de seus olhos descorados, uma após a outra.

Uma ardência tomou seus olhos e a lágrima veio logo em seguida.

— Holy? — ele chamou, indiferente. — Você vai queimar a mesa.

Ela nada disse, apenas retirando a piteira dali.

— E onde você esteve durante esse tempo todo que fui mantido aqui em cativeiro? Aliás, que droga é essa de “Corvo Branco”?

— Albino... Apesar de nos referirmos como “branco”, também. Jully abriu a boca mais do que deveria, pelo visto. Mas acho que essas informações não saíram somente dela, não é, mestiço?

Isolet estreitou os olhos, levemente irritado com a maneira ousada que ela havia se referido a ele.

— O quê sabe sobre isso?

— “Um enviado de Juriore será atacado por um filho de Perriet; O Corvo Albino há de surgir vacilante, prestes a atravessar os Portões de Hades para se reencontrar com a mãe de todos, Gaia. Virá num dia claro depois da Tempestade, puxando as correntes da reunião, abençoadas por Samsara”.

— Não essa droga toda, por deus, qualquer um deles! Eu quis dizer a parte do mestiço.

— Oh, isso. — ela parecia realmente admirada, como se contemplasse alguma coisa que não pertencesse a este mundo. — Todos os chasers sabem disso, querido. Ou melhor, ex-chasers. Você não exatamente escondeu bem na época.

Ele nada respondeu, apenas desviando o olhar com uma careta, e ruborizou. Maldição! E ninguém tivera a decência de lhe dizer nada...?

— Isso não é importante, Lass. Temos um assunto muito mais sério a discutir, e você acabou de chamá-lo de “droga toda”.

Ele cruzou os braços e encostou o corpo para trás, grunhindo alguma coisa inteligível como forma de incitá-la a prosseguir.

— O tempo que permaneci fora? Pois bem; fui falar com o Oráculo Supremo. — e tragou longamente do seu cigarro, soltando uma voluta de fumaça branca logo em seguida, esperando a reação do companheiro, que permaneceu impassível aguardando por novas informações. — Você sabe... a última Sistina.

— Fiquei sabendo que ela não tem muito o que falar…

— Talvez eu tenha usado o termo errado. De qualquer maneira, as notícias não são boas. Há um dedo divino nisso tudo, meu corvinho. Esses são tempos de mudanças.

— Você não é a primeira a me dizer essa última frase. Não entendo o por quê dessa insistência em achar que eu faço parte dessa palhaçada toda. Eu não sou enviado de deus ou deusa algum, ainda mais da divindade da Harmonia. Também não tenho marca alguma, nem sou Escolhido para nada. De qualquer maneira, como ainda acredita na influência celestial nas coisas terrenas? Não foi você mesmo quem disse que agora é uma herége procurada pela própria Igreja?

— Constantino não passa de um porco, enfiado covardemente no Reino da Luz e tentando esticar os tentáculos nojentos da Igreja por toda Vermécia e além. Porém, não é porque saí da Ordem que deixei de servir aos deuses, Lass.

— E serve-os gerenciando um bordel?

— Exatamente, meu querido... Nunca ouviu falar que amor nunca é demais no mundo? Minhas... “irmãs” encarregam-se deste serviço; não fazem mal à ninguém. Em troca, dou-lhes um abrigo e comida, ao passo que elas servem aos deuses como podem. Simples, não?

Isolet não pode deixar de rir com a simplicidade do pensamento. Será que ela realmente acreditava na própria desculpa? Praticar um dos pecados capitais com a prerrogativa de servir aos deuses estava longe de ser um motivo palpável e real para ela gerenciar um bordel.

No jardim de inverno onde conferenciavam, as árvores também conversavam entre si farfalhando os galhos; e igualmente faziam os insetos, que cricrilavam agradavelmente na noite que começava. O som de uma cascata de água caindo no lago principal era relaxante, e as carpas coloridas ainda dançavam, incansáveis. A estrela d’Alva já puxara suas outras irmãs, e o céu apresentava-se ornamentado com as dezenas de pontos luminosos. Muito ao longe, uma grande nuvem carregada vinha do leste para oeste, sendo soprada pelos ventos do mar, que traziam consigo um leve cheiro de maresia. Uma mariposa negra esvoaçou na frente dos dois amigos.

— Mudando um pouco de assunto, você sabe o que tem no pacote? Digo, aquele que você roubou, e por causa dele veio parar aqui, baleado?

— Não faz parte da minha política saber desses detalhes que dizem respeito somente ao cliente... Mas por acaso, eu sei sim. Ao menos tenho uma ideia. Que espécie de ladino eu seria se não soubesse o que roubo?

— E o conteúdo realmente é... aquele assunto que está alvoroçando dos nobres até plebe? — abaixou o tom da voz, como se falar sobre aquilo pedisse sigilo absoluto.

— Sim.

Holy emperdigou-se em seu assento.

— E o que você vai fazer?

— Isso realmente não me diz respeito. Sou só o ladrão, por aqui. O que fazem com o que roubo não é da minha conta.

— Você tem ideia nas consequências que implicaria se este conteúdo caísse nas mãos erradas?

— Pouco me importa, madame.

— Você está trabalhando para a Igreja, não está?

— Não posso revelar a identidade do meu contratante.

— Considerarei sua resposta evasiva como um “sim”.

— Suponhamos que sim? — levantou as sobrancelhas, irritado.

Da casa, podia-se ouvir o barulho das meninas correndo apressadas, se maquilando e arrumando os cabelos jeitosamente, prontas para receberem seus clientes. Às vezes uma ou outra gritava algum impropério, mas os ânimos eram acalmados rapidamente com a intervenção de outras mulheres. Alguns rapazes correram pelo pátio da parte de cima da construção, carregando uma pesada bacia de água prontamente fervida. A vida noturna, de fato, começara.

Holy, ao ver que o companheiro não estava disposto a falar sobre aquilo, mudou de assunto. Ainda precisava atender alguns pedidos, e ela não tinha exatamente a noite toda para perder com o amigo. Ou, quem sabe, sim.

— Agora, vamos falar sobre algo que me intrigou, Lass: as meninas me disseram que você ficou preso vinte e quatro horas por dia. É verdade?

O Ninja sentiu-se levemente ofendido com a insinuação.

— Elas terem me visto preso não implica que eu tenha ficado preso todo o tempo.

— Então, se escapou, por que não fugiu quando teve a oportunidade?

— Para ser sincero, foi complicado, principalmente no começo. Mantinham vigilância constante em mim o tempo todo e eu realmente não queria ter que me encontrar com sua amiga outra vez. Querendo ou não, eu fora baleado e fiquei debilitado por algum tempo. Não sei o que aconteceria se...--

— Levasse outra surra? — e riu maldosa, divertida com a carranca fechada do companheiro, que absteu-se em silêncio. — Ora, não me leve tão a sério assim. E então?

— Usei minhas habilidades para sair uma ou outra vez do quarto muito rapidamente, o suficiente para fazer o reconhecimento da área antes que alguém desse falta de mim.

— Então, uma vez do lado de fora, por que não fugiu logo? Vai, não diga que foi culpa de Jully, ela não é tão má assim.

— Não, não foi só por conta disso. Falando nisso, como ela pode ser tão... inumana assim? Deu algum tipo de treinamento especial à ela?

— Apenas aproveitei a força bruta natural dela... e fiz alguns ajustes necessários, usando o que eu aprendi na Ordem. Ela hoje em dia é tão forte quanto eu, capaz mesmo de levantar os Martelos Sagrados dos Paladinos de Luz. Sempre bom o seu braço direito ser leal como um cão e ao mesmo tempo tão forte quanto você, não?

— Entendo. De qualquer maneira, por que eu fugiria daqui? No tempo que fiquei preso, Wild não havia me procurado. Se o fizesse, seria outra história.

— Chegamos ao ponto certo.

— Qual ponto? Ele não ter vindo me ameaçar? Se é isso, estou realmente curioso. O quê você usou? Algum tipo de… não sei, magia contra seres de haros neste lugar?

— De certa forma, sim. E ela se chama “influência”. — riu deliciada com o rumo da conversa — Madame Divine goza de grande reputação e fama aqui em Delutia, esta cidade portuária que serve à Canaban, e muito mais além. Talvez você não saiba, pois chegou de Ellia há pouco tempo, porém eu tenho um bom nível de controle pela região. Me diga, Lass, por quais outros motivos acha que tornei-me a administradora de um bordel.

— Espero que não seja somente pelas desculpas esfarrapadas já deu.

— De fato, não foi só isso. Um prostíbulo é mais do que somente uma casa de prazeres e de troca de carícias e amor, sabia? É também um local para trocas de informações. — Ao que Isolet levantou uma sobrancelha, ela continuou animada, inclinando-se para frente e apoiando o rosto nas mãos delicadas e repleta de anéis — Me diga: chegou a dormir com minhas meninas durante sua estadia aqui, não foi?

— Não nego.

— E descobriu coisas além dos corpos esbeltos delas?

— Entendo onde quer chegar.

— Exatamente, meu caro... A Casa principal fica aqui em Delutia, mas tratei de me espalhar pelo continente; alicercei minhas Moradas na capital, Canaban, e também em outras grandes cidades. É como se fosse... uma rede, entende? Eu sou a Mestra; as Irmãs — que é como chamamos as administradoras desses outros bordéis — são pessoas de confiança que me deixam a par do que está acontecendo nos outros lugares. Isso é fantástico; consigo ter informantes por toda Vermécia, e permanecer no mesmo lugar.

— Se está fugida da sua Ordem, por que não escolheu Serdin, que é um reino mais isolado geograficamente?

— É aí que está a mágica, corvinho. Eu não quero perder contato com a Igreja. Desde a Batalha Final, ela vem ganhando um espaço cada vez maior em Ernas, e isso me preocupa. Apesar de tudo o que aconteceu, eu continuo me considerando uma Cavaleira da Luz; no sentido real e literal da palavra. Valorizo a honra e acredito na justiça como o valor mais importante de todos. Me instalei aqui nesta cidade costeira fétida para poder ficar de olho no fluxo de Paladinos que chegam em Vermécia. Eu acredito que essa situação toda seja um chamado das deusas; é meu dever impedir que a Igreja se espalhe ainda mais. A Ordem está corrompida e falida; é necessário que guerreiros de fora permaneçam combatendo.

— E onde entra Lupus Wild nisso tudo? — Estou chegando lá, não me apresse. Como eu ia dizendo, tenho influência por aqui porque meus diversos olhos e ouvidos me contam muitas coisas. Coisas essas que, por vezes, nunca deveriam ter ido à tona. O Marquês de Delutia — Dereck de Glyon — e eu temos algumas tensões... Digamos que eu saiba de alguns segredos dele que, se chegassem até Canaban, abalariam completamente a confiança que Anyu deposita nele — isso seria desastroso para seus propósitos.

— Então você o chantageia?

— Não é bem isso... Em troca do meu silêncio, ele me dá proteção contra a Igreja. Mesmo que a Ordem não saiba que a herége Holy Serenity está aqui, ela não concorda com os prostíbulos de Madame Divine, entende? Quando necessário, presto meus serviços a Dereck, de modo que ficamos em relativa paz um com o outro. E aqui entra o seu irmãozinho, e o fato dele não ter te incomodado enquanto você estava aqui. Eu não tinha a certeza, mas havia ouvido falar que o haros havia sido contratado pelo Marquês para proteger a ele e aos seus subordinados, e, principalmente, proteger o que eles andam tramando. O que é realmente algo raro e estranho, porque por mais mercenário que Wild seja, os Caçadores de Recompensas de Hades não aceitam serviços de outras dimensões. De qualquer jeito, o pacote que você roubou tem as informações valiosas que o Marquês tanto teme que caiam em mãos erradas... que nesse caso, é, como até mesmo eu temo, nas mãos da Igreja.

Lass mordeu a ponta do polegar, pensativo. Aquela conversa toda havia sido muito produtiva e valera a pena os dias de cárcere. Em suma, Lupus não aparecera até o Distrito das Flores Vermelhas reaver o que perdeu — por causa do ladino — porque a meretriz guardava um segredo do chefe dele; Wild não o pressionaria antes da hora, para que a Paladina não contasse à Anyu do que o chefe do atirador, o Marquês, andava fazendo.

— Afinal de contas, você está do lado do Marquês? Pensei que chantageasse-o.

— Eu não estou do lado dele, mas também não estou do lado da Igreja, evidentemente. O Marquês é um homem ganancioso e rico, que está procurando um jeito mais eficaz de ficar ainda mais gordo. Constantino vem cerceando a liberdade dele, forçando-o a pagar altos dízimos e fazer grandes doações públicas — em suma, sendo uma pedra no sapato. A Igreja e a família real de Canaban estão fazendo alianças há muito tempo; o que cair no conhecimento dela, irá cair também no conhecimento de Anyu. O que você roubou e está agora em nosso poder mudará o destino de todos, Lass. É uma grande responsabilidade... E se bem o conhecemos, Lupus dará um jeito de arrancar aquelas informações preciosas de você custe o que custar.

— Espero que você não tente me impedir de fazer o que devo fazer, pelo bem das nossas boas relações.

— E como eu poderia? Somos ex-chasers, e você é ainda mais habilidoso que eu. Mas o que eu estou dizendo é que... droga, Lass! Não concordo com as intenções mesquinhas que movem o Marquês, mas talvez o plano dê certo! Talvez seja a única maneira do povo parar de sofrer tanto... já é hora disso acontecer, querido. Pense bem: não é você que buscava se redimir do passado, ajudando os outros?

— Pensei que fosse contra mortes desnecessárias, Madame Divine, e, quer saber? É isso o que acontecerá se esses papéis voltarem para Dereck e seus planos não forem descobertos em tempo. Me veja como o salvador da pátria, não como o traidor. — respondeu, aborrecido — Agradeço imensamente por ter salvado minha vida, mesmo que de modo indireto, Holy. Entretanto, não posso mais perder tempo aqui com historinhas fantasiosas sobre profecias, conversando sobre política e bebendo uma água suja e amarga que me serviram e sabe-se lá mais o quê. O tempo urge, e vocês realmente me atrasaram bastante nos últimos dias. Não me leve à mal. — atalhou rapidamente, ao ver a expressão ofendida no rosto da mulher — Não sou ingrato. Apenas tenho meus próprios assuntos pendentes.

— Até quando você vai fugir do seu destino, albino? A marca do Escolhido pulsa em seu braço; sei que você sente isso. — Ela disse, apontando para as marcas nos braços torneados do rapaz.

— Do quê está falando? — Ele arqueou uma sobrancelha e levou os olhos até um dos braços que continha a tatuagem das lâminas triplas no formato de shuriken. — Essa é a tatuagem da Ordem dos Assassinos, não fale besteiras.

— Tsc, parece que terei de explicar tudo... Certo, não tem problema. Para você pode ser uma mera tatuagem de uma ordem qualquer, mas veja bem: são três pontas, que coincidem exatamente com o sinal do Escolhido. Temos três deusas principais; a Trindade está formada. Ernasis repousa aqui em cima, encorajando nossos guerreiros à luta. — E apontou para a ponta superior, deslizando o dedo em seguida para a que estava ao lado. — Esta aqui... é Lisnar, que zela por nós e pelos espíritos terrenos. — Holy adquiriu uma voz suave e quase melodiosa às falas, como se tivesse decorado cada palavra justamente para o momento. Seu estado de transe era quase visível para o rapaz. — E por último temos Armenian, que usa de sua nobre e infinita sabedoria para governar Ernas, junto das companheiras. As três trabalham em conjunto e estão em constante harmonia, formando as três forças mais poderosas deste Universo.

— Você deve ter tropeçado e batido a cabeça numa pedra enquanto voltava da batalha em Arquimídia, e desde então sonha com tudo isso! É a única explicação lógica que consigo pensar. — disse, com uma forte entonação de incredulidade. Mesmo assim, ele se lembrava claramente das palavras de Ortina em seus devaneios, e que, coincidentemente ou não, batiam perfeitamente com o que a amiga paladina falara até então sobre a dita Profecia — Agora, se me dá licença... eu preciso respirar um pouco.

Lass se levantou bruscamente e se dirigiu para fora dos limites do jardim de inverno. Quando estava prestes a abrir as portas do corredor, as mesmas foram escancaradas por Julliete, que tinha os olhos arregalados e puxava o ar em grandes lufadas. Suas roupas eram estranhamente comuns, comparando com o que o gatuno vira em seu tempo encarcerado: ela vestia apenas uma túnica cinzenta com capuz e uma faixa lhe prendendo na cintura.

— Mas o quê...?

— Senhora! Clérigos do reino da Luz acabaram de aportar nas docas!

— E por que tanto alarde para um evento tão comum como esse?

— São muitos, senhora. Nosso informante — ela deu uma olhadela instintiva para Lass

— Nos diz que eles trazem um Cardeal.

Os olhos de Divine se arregalaram por um momento; ela se recompôs e deu mais um trago em seu cigarro, pensativa. Os outros presentes a fitavam, esperando por uma resposta, embora que por razões diferentes.

— …Isso é um tanto inesperado. Droga. Vamos ter que fazer um reconhecimento.

— Reconhecimento? Do que estão falando?

— Você não é um espião nas horas vagas, Lass? — Holy se põs de pé com um sorriso divertido — Use seus dons de dedução. Ou pode vir conosco, se quiser.



–-



Lass, Holy e Julliete corriam para a extremidade leste da cidade, muito longe de onde se localizava o bordel de Serenity. Isso se devia a dois fatos curiosos: primeiro, que quanto mais longe do mar, melhores as condições de vida; e segundo que apenas os poderosos da cidade se fixavam na extremidade oeste, e eles, assim como Serenity, não costumavam gostar da visita dos clérigos da ilha.

Se dirigiam para as docas, camuflados com capas puídas e roupas desbotadas, procurando não chamar atenção. A deteriorização tanto dos edifícios quanto das ruas no caminho eram notáveis. Haviam saído de um lugar onde a pavimentação era clara e as árvores vibravam de cor e vida para gradualmente chegar às vielas escurecidas de sujeira e lixo, onde os ratos e a água fétida eram praticamente uma constante. E as docas eram piores: Pareciam um monstro de ferro oxidado, cordas e vapor de barcos, que rugia incansavelmente e tinha cheiro de umidade e podridão. Ao mesmo tempo que a estrutura colossal era intimidadora, parecia frágil, pronta a ruir com o toque de uma pena.

O pessoal do lugar parecia completamente adaptado ao ambiente, cobertos de suor e uma camada de fuligem cinzenta que acabava com qualquer esperança de descobrir a cor original das roupas, cabelo e pele. Com suas capas rotas, os três forasteiros se misturavam perfeitamente. Quem não o fazia, no entanto, era um grupo grande de pessoas em túnicas e robes brancos e ricamente adornados, que se ocupavam em verificar o desembarque de suas volumosas bagagens e de uma liteira, carregada por quatro clérigos de menor cargo, onde parecia vir alguém importante. A madeira era recoberta de adornos a ouro, e brilhava cômicamente naquele lugar desbotado, mas tinha problemas com a largura do pier; pois havia um carregamento gigantesco de caixas e barris à esquerda e seria muito complicado descer com tamanha estrutura sem que nada fosse danificado.

— Dá pra acreditar numa coisa dessas?... — Julliete reprovou, balançando a cabeça.

Lass estreitou os olhos, para observar melhor as roupas do grupo. Será que era ele? O Cardial parecia realmente muito familiar…

Então veio o barulho, cortando o ar como se o mundo estivesse caindo. O som seco de disparos foi-se ouvido, seguido pelo baque surdo de corpos tombando. Quase ininterruptamente, os clérigos foram caindo, um a um, e os outros se puseram a correr como baratas tontas, se jogando ao mar e se escondendo atrás de tábuas de madeira. No centro da tempestade, onde a chuva era de projéteis, estava um homem esguio e de olhos gelados, perfurantes e escuros, tal como a sombra que se projetava em sua face iluminada pelo luar.

O Retalhador petrificou por um segundo, em choque, e logo em seguida partiu para o topo o carregamento de caixas, onde o atirador se encontrava.

— Não Lass, espera! — Holy tentou agarrar suas vestes, mas o albino era realmente muito rápido. Ela xingou e puxou a amiga para se esconderem atrás de algumas caixas de frutas. Aquela era para ser uma missão de espionagem, e não uma missão aberta. Não poderiam arriscar suas identidades daquela maneira...!

— Ora, ora! Quem é vivo sempre aparece! — Lupus zombou, apontando uma Scarlet na direção do assassino que vinha em sua direção. — Olá, irmãozinho!

Bang! Lass desviou da bala facilmente dando alguns passos para o lado. Ele pulava as caixas sob ataque, mas seu nível de habilidade permitia que avançasse ileso. Seu irmão não parecia nem um pouco surpreso com isso; na verdade, tinha um sorriso satisfeito no rosto.

— Finalmente resolveu sair da toca? Não aguentava mais esperar você sair daquele lugarzinho imundo, mas não dava pra eu te ver antes por causa dessa puta. — O atirador apontou as pistolas para os caixotes onde Holy e Juliette escondiam-se e efetuou dois rápidos disparos. Instintivamente a Paladina ativou sua aura de defesa, fazendo com que os projéteis fossem ricocheteados, dando-lhe alguns segundos de proteção e tranquilizando o Ninja momentaneamente.

— Vocês duas podem ir pra casa, sou mais do que suficiente aqui. — Voltando a atenção novamente para Lupus, que com suas mãos habilidosas já preparava novos ataques, Isolet tentava distraí-lo, diminuindo a distância entre eles.

— Você fala demais. Vejo que terei que te relembrar do nosso último encontro. — Avisou o atirador, deslizando as mechas castanho claro que pendiam sobre seu olho esquerdo. Sem demora, rodopiou as armas entre os dedos e passou a focar nos movimentos rápidos de sua presa, que já estava há poucos metros dele.

— Isso é nada mais do que desperdício de boas balas. Facilite meu trabalho, bastardo. Eu só quero aqueles malditos papéis, não precisa ter mais derramamento de sangue.

— Não é como se você se importasse com isso. — Lass franziu as sobrancelhas e olhou diretamente para o haros que já perdera a paciência. Num milésimo de segundo depois, ele — utilizando de sua técnica mais básica de esquiva — apareceu atrás do irmão pronto para lhe dar uma chave de braço. Agilmente, Lupus girou nos calcanhares e ficou frente a frente com o Vingador, apontando o cano gelado da pistola para seu estômago.

— Ah, não! Lass! — Enquanto a tensão crescia entre os irmãos, Holy avista uma pesada âncora, largada no cais. Aproveitaria a distração e acertaria o haros, ganhando tempo para fugirem. Segurou o objeto com as delicadas mãos e ganhou velocidade através do píer. Quando viu que se encontrava a uma distância segura entre os dois, lançou a estrutura de ferro para frente, que rodopiou no ar durante alguns segundos. — Golpe Poderoso!

Divine pouco calculou se atingiria também o Retalhador; mas ele, com a destreza de um leopardo, apoiou-se nos ombros do adversário e pegou um grande impulso para cima, pouco antes da âncora atingir o tórax de Lupus Wild e criar um rastro de destruição por onde passou, assustando ainda mais uma meia dúzia de religiosos que tentavam debilmente se defender. Aquilo representou o fim da paciência do haros. Ainda recuperando-se do ataque surpresa, decidiu que já era hora de acabar com tudo aquilo.

— Lass, vamos logo embora daqu--!! — Holy, temendo que os poucos religiosos ainda vivos já houvessem se dado conta de sua força excepcional e desconfiassem de suas identidades, tentou alertar o amigo. Porém, antes que pudesse fazê-lo, Lupus havia novamente aparecido, aparentemente sem nenhum ferimento ou hematoma, apertando a Paladina contra seu corpo, que debateu-se algumas vezes e cravou as unhas no antebraço do demônio. — Des-- desgraçado!

— Você está me dando trabalho, Isolet Wild. Agora que estou com nossa amiguinha, vai se comportar, sim? Você não vai querer que algo aconteça à esse lindo rostinho, não é? — O caçador de recompensas apertou com uma das mãos as bochechas da meretriz, afundando os dedos finos no rosto delicado da mulher, forçando-a a fazer um bico com a boca. Fechando uma chave de braço no pescoço dela e apontando a arma para a cabeça da mulher, ele aproximou-se do rosto dela e lambeu-lhe provocativamente do pescoço até as orelhas, sussurrando ameaçador no ouvido da bela dama — Pena que você não poderá usar a sua aura protetora por algum tempo, minha cara.

Um silêncio mortal desceu sobre o cais. O som das ondas arrebentando na orla confundia-se com as respirações apressadas dos guerreiros, que ansiavam por uma resposta. Mesmo conhecendo a natureza selvagem do meio irmão, Lass não queria acreditar que ele pudesse fazer alguma coisa com a antiga colega. No entanto, as chamas demoníacas nos olhos dele, que brilhavam de excitação e ódio, deixavam claras suas intenções. Ele sorria como uma fera com a bela dama nos braços, subjulgada pelo cano de sua arma.

— Sejamos razoáveis! Não estou pedindo demais: só quero aqueles malditos papéis, e a putinha vai embora ilesa. Vamos, Lass! Apareça! Vamos ter, de homem pra homem, uma conversa franca...


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Notas finais do capítulo

Tenso, não acham? Não deixem de acompanhar o desenrolar dessa luta nos próximos capítulos. Enquanto isso, caros leitores, têm ideia do que pode ser esse pacote que Lass tanto guarda?Não desanimem, pois a continuação dessa história já está pronta, e para compensar nosso atraso, será postada em breve. Vejo vocês depois! (LichiaW)



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