King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 5
Mágoas e Machucados


Notas iniciais do capítulo

Hoy! Estamos felizes que esteja aqui conosco, de novo! Nos empolgamos bastante, e os capítulos estão ficando cada vez mais extensos e complicados. Nós estamos gostando bastante desse crescimento (monstruoso e) progressivo. Esperamos que você se divirta assim como nós nos divertirmos escrevendo!



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Depois de dois dias andando no deserto sem trocar mais palavras do que o essencial, finalmente chegaram nos limiares da outrora grandiosa Floresta Élfica. Era unanimidade dizer que a vista os surpreendera depois de tantos anos — e não para o bem. Na verdade, nem mesmo sabiam se aquilo ainda podia ser chamado verdadeiramente de floresta.

Muitas das majestosas árvores se foram, em parte pela devastação dos anos de guerra, em parte pelo massacre élfico que ocorrera em tempo não muito distante. Um terço de área verde intocada foi o que restou — um santuário recluso entre a terra mal tratada e os restos de madeira e pedra que sobraram. Tudo parecia derradeiro, frágil e deslocado. Um aperto surgiu no coração dos dois viajantes, mas ninguém falou a respeito. Honrando a briga que haviam tido, nem mesmo olharam-se.

— Vamos. — Ela disse, seca, e atiçou o cavalo a descer a colina onde estavam.

— Elesis…

Ronan tinha muitas coisas na cabeça naquele momento, e a maior parte delas era pertinente à grande conclusão que chegara dois dias antes: a de como era um idiota. Por tal fato, tinha se contido com medo de despertar mais a fúria de Elesis todo aquele tempo, mas o silêncio estava lhe matando. Ela nem sequer o ouvia. Suspirou ruidosamente e se pôs a segui-la para dentro da diminuta floresta.

Assim que botou os pés naquele lugar — em sentido figurado, pois estava montado em um belo alazão castanho —, Ronan percebeu que havia algo errado. A luz do dia parecia ter diminuído drasticamente, algo muito estranho, levando em conta a quantidade e a distância das árvores. Era como se de repente tivessem filtrado o sol com uma manta enegrecida. No entanto, Elesis parecia não notar. Ou não queria notar. Ele respirou pesadamente; aquela situação era um tanto ridícula, dado a idade deles.

Trotaram até o crepúsculo, quando ela finalmente decidiu que estava na hora de descansar e comer um pouco, a despeito das tentativas dele por toda a tarde de convencê-la a parar. A guerreira armou a tenda habilidosamente (mesmo com as avarias decorrentes do acontecimento peculiar de dois dias antes), mas demorou muito tempo para acender uma fogueira decente. O draconiano não se arriscou a ajudá-la dessa vez. Ao invés disso, desatou sua trouxa da sela do cavalo e ficou um tanto desapontado ao perceber que carregava a égide, um suprimento de água pela metade, duas maçãs e algumas roupas sobressalentes. Pegou-as e improvisou um travesseiro. “Isso vai ter que servir”, pensou. Era uma espécie de acordo tácito entre eles: ele dormia fora barraca desde o dia do incidente.

O cair da noite ali era um tanto fantasmagórico: o farfalhar das folhas contra o vento causava um zumbido incômodo, e os barulhos característicos de uma floresta estavam ausentes. Nem um grilo sequer cantava, Erudon observou. Situação muito estranha, mesmo para uma área devastada como aquela.

— O ar está espesso... tem algo errado nesse lugar. — ele disse, alto o suficiente para que ela escutasse-o da tenda. Baixou o tom, e contendo-se, murmurou — Pelas deusas, espero que você tenha me ouvido.

Algo incomodava-o em estar sob aquelas árvores. Parecia como se uma energia sinistra nelas estivesse fazendo-as fechar-se sobre eles, sufocando-os. Era algo sutil para alguém leigo em magia, mas extremamente inquietante para qualquer pequeno iniciado. Ele pegou uma maçã. Achava melhor não se afastar do acampamento aquela noite. Sua má impressão ia além do lugar…

Apesar dos temores, ele estava muito cansado e havia dormindo muito mal nas últimas noites. O sono não demorou a chegar, e com eles, os sonhos. Logo os dois amigos estariam em terras muito distantes, além de qualquer mapa poderia ser capaz de apontar.

“Elesis, minha criança!” Uma nota de desespero na voz grave de Elscud impulsionou ainda mais a garota de gênio forte em sua corrida para alcançá-lo.

Seu pai estava sendo tragado por um buraco negro criado por uma Cazeaje insana, de risos medonhos e intenções hediondas. Por mais que Elesis tentasse, não conseguia alcançá-lo.

“Estou indo, pai!” Ela respondeu, dando o máximo de sí na corrida, mas sem sucesso.

“Elesis!!!” Mas era tarde demais. O corpo dele sumia na escuridão, sendo consumido e estraçalhado por mãos sanguinárias e violentas que o puxavam-no ao abismo.

Ela acordou gritando novamente. Outro pesadelo. Que inferno.

Sentou-se e levou uma mão à cabeça. Suava frio e tremia, como de praxe. Lágrimas molhavam a face, e o aperto no peito também estava presente, dando uma impressão horrível de que iria desmaiar.

— Ron--

Ela parou no meio da fala. Instintivamente, ia chamar Ronan, mas ele não estava lá. Via-se completamente sozinha, pela primeira vez em tempos. Estava tão acostumada assim à sua presença? Precisava tanto assim de conforto? Uma sensação de ódio e desespero começou a dominá-la.

Estaria se tornando fraca?

Ela afastou violentamente o tecido da barraca apenas para dar de cara com um par de olhos azuis preocupados. O desespero se aquietou em seu coração. O ódio, não.

— O que está fazendo aqui?!

— E-eu ouvi você gritar e…

— Some da minha frente, Erudon!! — ele deu dois passos para trás, instintivamente. — Agora!! — rosnou.

— O que aconteceu, Elesis?!

Um momento de silêncio. Ela arfava, em posição de combate, e Ronan a fitava confuso, atento a qualquer movimento. Tragando o ar mais forte, lembrou-se das palavras de seu pai, muito tempo antes, lhe dizendo para controlar seu gênio. Céus, isso parecia fazer milênios…

— Vou procurar água. — e saiu apressadamente, nem sequer ouvindo o companheiro que gritava, dizendo que havia ido a um riacho não muito distante dali, na direção oposta. Aliás, a última coisa que queria ouvir naquele momento era a voz dele.

Estava emburrada com ele havia uns três dias, desde que ele teve a ousadia de profanar o seu diário. Aos homens poderia até parecer besteira o seu mal humor descontrolado, mas somente alguém que já teve os seus pensamentos mais íntimos descobertos por outrém pode entender a vergonha que sentia. Achava-se sobretudo ridícula. Primeiro, por ter confiado que ele não mexeria em suas coisas; segundo, porque não sabia até onde ele tinha lido; terceiro, porque sabia que estava sendo infantil em tratá-lo daquele jeito, mas também não conseguia perdoar o ato, e quarto, e mais importante; estava extremamente embaraçada com as páginas e mais páginas escritas durante anos a fio.

Nunca fora boa com sentimentos: nunca conseguiu transmitir aos outros o que se passava em sua cabeça, e por isso era taxada como grossa, ou insensível. Elesis sempre fora tácita e militar demais, mas no fundo ainda era um ser humano, e precisava desabafar o que sentia de alguma maneira. Sem falar que era absolutamente imprescindível que as batalhas fossem registradas. E havia também o fato de que não podia dar-se ao luxo de botar em xeque sua liderança ao expôr seus pensamentos, e a única maneira segura que encontrou foi a estéril e fria escrita em um diário. Esse era o único jeito possível para expressar sua individualidade sem, ao mesmo tempo, ficar em evidência.

No entanto, parecia que não era mais um meio seguro, afinal.

Quando se deu conta, havia parado no meio do caminho e, com raiva, socara uma árvore inocente, que rangera e deixara cair algumas folhas. Havia isso também. Era rústica, forte. Quem imaginaria que dentro da casca dura que ela cismava em apresentar havia algo um tanto sentimental, como qualquer outra pessoa?

Mas Ronan... ele teria feito aquilo por mal? Sentia-se traída. Ela confiava nele há muitos anos, e agora parecia que a relação deles estava frágil quanto um castelo de areia: um vento mais forte ou uma simples marola iria fazer com que tudo fosse abaixo.

Um ruído tirou-a de seus pensamentos. Ao olhar para o lado percebeu um animal passando rapidamente por entre as árvores e voltou de seus devaneios; queria algo substancial para o almoço, afinal. Pegou a adaga que sempre carregava e foi atrás do pequeno alvo. Era um coelho, logo percebeu, e dava algum trabalho para acompanhar, mas nada muito complexo. Não, seria um insulto! Ela ainda era a Justiceira de Canaban, não uma aprendiz de caçadora qualquer. Atirou a lâmina de forma certeira e ouviu o gemido estrangulado que a criaturinha soltou ao ser atingida. Perfeito. Era assim que se matava uma presa.

Essa reflexão entristeceu-a logo em seguida. Era a isso que se resumia? Uma perita em matar suas presas? Tão rápido quanto veio, tratou de afastar o pensamento e seguiu para o lugar onde o coelho supostamente caíra. Afastou plantas e algumas trepadeiras e encontrou o animal caído, com uma mancha vermelha nas costas, e a adaga ao seu lado. Ele ainda se movia, porém de modo débil. A gladiadora avançou mecanicamente para terminar o trabalho, mas a sua caça levantou-se num pulo, assustada e arisca.

— Mas... que droga é essa?! — com seus reflexos rápidos, retomou a adaga e a postura de ataque.

O coelho tinha olhos estranhos e brilhantes, e parecia ficar maior e mais forte.. Havia alguma coisa, algo inexplicável, migrando para ele. Uma espécie de energia. O ser grunhiu um chiado tosco, e Elesis riu.

— Uuh, você quer brigar?! — e girou a adaga na mão — Então venha!

Ronan, enquanto isso, desmontava o acampamento (o que consistia em guardar as roupas que usara como travesseiro) pensando se Elesis tomaria como ofensa se ele desarmasse sua barraca e guardasse as coisas. “Vai pensar que estou bisbilhotando de novo”, suspirou. Estivera também ensaiando alguns pedidos de desculpas, muito embora soubesse que ela sequer iria ouvi-lo.

Quando terminava de amarrar sua trouxa à sela novamente foi que viu a dona de cabelos de fogo e temperamento explosivo vindo naquela direção. Apurando o olhar, percebeu que não eram só os cabelos — ela de fato tinha manchas vermelhas cobrindo o braço direito e partes do torso.

—...Elesis...!

— Um coelho endemoniado. Parece que o mal não foi totalmente banido de Ernas. — sorriu sarcástica — Não foi nada demais. — e fechou a cara — E não encontrei água para aqueles lados.

— Seria melhor deixarmos esse lugar o mais rápido possível…

— O quê? Ora, o grande Erudon está com medo?!

— Pelo amor de Lisnar, Elesis! Olhe ao redor! Aqui é totalmente hostil, se ainda não percebeu. Se não por mim, veja por você mesma! Não é seguro, vamos sair daqui antes que algo aconteça.

— Ah, não me venha com desculpas. — virou-se, pronta para dar as costas ao parceiro, que segurou-lhe o punho para impedir que ela o deixasse — Me larga! — e desvincilhou-se do rapaz, de forma bruta.

Foi de repente. Um estalo muito alto, uma sombra, o ataque. Sem chance de reação. O baque surdo de um corpo no chão, pressionado por um outro muito maior. Um enorme lobo, vindo de não se sabe onde, pulou sobre Elesis e estava prestes abocanhar-lhe a jugular. O cavaleiro também foi rápido: com a tirfing já em punhos, avançou para a fera, que, por um instante, virou a enorme cabeça em sua direção. A cena era chocante. A criatura era algo parecido com um lobo, mas muitíssimo mais diabólico. Os caninos eram enormes e amarelos, e aquele animal arregalava todos os dentes pontiagudos de maneira assustadora. Era também maior do que um lupino normal, e as patas apresentavam unhas do tamanho de mãos humanas. O pelo era escuro, mas havia também muito de vermelho; sangue apodrecido, de outras vítimas — e, talvez devido a isso, o cheiro que ele exalava era repugnante. Dava-se para notar em seus olhos cinzentos e úmidos que era a morte que ele buscava. Não por fome, ou por necessidade, mas pelo simples prazer de matar. O Inquisidor hesitou por um segundo, diante da cena excêntrica. E, nesse pequeno instante, a fera voltou-se para a vítima que tinha sob as patas, e afundou profundamente as garras e dentes no corpo da dama.

Elesis gritou de dor, e aquilo despertou o herói, que pulou na criatura e afundou-lhe a lâmina da espada em suas costas; porém o animal se desviou, de súbito, e a espada não penetrou mais que alguns centímetros. Entretanto, o suficiente para tirar um pouco de sangue viscoso do monstro, que grunhiu com raiva. Novamente, Ronan avançou para a fera, e esta desviou a atenção que tinha na ruiva para o homem que havia salvado a vida dela — ao menos, por enquanto. O arcano conjurou uma magia rapidamente, instantes antes do animal tentar devorá-lo.

— Lâmina Crescente!!

Do solo, uma lâmina arcana brotou bem abaixo de onde estava a monstro, cortando-lhe uma das patas. Este, por sua vez, rugiu, num misto entre dor e ódio. Não deu-se por vencido: ainda acometeu alguns ataques ferozes com a pata ainda boa, e lançou-se contra o rapaz mais uma vez, pronto para arrancar-lhe a cabeça com uma mordida. Instintivamente ele deu um passo para trás, para agachar-se e enfiar a espada de cima para baixo no ventre da criatura. Porém, tropeçou em uma raíz, que não estava alí momentos antes, e caiu no solo.

Chance perfeita para a horrenda visão oriunda de Hades cumprir com seus planos de morte. Porém, nada conseguiu fazer contra o guerreiro. Um sabre havia sido atirado contra seu flanco, e o agressor caiu de lado, ganindo. O homem olhou, pasmo, para a mulher que cambaleante estava ainda com o outro sabre em punho. Notava-se que havia dois cortes profundos na região dos ombros e uma fenda grande e vermelha, de onde brotava muito sangue, na região das costelas. Mesmo assim, ela incitava-o à briga, assoviando e fazendo barulho. Ronan se lembrou, ao ver a cena, de uma das coisas que mais admirava em Elesis: esse espírito guerreiro perseverante, que nunca desistia.

Acuado, o animal eriçou ainda mais os pêlos. Estava com ferimentos na pata e uma arma fincada em seu corpo, mas parecia determinado. Uivou alto e de forma funesta, o que fez ambos levarem as mãos aos ouvidos em uma tentativa de amenizar o som ensurdecedor. Os cavalos, já confudos e amedrontados da agitação, empinaram; a montaria do rapaz escapou, embrelhando-se no mato. Mas o outro equino, desesperado, deu um coice na cabeça do lobo, que ficou momentaneamente desnorteado. Isso deu a oportunidade que Erudon procurava:

— Gelo glacial!! — ele ergueu a mão na direção do monstro e o ar resfriou brutalmente, espiralando e formando uma orbe de energia glacial que o arcano atirou com todas as forças. Confuso como estava, o demônio não teve chance de escapatória; foi atingido bem no focinho úmido, que começou a cristalizar rapidamente. O gelo subia e congelava os pelos de sua face grotesca, fazendo com que fosse tomado pelo desespero e tentasse conter o avanço com as patas, assim como um cachorro faria. Isso apenas fez com que estes membros começassem a cristalizar também, assim como seu peito e suas pernas. Ele cambaleou bobamente para os lados, tentando se livrar do feitiço. O sabre ainda fincado em seu corpo também congelou, e congelaria qualquer um que tocasse nele para removê-lo.

— Elesis! A magia não vai durar muito tempo!

— Gah!! — ela cuspiu um pouco de sangue, e era óbvio que não teria condições de sair dali com as próprias pernas. Ronan se adiantou para carregá-la, ao que ela resistiu por pouco tempo, até que uma pontada aguda nas costelas fizesse sua birra cessar. Ele a pegou no colo e por um instante achou que iria ceder, percebendo que seus braços fraquejavam, mas se manteve firme por seu senso de dever. Não importava que suas mãos estivessem queimando pelo uso da magia; ele a tiraria dali.

O guerreiro a levou até o cavalo e a pôs sentada, desatou rapidamente o nó que prendia o quadrupede à uma árvore, e montou nele logo em seguida, pegando as rédeas com um pouco de dificuldade, já que Elesis estava na parte da frente da garupa. Envolvendo os braços na moça para que ela não caísse, e, dando uma última olhada no bicho, para certificar-se de que ele ainda estava aprisionado no gelo, bateu as rédeas com força, incitando o cavalo a correr. Logo já estavam longe dali, cavalgando entre galhos que arranhavam seus rostos e raízes serpenteantes cada vez mais escassos, até que a muralha branca de Serdin apareceu no horizonte muitíssimo ao longe, como uma linha branca fina, e souberam que logo mais estariam a salvo.

— Minha barraca…

— O quê?...

— Você deixou... a minha barraca lá, seu!!... argh! — a Gladiadora estava pronta para meter um soco no peito do Defensor, mas a dor lancinante fez com que se calasse e gemesse como um animalzinho indefeso, junto a lágrimas involuntárias que rolavam em sua face, apenas para deixá-la mais irritada.

— Eu compro uma nova pra você. — uma maldita barraca era tudo o que ela se preocupava naquele hora tão fatídica?

— Não... não é nada disso, seu... você não entende nada, bastardo! A minha barraca... e... um dos meus sabres... — lastimou-se, baixinho. Aquele idiota nunca entenderia que parte do seu vínculo com o passado havia se perdido naquele momento.

Ele emudeceu, e concentrou seus esforços para tira-los dali primeiro. Ouvira que “não entendia nada” diversas vezes naqueles dias; era melhor não argumentar. Não agora, que ela estava ferida e não podia se esforçar, como certamente faria se ele insistisse.

Mais alguns minutos e o alívio veio agraciá-los como uma brisa fresca soprando em campo aberto e ondulante. Estavam fora da Floresta Élfica em tempo recorde. Por Ronan, ele iria até Serdin, e lá chegaria antes do pôr-do-sol, para que pudessem cuidar adequadamente da amiga o mais rápido possível. No entanto, a situação de Elesis era mais grave do que aparentava em princípio, e foi ela quem, sem querer, frustrou os planos: o sangue que saía do peitoral chegou a alcançar as vestes dele, mesmo com a donzela fazendo uma compressa improvisada. Tiveram que parar — precisavam de cuidados imediatos.

— Por que... por que parou?! — ela disse, com dificuldade.

— Porque você está sangrando e não vai chegar viva até Serdin desse jeito.

Saltou da montaria e pegou-a no colo, com cuidado, colocando-a no chão em seguida. O traje que ela usava estava ensopado pelo líquido vermelho, assim como seus cabelos revoltosos. Se por um lado eles precisaram afastar-se do local do ataque imediatamente, por outro havia sido uma falha enorme deixá-la sangrando por tantos minutos. Um fio vermelho escorria da boca dela, e seus olhos estavam somente entreabertos.

— Eu... estou bem, idiota... vamos... logo.

Falava de maneira sofrível, e cuspia sangue entre as palavras. Ele foi objetivo:

— Temos sorte das ataduras estarem aqui... teremos que tirar isso. — E apontou para as vestes superiores dela, em trapos.

— … Eu faço isso.

Mesmo com muita dificuldade e uma dor alucinante, ela tirou os trapos que envolviam-na, e cortou o resto com a ajuda de sua adaga.

— ...E seja rápido. ­— concluiu, arquejando.

Como o cavalo dele havia fugido com as roupas dele e sua égide, Ronan vasculhou as roupas limpas dela que ainda restavam e escolheu uma calça branca rasgada para limpar os ferimentos e fazer uma atadura nova. O tecido claro indicaria quando seria necessário outro curativo.

Ele limpou o local em que as garras haviam perfurado o melhor que pôde com a pouca água que havia no cantil. Era importante ver com clareza a extensão das feridas para saber quais tipos de magias poderia usar, e também quais emplastos e remédios poderia ministrar para potencializar a cicatrização. A situação era pior do que imaginava: os dois cortes no ombro eram feios, mas o problema mesmo era a fratura nas costelas. Provavelmente uma delas fora quebrada, e era possível ver o branco do osso em evidência no meio da carne rubra.

Em pouquíssimas ocasiões chegara a ver a amiga naquele estado. Mesmo nas piores lutas ela raramente ficava em situações tão dramáticas. Entristeceu-se e arrependeu-se por ter aquele maldito momento de hesitação; a culpa de ela estar daquele jeito era dele, afinal. Se ele tivesse agido como um homem e rapidamente aniquilado o problema, a espadachim não estaria perecendo em sua frente naquele instante. A respiração de Elesis estava cada vez mais fraca, e um pensamento sombrio passou pela cabeça do cavaleiro. “Será que ela--...” Não, absolutamente, não. Ele não deixaria que aquilo acontecesse. Não com ela, não aquele dia.

Mesmo estando muitíssimo cansado pelo Gelo Glacial, não poupou esforços para minimizar a dor da companheira com a magia arcana que sabia, além de também estancar o sangue e tentar melhorar as enormes crateras vermelhas que sobressaíam de sua pele outrora diáfana. Ela tinha razão. Alguns dias atrás, ouvira no deserto algo que considerara um insulto, na ocasião: “Ronan, você não é um mago tão bom assim!”. Mas agora constatava que não era realmente muito eficaz. Sua magia era, em maior parte, ofensiva; nunca preocupara-se muito com a arte curativa, pois sempre teve como apoio outras pessoas para isso, como Arme, ou Amy, ou mesmo Ryan. Mas o grande Guerreiro de Canaban só tinha encantos de cura limitados. Poderiam salvar uma vida, mas não faziam exatamente um bom trabalho. Como pôde deixar uma falha tão grande dessas passar?

Estava com o orgulho ferido, e ainda mais ferida estava a sua alma. Como não percebera a aproximação de um ser tão poderoso e maligno? E pior: um feitiço que antes não lhe cansava, como o simples Gelo Glacial, agora deixava-lhe exaurido. Estava ficando velho, fraco e enferrujado, e nem ao menos notara. Já não tinha mais o vigor de antes, os reflexos tão rápidos, ou... ou até mesmo a coragem do passado.

Dobrou-se sobre ela e recitou, durante muito tempo, todos os feitiços que poderiam ser úteis. Não era fácil lembrar de coisas que não usava há tanto tempo; às vezes tinha que parar no meio de uma citação para voltar e corrigí-la. Outras magias ele só conhecia a fórmula em Élfico Antigo, e teve que fazer um enorme exercício mental para que todas as palavras — pelo menos as essenciais — pudessem voltar à memória. Felizmente, além de magias falhas, ele sabia sobre ervas o suficiente para fazer algumas compressas e aplicações.

— Ronan... — saiu como um sussuro, e era visível que Elesis estava se forçando a falar.

— Não, não fale... poupe sua energia. Você vai poder gritar comigo o quanto quiser depois, sim?

Naquele momento, ele até acharia bem vindo que ela tivesse forças para fazer tal coisa. Ela o fitou com um olhar repreensor, como se houvesse alguma coisa que ele não estava entendendo.

— Serdin…

— Você nunca me escuta, não é? — ele girou os olhos. — Fique... hm?

Ela fechara os olhos e parecia ter adormecido. Não, não, isso não era uma boa coisa! Um nó parecia ter formado-se na garganta do arcano, e seus olhos umedeceram sem consentimento.

— Não, Elesis! Esqueça o que eu disse sobre se poupar, fale comigo!

— O que acha que eu... estou fazendo... idiota?

Ao menos, ela também havia percebido a gravidade da própria situação. Ronan tratou de recolher algumas ervas pela região e, junto com as que ele levava consigo, entre elas aquela florzinha terapêutica do deserto, amassou-as com o cabo da espada em uma cuia meio quebrada, formando uma pasta verde. Aplicou-a sobre o corpo da amiga, inclusive sobre os arranhões e mordidas do coelho, que começavam a apresentar inchaço e pûs. “Mas que diabos de floresta é essa? Nenhum animal pequeno causaria essas escoriações, e mesmo que acontecesse, é um absurdo que infeccionasse dessa forma.”, pensou. Após horas, finalmente havia acabado tudo o que poderia fazer, e nesse interim a noite havia chegado, envolvendo-os com seus braços escuros. Estavam em uma campina, no meio do nada, fugidos de uma besta oriunda dos piores pesadelos possíveis e cobertos de feridas, mas, mesmo assim, ele estava feliz: a respiração dela voltara ao normal, assim como suas faces voltaram a ser coradas, e os olhos, úmidos.

— Você vai ficar bem, sim? — e passou as mãos nos cabelos lisos e ensopados de sangue da amiga. A justiceira abriu um pouco os olhos vermelhos e grunhiu algo ininteligível e praticamente inaldível, mas num tom tranquilo; quase um suspiro.

Ronan encontrava-se sentado ao lado da ruiva, que ele acomodara nas outras roupas que achara. Seu desejo era continuar a mexer em seus cabelos e confortá-la de alguma maneira, mas não sabia se estaria tudo bem se o fizesse... Quase como uma resposta à seus pensamentos, ela estendeu a mão direita débilmente, e se agarrando a sua camisa, aproximou-se um pouco mais. Coisa de milímetros, mas o suficiente para deixá-lo surpreso e arrancar um sorriso. Talvez tudo ficasse bem, afinal.

Naquela noite, Ronan não dormiu. Ficou de guarda, vigiando devotamente a amiga. Elesis, por sua vez, teria uma noite repleta de sonhos — ou pesadelos.

Ele mal poderia saber, no entanto, que aquela seria a última noitada tranquila que teriam. Infelizmente, no dia seguinte as coisas mudariam, e para muito pior. O destino lhes reservava pregar uma grande — e fatal — peça, cujas consequências futuras eram mais graves do que qualquer um poderia imaginar.


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Notas finais do capítulo

Ooh-oh... As coisas ficaram bem complicadas para nossos heróis, hm?(PS: A cena de ação foi incrível pra descrever; e o melhor: a fic agora pode ser encaixada nesse gênero, hoho)Preparamos uma surpresa especial para o próximo capítulo, por isso, atualizaremos só semana que vem. Mas temos certeza absoluta que vocês irão gostar. Está imperdível!Não deixem de comentar, criticar ou mandar sugestões!



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