King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 6
Encontros e Recordações


Notas iniciais do capítulo

Ei, olá! Este foi um dos capítulos que mais colocamos informação até agora, e esperamos que isso não seja um problema. Afinal, os próximos capítulos só tendem a aumentar! rs. Por esse motivo, também, podemos demorar mais tempo para postar aqui, mas não é nenhum hiato, posso assegurar.Agora apertem os cintos por aí, e acompanhem! ~Sitriga



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As ordens dadas cerca de um mês antes haviam sido claras. “Encontremo-nos, neste mesmo lugar, no primeiro dia da próxima vez que a lua estiver cheia.”. E agora, na data especificada, ela estava de pé nos limiares da clareira e oculta na penumbra de uma árvore frondosa, à espera que suas ordens fossem acatadas.

Observou a lua, que apresentava uma doentia aparência amarelada, e já chegava perto do zênite em sua caminhada noturna. O dia não tardaria a nascer, e ninguém havia chegado ainda. Ela ponderou, por um momento, se não havia precipitado-se, e, sem intenção, mandado seus próprios homens para perigos extraordinários — ou quem sabe, até a morte. Por mais que eles tivessem lutado para ter a confiança e a lealdade do maior número possível de vilas e reinos, aquele continente ainda era extremamente hostil. Tratou de tirar rapidamente esses pensamentos nebulosos da cabeça. Afinal, os companheiros representavam nada menos do que a elite de todas as forças possíveis — seja na arte da magia, seja na arte das espadas — que haviam sobre a terra. De certo o atraso deles era explicado, e logo chegariam ao encontro.

E foi o que de fato aconteceu. Uma por uma, sombras encapuzadas apareceram, vindas por entre as árvores, seguindo o leito do rio próximo, ou até mesmo pelos ares, voando. Pela primeira vez em semanas se reuniriam para traçar o futuro.

Ela fitou a todos — que estavam em mais imperioso silêncio — com um rosto sombrio de seriedade. A Maga, a Arqueira, o Drúida, o Arcano, o Lutador, a Dançarina, o Gladiador, e os membros mais novos, o Profano, a Invocadora, a Sacerdotisa, a Raposa Azul e a Paladina. Ainda faltava um. O detentor da missão mais árdua e delicada e também de todos os segredos que ela revelaria. Era de suma e vital importância o seu relatório para o começo e término daquela misteriosa assembléia.

Aguçou todos os sentidos, atenta à qualquer barulho, por menor que fosse o ruído. Somente o farfalhar triste das folhas, a corrente tranquila das águas ao redor e a respiração pesada dos recém-chegados podiam ser ouvidos. Ninguém trocava nem uma única palavra. De repente, após os infindáveis momentos de espera, a mulher sentiu uma fina lâmina no pescoço.

— Deveria ter mais cuidado. Se eu fosse um inimigo, estaria morta agora. — sussurou.

Ela sorriu. Ele era realmente o mais indicado para o que tivera de ser feito. Discreto, invisível e indetectável, o Ninja havia chegado. Ela pediu de forma reservada à Maga uma barreira de proteção ao redor do grupo, para que nada que eles conversassem pudesse ser ouvido de fora.

— Companheiros! — ela começou, com voz estrondosa — Ou melhor dizendo... amigos. Estamos hoje aqui, reunidos sob a benção de Armenian, a deusa da sabedoria, para discutirmos sobre nosso futuro, que se entrelaça também com o de toda Ernas. O mundo está indo para caminhos obscuros. Temo que, em breve, será Ernasis, a deusa da guerra, a nos abençoar e proteger.

“O objetivo das nossas missões nesses últimos dias foi averiguar os fatos e conhecer a melhor a terra. Alguns de nós foram mandados aos grandes reinos deste lugar, para que eles viessem selar acordos de paz e união conosco. Outros, foram para as vilas próximas, para saber como o povo está se comportando diante da situação de tensão na qual nos encontramos. E muitos outros, ainda, andaram por estes territórios, anotando com cuidado cada planície, estepe, floresta, rios, lagos, enfim, toda a geografia que Arquimídia tem a nos oferecer. E uma pessoa tivera ainda o sangue-frio e a ousadia de penetrar no seio do inimigo e verificar quais são os passos de Bardinard.”

Ela respirou fundo, para que suas palavras pudessem ser absorvidas.

— É chegada a hora de reagirmos: Astaroth enlouqueceu. Com sua ânsia em tornar-se o próprio Criador, ele já conseguiu criar a Pedra das Almas, juntando as Essências Demoníacas e as Divinas, como nós vimos no... no incidente do Expresso Hades — olhou de soslaio para o rapaz de cabelos azuis, que remexeu-se um pouco, ao relembrar o episódio da morte do melhor amigo, Harpe. Ela continuou, cuidadosa — Segundo o que descobrimos até agora, se ele juntar as Pedras ao Martelo de Ernas, então será o fim de tudo, de um jeito ou de outro. Ou ele realmente tornar-se-á um deus, ou então nosso mundo estará fadado à destruição, assim como Calnat.

“Precisamos reagir, Grand Chase. Essa é uma empreitada grandiosa demais, até mesmo para nós. Necessitamos juntar nossas forças com um exército, caso contrário, Bardinard nos esmagará, como mostrou que podia fazer. Agora, quero que cada um de vocês faça uma síntese sobre a missão que cumpriram. O relatório extendido, com todos os detalhes, vocês entregarão diretamente à mim, assim que acabarmos aqui.”

Cada membro trouxe seu próprio relato, mas a ânsia de compartilhá-lo não abateu ninguém em particular. Por baixo dos capuzes, um olhava para o outro desconfortável, esperando o outro tomar a iniciativa, até que Sieghart resolveu se pronunciar, revelando sua face sempre sarcástica.

Falou resumidamente sobre a empreitada ao reino de Mjolnir, onde conseguiu, através da verdadeira versão dos acontecimentos passados em Calnat, o apoio dos anões. Ainda que estivessem desconfiados sobre o sucesso da investida contra Bardinard, enviariam algumas tropas e um número considerável de recursos mecânicos e bélicos caso uma guerra fosse oficialmente aberta.

Depois foi a vez de Lire, que explicou que conseguiu o apoio dos Elfos Negros, que disponibilizariam arqueiros e magos se ocorresse qualquer conflito. Ryan emendou logo em seguida, falando com maestria sobre a fauna e flora do continente em suas diversas regiões, acompanhado por Jin, que concluíra que haviam sete vilas independentes de anões e outras criaturas civilizadas por toda a extensão de terra, além de Mjolnir. Arme, por sua vez, comentou sobre as poderosas barreiras mágicas que havia encontrado por todos os lugares.

Amy, Lin, Azin e Holy comentaram sobre a recepção que tiveram nos vilarejos que encontraram, e de como os habitantes reagiram ao saber estarem diante de um perigo próximo. Muitos camponeses estariam dispostos a doar parte das colheitas para a já famosa Grand Chase, se ela finalmente livrasse as pessoas dos monstros que assolavam-nas.

À Rey e Dio, coube a missão de viajar e descobrir a situação dos Portais Dimensionais. Segundo o membro dos Burning Canyon, eles estavam extremamente instáveis, e mesmo algumas fendas foram abertas em Ernas. A filha dos Von Crimson rematou falando da situação política de Elyos, que estava igualmente delicada e inconstante. Ainda que nada fosse falado oficialmente à respeito, todos estavam alvoroçados com a possível nova guerra interdimensional que se aproximava. Se o que Sieghart disse sobre Duel Pon Zec estar trabalhando junto com Bardinard for verdade, então o cenário de seiscentos anos atrás se repetiria: de um lado as famílias conservadoras, contra os humanos, e de outro, as famílias liberais, à favor deles.

Por último, Lass suspirou, tomando a palavra. A sua missão fora, de longe, a mais arriscada e importante, e somente alguém tão habilidoso quanto ele, o líder dos Assassinos da Cruz de Prata, poderia ter cumprido com louvor o desígnio que lhe foi imputado. Depois de uma pequena pausa onde todos observavam-no, tensos, ele disse sem mais delongas o que vira. Astaroth já avançava consideravelmente em seus planos, e recrutara centenas de goblins, humanos e monstros para um poderoso exército. Mais e mais criaturas chegavam todos os dias para engrossar as fileiras inimigas, e em breve marchariam por toda a extensão de Arquimídia e Áton, e depois iriam para Ellia, Terra de Prata e Vermécia. Comandados por Astaroth, invadiriam mesmo Xênia, para que ele tomasse posse do trono dos deuses, que acreditava ser seu por direito.

Todos retesaram ao ouvir essas palavras. O tamanho de tanta loucura era desmedida e inacreditável. O Ninja, no entanto, não se comoveu, despertando ainda mais a atenção de Elesis.

— Há mais, não é?

Ele assentiu, e falou que os portais dimensionais já estavam perto de serem abertos, corroborando com o que os demônios haviam falado ainda antes.

— Muito bem. Essa reunião deu muitos frutos. Frutos sombrios, é verdade, mas são o primeiro passo para nossa vitória.

“Nós também precisamos de um exército, Grand Chase. Por melhores e mais fortes que sejamos, não há como um pouco mais que meia dúzia de pessoas enfrentar hordas demoníacas, humanas, de goblins, monstros e também Duel e Bardinard ao mesmo tempo. Fomos fortalecidos em nosso treinamento com Caxias, mas mesmo nós temos nossas limitações, e aquele louco aspirante a deus sabe muito bem disso. Talvez ele até sucumbisse sob nosso julgo, se fôssemos só ele contra nós. Sabendo disso, ele recrutou pessoas sob seu poder para nos atrapalhar. Não podemos ficar nos lamentando, agora. É tempo de reagir! Se não agora, então nunca teremos outra chance, e Ernas será consumida pelo caos.

Arme ‘Violet’ Glenstid e Ronan Erudon. Quero que vocês falem com as rainhas Annyu e Enna e ponham-nas à par de tudo o que elas não ainda não sabem. Precisamos que Vermécia e Serdin mandem os Cavaleiros Vermelhos, a Guarda Real e os Magos Violetas. Mesmo que muitos deles tenham morrido quando aquele bastardo “testou” a Pedra das Almas em nossos reinos, ainda assim precisamos do maior número possível de guerreiros aqui. E Erudon, você pode ser um exímio draconiano, mas não pode mais dar-se o luxo de gastar sua energia vital para invocar seus dragões. Peça para que seu dragão mais poderoso tire o traseiro de Vermécia e voe para cá, para lutar fisicamente ao nosso lado. Vocês conseguem fazer isso? Há algum tipo de magia para esse feito, de conversar à tão longa distância?”

Ambos asquieceram, fazendo-a prosseguir.

— Lire Eruel e Ryan Woodguard, preciso que vocês entrem em contato com os todos os elfos que conseguirem. Lire, faça com que as ilhas Eyruell mandem os melhores arqueiros, besteiros e manejadores de gakkung. Fale também com Galadriel e peça imediatamente que ela mande elfos negros pra cá. Ryan, alerte à todos os druidas do que está ocorrendo. Preciso também que você converse com os animais e faça com que eles nos ajudem.

“Amy ‘Plin’ Uruha, a Sistina. Volte imediatamente à Xênia e previna os deuses do que está ocorrendo. Junte o máximo de Essências que conseguir, precisaremos de toda a ajuda possível.

Ercnard Sieghart, a lenda. Você goza de muita fama por todo o mundo, use isso para alguma coisa útil. Corra até a Vila Kungji e sele um acordo com o Ancião. Avise-os da guerra iminente e monte uma tropa de magos e guerreiros Kungjis. Consiga também que as vilas humanas e de outras raças juntem-se à nós. Não há habitante de Ernas que já não tenha ouvido falar sobre você, creio que usar sua influência não será tão complicado.

Jin Kaien, volte para os anões e avise Aron de que precisaremos em breve de tropas, munição e suprimentos. Deixe bem claro que usaremos elfos em nosso exército. Sieghart explicou a eles a verdadeira história que permeia essa terra, mas é sempre bom deixar avisado de que os antigos inimigos não são mais uma ameaça.

Lass Isolet, precisarei de seus serviços de espião em breve, mas, por enquanto, ficará comigo para organizar os soldados que chegarão. Se possível, faça com que a guilda de assassinos a qual pertence venha para cá.

Dio Burning Canyon e Rey von Crimson River, retornem à Elyos e tragam para cá as suas famílias e todas as outras que sejam simpatizantes à nós, humanos. Eu sei que isso há de ser difícil, visto que outros demônios estão juntando-se aos nossos inimigos, mas é necessário que vocês façam isso.

Falando nisso, é sabido que um tal de Andarilho, também conhecido como o Peregrino, ou o Errante, vem andando pelo mundo e, aparentemente, até onde pudemos constatar, ele tem como objetivo destruir a espada de Duel. Se ele não luta contra nós, então ele luta por nós. Se, por acaso, depararem-se com ele, tratem-o como aliado e tentem trazê-lo para cá. — Elesis apertou os lábios. De certo que ele poderia ser um ótimo aliado, mas o seu interesse nele era diferente. Lembrou-se com clareza do dia no qual viu o estranho usando o Grande X, o golpe da família Sieghart.

Voltou rapidamente para as palavras inflamadas de paixão.

— Holy “Lime” Serenity, Azin Mujin e Lin da Vila de Gaon — ela olhou para os membros novos, com um certo desconforto — à vocês, fica a missão de conseguir o maior número possível de camponeses, suprimentos, armas, comida e cavalos.Travaremos luta nas Planícies de Artione, perto das ruínas de Calnat — onde Bardinard se reúne com os seus — que é o local que ocorreu a Primeira Guerra Mágica; precisaremos de recursos quando chegarmos lá. Holy, chame também os paladinos da Ordem da Luz, deixei-os à par do que acontece.

“E, por último: Infelizmente, nossa amiga Mari sumiu nas ruínas de Calnat. Ela foi uma ajuda inestimável, e lamento muito que tenha partido assim, sem mais nem menos. Porém, encontrei uma... pessoa... que pode ajudar-nos. O seu nome é Lupus Wild, um demônio de Hades, e é um caçador de recompensas.”

Nisto, uma figura até então oculta, saiu por dentre as árvores com duas pistolas em mãos, o que causou alvoroço por parte dos dois outros demônios presentes.

— Não se preocupem, ele não irá machucar vocês. Aliás, ele não é um membro da Grand Chase. É somente um... aliado temporário. Fiz um contrato com ele, onde nos ajudaria em troca da cabeça de Duel, o Vingador. E creio que vocês não terão problemas com ele, nem ele com vocês, fui clara? — olhou severamente para todos.

Elesis Sieghart jogou a cabeça para trás, inflando o peito para finalizar todo o raciocínio. Expirou, e fitou as estrelas, decidida.

— Olhem pro céu; Ernasis está mais brilhante que Agnécia. É chegada a hora de uma Grande Guerra. Maior até do que a Primeira Guerra Mágica. Porque, meus amigos, agora o conflito englobará não só Arquimídia, mas também todos os outros continentes. Essa será a derradeira batalha contra o mal. Essa será a Primeira Guerra Mundial de Ernas.

Ninguém ousou dizer mais alguma palavra diante da gravidade da situação e da clareza do discurso. O ar se tornara denso com a realização de tudo que estava prestes a acontecer. A maior guerra que aquele mundo já vira... quantos viriam a perecer? Mesmo os vivos não seriam os mesmos, e desgraça se abateria nas vidas de muitos, talvez até dos presentes. Como se adivinhasse os pensamentos de todos, a líder fez o último comentário:

— Devemos lembrar, meus amigos, que lutamos por uma Ernas melhor, um mundo livre de ameaças ao equilíbrio das coisas. Esta é a missão mais nobre e também a mais difícil que poderíamos ter recebido, então tentem se manter com todos os membros no lugar, e vivos. ela sorriu minimamente Eu não lhes dou o luxo de morrer em batalha para manchar a nossa vitória.

–-

A mulher ruiva abriu os olhos, devagar, tentando acostumar-se com a realidade. Ela havia sonhado com o passado outra vez. Na verdade, não sabia se podia chamar aquilo de “sonho”; não havia nada de extraordinário ou fantasioso nele, somente a reprodução dura e fria de uma memória. Desde a Batalha Final, suas noites eram dividas entre pesadelos envolvendo mortes violentas de seu pai e recordações dos anos de batalhas.

Estava debaixo de uma árvore, que filtrava o calor e a luz do dia, e balançava as folhas com uma brisa suave. Não sabia de como havia parado ali. Sua última lembraça era de Ronan debruçado sobre ela, usando toda a sorte de magia arcana para curá-la das feridas que sofrera na batalha inesperada contra um lobo de aparência demoníaca que atacara-os na Floresta Élfica.

À sua frente havia uma campina verdejante, e não tão longe os muros de Serdin, brancos e imponentes, como sempre. Haviam se aproximado muito deles... O pensamento da jovem foi interrompido por uma ardência forte nas costelas, como se alguém de repente houvesse ateado fogo à sua pele. Ela sufocou um grito e gemeu, apertando instintivamente o abdômem com os braços, causando dor nas feridas dos ombros. Contorceu-se, e a cada segundo parecia aumentar o sofrimento.

— S-socor--!!... ugh…!

— Elesis? — ela ouviu o som abafado e confuso, mas ainda era seu nome. — Ah não, não! Está na hora de renovar a magia...

Um número considerável de palavras ininteligíveis para a ruiva veio a seguir, e a ardência e a febre que a haviam acometido minutos antes começaram a se dissipar lentamente, dando lugar a uma sensação entorpecida de conforto. Elesis finalmente conseguiu olhar para frente com clareza, para fitar Ronan de olhos fechados e expressão concentrada, entoando uma magia élfica antiga. “Droga” Ela pensou. “Devia ter aprendido élfico quando Lire se ofereceu pra ensinar.”

Não entendendo uma palavra do que ele dizia, ficou a observar a figura imponente do amigo até que acabasse o feitiço. Ronan abriu os olhos e depois um grande sorriso, e se aproximou um pouco mais.

— Você acordou! Desculpe por isso. Eu me descuidei um segundo e... como está se sentindo?

— Viva, eu acho. E com sono.

— Sente dor? - Ele pousou a mão sobre sua testa e bocheca, para medir a temperatura.

— Não.

— Ótimo. Vamos trocar essas bandagens.

Ele foi até a bolsa que restara procurar os materiais de socorro, e ela olhou para a própria ferida e o quanto o tecido branco ficara vermelho. Suspirou, frustrada.

— Aqui, pronto. Com licença.

Ela girou os olhos. Por todos aqueles anos, ele nunca deixara de ser um almofadinha de modos polidos e perfeitamente corteses. Não precisava pedir essas coisas. No entanto... Elesis ficou a observar ele tirando habilmente suas bandagens e sentiu um desconforto estranho com a cena. Não pela carne maltratada nem os pontos infeccionados, mas pelo toque leve e cuidadoso dele. Ela sufocou o sentimento, no entanto — não era uma adolescente idiota qualquer, que superestima esse tipo de coisa.

— Olha só, isso está melhorando. — ele disse, satisfeito, sem tirar os olhos do trabalho. — quase sem infecção...

Seguiu-se um silêncio perturbador entre os dois, onde ele trabalhava e ela observava, ambos ouvindo o barulho do vento e dos pássaros. A brisa era fresca e gostosa, e Elesis se perdeu em pensamentos e se esqueceu do tempo e sua passagem. Só voltou a Ernas quando percebeu que Ronan falava alguma coisa.

— ...Eu... é...

— Fale logo.

— …Me desculpe por ler seu diário. Espera! Você não pode se mexer desse jeito!

— Eu devia quebrar a sua cara. — ela trincou a mandíbula com força — E arrancar todos os dentes!

— Deixa eu falar... — ele terminou seu trabalho e a encarou, de olhos pedintes.

— Me dê um motivo!

— Estou tentando, mas você não deixa! Elesis, eu... perdão, eu só estava tentando ajudar.

— Aju--!!

— Eu queria saber o que se passava na sua cabeça! — ele fez uma pausa quando ela pareceu finalmente escutar. — Você estava tão triste, tendo aqueles pesadelos e... essa não é a Elesis que eu conheço. Você não ia me contar se eu perguntasse, o que eu fiz, aliás. Desculpe! Eu só queria entender, aí eu poderia arranjar um jeito de... te proteger. Fazer tudo ficar certo. Ou saber melhor como lidar quando você precisar de ajuda...

Elesis fechou os olhos e respirou fundo.

— Você não pode fazer tudo ficar certo. Não enquanto nós não... — sua voz começou a embargar, e ela se interrompeu violentamente, abrindo os olhos — acharmos meu pai.

— Talvez eu não possa mesmo. Mas posso te escorar quando seu fardo ficar muito pesado para carregar sozinha. — Ele tinha um sorriso compreensivo no rosto, e seus olhos brilhavam com uma chama verdadeira e calorosa. Elesis o fitou e não soube o que fazer. Parecia que agora eram seus sentimentos pulsando como feridas em seu interior... Ela se deixou largar e virou a face para o outro lado, os olhos distantes e a alma fechada.

— Em quanto tempo você acha que chegamos em Serdin?

— Acredito que em nove ou dez horas, galopando cuidadosamente.

— Perfeito. Chegaremos antes do anoitecer. Vamos preparar as coisas.

— Nós não vamos nos apressar no seu estado!

— A rainha pediu urgência, não foi? Além disso posso me cuidar melhor por lá. Vamos, me ajude a levantar.

— Não, senhora. — Ele cruzou os braços. — Não vamos sair. — escutaram ao longe alguns relinchos e o trote de animais — ...Talvez... Ei, espere aí.

Ele saiu correndo, e Elesis se virou para ver o que lhe chamava atenção: um pouco distante dali, havia uma caravana de mercadores, com três carruagens repletas de bens e vários guardas e cavalos. O guerreiro de Canaban correu, chegando até eles rapidamente, e começaram a conversar. O mestre da companhia era um senhor gordo de barba rala e com todos os trejeitos de um sapo estufado. Por vezes, durante a conversa, ele arregalou os olhos e abriu a boca, e a ruiva podia jurar que ele pegaria uma mosca a qualquer momento com uma língua extensível e pegajosa. Em um momento, pareceu que ia explodir de fúria, se expandiu e enrubesceu; em outro, quando Ronan lhe mostrou algo que ela não pôde ver, murchou e empalideceu, assentindo com a cabeça.

Ela não teria como saber, mas ali Ronan arranjara uma carona para dentro do reino, em troca de muitas moedas de ouro, e só não pagou muito mais porque ser um membro da Grand Chase ainda servia para alguma coisa útil, naqueles dias.

Chegaram ao portão principal de Serdin quando a luminosidade do dia despedia-se e dava seu lugar ao manto da noite. Talvez fosse por conta da estranha claridade oriunda das tochas, que já estavam sendo acessas nas guaritas, que o reino tinha uma aparência um tanto fantasmagórica. Porém, ao passarem pelos enormes portões de carvalho, notaram que a impressão ia muito além da aparência.

As árvores, que nessa época do ano deveriam apresentar folhas grandes e vistosas, tinham uns poucos brotos amarelados e doentes. As ruas, conhecidas pela movimentação e alegria noturna, estavam agora vazias, mesmo no começo da noitada. Um ou outro gato assustado passou pelas carroças da comitiva, e corujas piavam tristemente sob os telhados das casas. Sujeitos suspeitos andavam nas ruas, com as mãos no bolso dos casacos, mesmo que não estivesse fazendo frio para usarem roupas tão grandes.

Quando avistaram o castelo de Serdin, ele tinha o mesmo ar sombrio do resto da cidade. As luzes ornamentais das torres estavam apagadas e havia muito mais guardas vigiando as grades altas e belas do lugar, com armas mais poderosas do que o normal em tempos de paz. A bandeira do reino tremulava na escuridão de um modo agourento, como se logo viesse uma tempestade.

— ...Elesis... quanto tempo faz que não passamos por aqui?

— Acho que... uns três anos. — ela fazia contas com os dedos.

— Incrível... como tudo mudou. — O Arcano sentiu um certo pesar no coração. Havia mais ou menos três anos que não eles não viam a amiga feiticeira, mesmo que eles morassem no mesmo continente, em reinos relativamente próximos. Ainda que eles tivessem centenas de compromissos para cumprir ou convenções à comparecer, entristeceu-se ao perceber que negligenciaram uma amizade tão duradoura.

— Ei, amigo. — Perguntou o rapaz, quando percebeu que as carroças estavam saindo da alameda principal e enveredando-se por algumas ruelas adjacentes. — Para onde estamos indo?

— Nós vamos para uma hospedaria, menino. — Falou o homem, levemente ácido.

— Bem, então nós iremos sa-- — foi interrompido pela amiga ruiva, que puxou-o pela manga da roupa.

— Não... Quero ver um pouco mais da cidade.

O moço não argumentou. Ainda não estavam completamente reconciliados, e resolveu por bem não irritá-la. Além do mais, não era uma curiosidade inocente: ele podia ver nos olhos dela que a mulher tinha algo em mente.

Continuaram por um tempo, indo até a periferia, onde um dos guardas da caravana recomendou que escondessem qualquer pertence valioso. Quando o pavimento de pedras cinzentas começou a enegrecer e as luzes da rua a rarear, perceberam que estavam em um lugar que não reconheciam e, sobretudo, não gostavam. Viam as construções de dois andares com ar decadente, de janelas quebradas e tapadas com madeiras, lojas de vitrines empoeiradas e fachadas ilegíveis, e viam o lixo acumulado nos cantos da rua e água malcheirosa que criava lodo nas pedras.

— Mas o que diabos... aconteceu por aqui?

— Os tempos mudaram, mocinha. — Respondeu um dos comerciantes mais jovens. — Esse reino já teve dias melhores... — Ele sorriu, mostrando uma nojenta fileira de dentes tortos e amarelados, que causaram ojeriza nos nobres cavaleiro e amazona.

— ...Dias... melhores... — Elesis murmurou, enquanto observava as construções com pena. Arme deixara mesmo que aquilo acontecesse? Pensando bem, ela não devia nem estar ciente de tal coisa. A maga podia ser muito centrada em seu próprio umbigo, ainda mais quando estava rodeada de mimos e luxos da realeza.

Passavam por uma parte da rua onde a iluminação estava relativamente melhor, e a espadachim pôde observar uma pequena loja térrea, com as janelas pregadas e uma grande placa de “vende-se” afixada em cima de um símbolo élfico entalhado no que um dia fora a fachada. Elesis estreitou os olhos e conseguiu observar um pedaço da janela sem tábuas, de onde se via uma pedra azulada bem característica...

— Ronan. Olhe isso.

— O quê...?

— A velhota. — ela girou os olhos quando percebeu que ele não entendera. — Arquemeece! Lílian Arquemeece!

— Ah!

Entreolharam-se surpresos, se perguntando visualmente se aquilo significava o que estavam pensando. Logo em seguida fecharam a face em expressões sérias.

— Chega. Hora de irmos. Ei, velho. — dirigiu-se ao dono da companhia — Vamos descer aqui. Desamarre nosso cavalo.

O homem barrigudo resmungou um “pois não, senhorita” e desatou o animal da dupla, entregando-o a eles. Elesis tentou subir na montaria, mas retesou-se com a dor, sendo ajudada logo depois pelo homem de olhos azuis, que montou logo em seguida. Ele ainda estava agradecendo a “carona” quando a ruiva tratou de esporear o equino com violência, fazendo-o correr velozmente.

— O que deu na sua cabeça?

— Se os anos que passou perto de mim te ensinaram alguma coisa, sabe tão bem quanto eu que aqui está totalmente hostil, até mesmo para os habitantes, quanto mais para estrangeiros. Ainda é cedo, podemos chegar no paço real antes de subirem os portões. Isso é, se já não fecharam.

O cavalo era realmente um ótimo exemplar; voltaram para a avenida principal e percorreram todo o reino em alguns minutos. O palácio cinzento e imponente não demorou a aparecer.

— Alto! Quem vem lá?

Um guarda de grande porte e estatura (muito diferente dos magos raquíticos que faziam a vigia, antigamente) parou-os, quando chegaram aos magníficos umbrais do grande palácio.

— Ronan Erudon, Cavaleiro Arcano, Draconiano, Defensor e Inquisidor, ex-líder da Guarda Real de Canaban e membro da Grand Chase.

— Elesis Sieghart. — Ela não entendia o que movia o amigo a ter tanta pomposidade na hora de se apresentar. Eles eram não só os maiores heróis do continente, mas de toda a Ernas. Obviamente qualquer um os reconheceria. Aquele discurso todo dele enfadava-a, mas não deixava também de ser divertido vê-lo cumprindo seus rituais.

— A rainha Enna, e que ela viva para sempre, não nos avisou nada a respeito da chegada de vocês.

— Por mil demônios...! — A Sieghart bufou, incrédula. Como assim “não avisou nada a respeito”? Eles tinham viajado metade do continente e quase morrido para que pudessem falar com a dita cuja. — Escuta aqui, seu bastardo. — disse, com voz autoritária, mostrando o seu emblema dourado e chamativo — Não precisamos de autorização para entrar. Somos a Grand Chase! Qualquer assunto que a rainha tenha conosco deve ser tratado conosco e ninguém mais. Agora trate de nos deixar passar antes que eu suba aí e chute sua bunda enlatada!

O guarda ficou alguns instantes sem reação. Tratar um soldado daquela forma era não só arriscado, como também estúpido. Ele chamou mais um homem que estava a serviço, e ambos aproximaram-se do casal. O militar conferiu as identidades de ambos, e não havia dúvida quanto a autenticidade dos brasões e emblemas que carregavam. Ele empalideceu um pouco ao ver-se de frente com duas grandes lendas. Uma gota de suor escorreu-lhe pela face aterrorizada.

— Desculpe-me pela grosseria, senhorita Sieghart e senhor Erudon. Queiram perdoar-nos. Acontece que não podemos mais deixar qualquer um entrar e--

— Poupe-nos de suas desculpas. Apenas leve-nos até a presença real.

A impiedosa dama rubra. Tão delicada quanto nas histórias. E ainda mais bonita e enérgica. O pobre homem não fez-se de rogado, e em poucos minutos ambos viajantes já adentravam os corredores extensos do lugar, até chegarem finalmente à sala do trono.

Era um aposento extraordinário. Logo que as portas de mogno finamente ornamentadas se abriram, eles puderam vislumbrar o explendor ofuscante da sala. Grossas colunas, de capitéis riquíssimos em detalhes, erguiam-se dos dois lados do enorme aposento, e um tapete vermelho desenrolava-se até chegar ao trono, que estava no meio do salão e elevado por degraus de mármore branco. As paredes eram decoradas com cortinas de linho fino e castiçais de prata e adornados com ouro em intervalos regulares. Ao invés de janelas, a iluminação natural provinha de grandes sacadas — e estas, por sua vez, tinham portas de vidro. Mesmo quando estavam fechadas, para impedir o frio, era possível ver o cenário verdejante da parte de fora do reino. Para iluminar à noite, um candelabro de cristal monumental que pendia do teto cumpria essa função.

Sentada em seu lugar de direito, a rainha violeta parecia somente um detalhe na grande pintura. Ainda que estivesse glamourosa em seus trajes reais, lindamente costurados e ajustados, a pele diáfana deixava transparecer o cansaço dos anos, e havia manchas escuras sob seus olhos. Ao lado dela, alguém postava-se de pé, e debaixo do capuz observava atentamente os dois guerreiros. Por todo o perímetro da sala, magos e militares se espalhavam.

Anunciaram a chegada do visitantes; estes, caminhando até o centro da sala, ajoelharam-se humildemente perante a respeitável figura.

— Vossa Majestade. Ronan Erudon e Elesis Sieghart se apresentam. Viemos o mais rápido que pudemos. — ele disse, envergonhado — Pedimos perdão por não estarmos apropriadamente vestidos para a vossa real presença.

Elesis teria girado os olhos, porém, não ousava fazer tal coisa na presença de uma autoridade.

— Não vos incomodeis com tal formalidade, valorosos guerreiros, levantai-vos.

Eles obedeceram, e a ruiva tomou a palavra.

— Fomos informados que Vossa Majestade queria ver-nos com urgência.

— Sim, minha cara. O assunto que temos a tratar é de importância imensurável, mas não serei eu a vos informar os detalhes: deixar-los-eis nas mãos capazes de minha conselheira fiel, esperando sinceramente que isto não seja um problema.

— De modo algum. — Respondeu Elesis, e, sem querer, tossiu um pouco, uma tosse carregada de pus e sangue que ela tratou de cobrir o mais rapidamente, com as mãos e em seguida um lenço. A rainha a fitou, curiosa, mas nada perguntou. Ronan, no entanto, percebeu que aquilo era um sinal de que os procedimentos de cura deveriam ser renovados, e que precisavam ir logo para a enfermaria. Sabia, porém, que Elesis não admitiria que ele interrompesse a soberana em hipótese alguma.

— Vós sois convidados ao banquete real desta noite. O rei Aron e sua comitiva chegaram a Serdin ainda mais cedo, para tratarmos de negócios. Ficaríamos encantados em tê-los conosco. Por enquanto, vós sois dispensados. Lavar-se-ão e ser-lhe-ão entregues roupas limpas. Arme Glenstid em pessoa cuidará de vossos ferimentos e explicará o motivo da viagem. Peço à vós desculpas por ter deixado isto obscuro, mas era necessário sigilo total.

— Sim, Vossa Majestade. — eles inclinaram-se novamente, em respeito. Elesis até pensou em falar mais alguma coisa, mas perdia-se no uso dos pronomes de tratamento e nas palavras rebuscadas. Achava toda aquela firula uma enrolação sem medidas e desnecessária. Por isso, contentou-se em permanecer calada.

A figura encapuzada se adiantou e acenou para que seguissem-na, virando-se e reverenciando a rainha antes de passar por uma porta lateral de madeira sólida e adornos de ferro grosso com prata.

— É muito bom voltar a vê-los, meus amigos. — disse a estranha pessoa, ao retirar o capuz, quando eles já andavam nos enormes corredores da imponente construção.

Era ninguém menos que Arme, a própria. O cavaleiro sentiu um impulso de abraçá-la e beijá-la, dizendo o quanto sentira sua falta, mas não o fez por ser extremamente indecoroso. E também, em parte, pelo espanto ao ver a velha amiga.

Que realmente parecia mais velha.

Dos cabelos violáceos, sobressaltavam mechas de um branco macilento e fosco, onde os fios pareciam mais quebradiços e doentes, e a pele outrora lisa e bem cuidada parecia levemente mais amarelada e marcada. Vergões escuros se projetavam abaixo dos olhos mesmo por trás da maquiagem, e seus olhos haviam perdido o brilho jovial de antes, se tornando inexpressivos.

— O que foi, Ronan? Eu assusto você? — ela logo lançou um olhar desdenhoso ao amigo, e se virou para continuar andando. — Pelo visto eu não sou mais bonitinha.

— Não... é isso... — Disse timidamente, como se escolhesse as palavras.

— Uso excedente de magia dá nisso, queridinho. Nada que eu vá explicar agora. Por enquanto, vocês tirarão essas roupas imundas. Como ousaram ir à presença real com esses trapos sujos?!

— Pensei que “urgente” significasse algo pra você. — Elesis resmungou. Sem perceber, uma fileira de sangue escorria de sua boca.

— “Urgência” não significa “desleixo”, muito menos “desrespeito”. E eu vejo que você continua um péssimo arcano, Ronan.

A face do rapaz ficou vermelha com o insulto. Por mais que odiasse admitir, ele não tinha feito um bom trabalho. No máximo, deixara a amiga viva. Nada comparado aos complexos rituais brancos de cura que conhecia há muito tempo, mas nunca tivera a vontade de estudar à sério. Remoeu-se e praguejou contra a própria estupidez. Um mago que só sabe usar magia ofensiva ou negra é como uma ferramenta quebrada.

— Espera aí, semi-idosa! Péssimo mago, não. Apesar de ser meio capenga, é verdade, mas se não fosse por ele eu nem estaria aqui!

— Só estou constando os fatos. Se quiser proteger seu amado, problema de vocês da próxima vez que precisarem de alguém competente nas artes mágicas e só tiver ele disponível.

— Arme. Nós não viemos para cá para sermos insultados. — ele retrucou glacialmente, recuperando a razão.

— Tem razão. — ela sorriu, arrogante. Andaram por diversos corredores e desceram algumas escadas. Estacaram diante de grandes portas, que davam acesso à um quarto branco luxuoso com uma saleta; o banheiro. Ele era limpo e espaçoso, e havia uma banheira de água quente no meio — Tire as suas roupas. Vamos ver as feridas.

As duas mulheres foram para detrás de um biombo, onde as roupas puídas da jornada foram arrancadas e queimadas com um feitiço simples. O vapor da água e o cheiro dos perfumes entorpecia os dois guerreiros já extremamente cansados da aventura. Ronan se acomodou em um banco qualquer e encostou-se na parede, fitando a divisória e as silhuetas de ambas.

A arquimaga murmurou algumas palavras em uma língua desconhecida, e os machucados logo começaram a curar-se. No entanto, Elesis pediu que, se possível, as cicatrizes não fossem apagadas. Elas deveriam ficar ali gravadas em sua pele como um aviso. Como pudera ser tão descuidada? Havia sido pega completamente desprevenida pelo lobo monstruoso. Nunca, em todos os anos de lutas, acontecera algo parecido. Já sofrera assaltos, tentativas de assassinato, acidentes terríveis, e enfrentara a morte diversas vezes. No entanto, não sentira a presença da criatura, nem o som da floresta, ou a sensação de perigo iminente quando se está prestes a ser trucidado. Fora pega de surpresa, como uma garotinha indefesa. Ainda que estivesse viva, isso devia-se somente ao companheiro, e não às suas próprias habilidades. Sentia desgosto de si mesma. Não obstante, havia perdido um dos sabres e a já famosa barraca.

— Terminado. Foi bem simples. Ao menos vocês tiveram sorte em ter usado algumas ervas mediciais nesse emplasto meia-boca que não deixaram que a carne apodrecesse. Agora vocês podem tomar banho. As roupas estão em cima da cadeira. Ronan, me acompanhe, mostrarei o seu quarto.

–-

Elesis deixou-se cair na banheira, devagar. A sensação da água quente na pele, depois de tantos dias de banhos gelados, era reconfortante, e os aromas embeveciam seus sentidos. Apesar de ter sido curada, ainda assim tinha dores pelo corpo, mas logo parou de sentir as pontadas fustigantes assim que sua musculatura relaxou.

Uns pequenos frascos compridos se posicionavam ao lado da banheira; segundo o que lhe disseram, os alquimistas de Serdin haviam criado os produtos de beleza, ou algo assim, misturando essências de ervas e outras coisas secretas. Ela resolveu testar a eficácia das invenções. Uma delas, ao ser derramada sobre o cabelo e o corpo, produzia uma espuma suave e cheiro agradável. Esfregou-se com aquilo até que houvesse bolhas em abundância. Seus olhos começaram a arder, fazendo com que ela mergulhasse e retirasse o produto com fúria. Depois foi a vez da segunda garrafa. Essa não tinha nenhum efeito extraordinário; aparentemente, deixava só a pele mais sedosa. Foi ao pentear os fios ruivos revoltosos que ela notou que estavam muito mais fáceis de lidar. Passou-lhe pela cabeça comprar alguns daqueles potes e levá-los à Canaban. Facilidades nunca são demais, não é mesmo? Se bem que, conhecendo o Ronan, era possível que ele tivesse uma coleção escondida daqueles embustes.

Depois de se aventurar com os frascos e brincar com as bolhas do primeiro (o que levou um bom tempo, e encheu o banheiro de espuma), Elesis se aquietou na banheira e ficou a curtir a água escaldante contra sua pele. Como de praxe, a mente começou a vagar pelos mais diversos assuntos, e para uma pessoa como ela, que tinha a mais vasta coleção de horrores arquivados, isso não era uma boa coisa. Lembrou-se da jornada para encontrar seu pai, na qual falhava miseravelmente; da Grand Chase se dissipando depois de tantos anos; da vida fatigante de heroína em Canaban... e de sua falha miserável na Floresta Élfica.

Deu um soco na água, frustrada. Aquilo não podia continuar. Na manhã seguinte retomaria o treinamento pesado. Peregrinaria por Ernas se fosse preciso, mas voltaria a ter sua antiga força. O incidente deu-lhe a motivação que precisava para sair do marasmo atual. Secou-se com a toalha felpuda e macia, e experimentou as novas indumentárias. O tecido da roupa tinha um gostoso toque aveludado, e era todo vermelho, adornado com rendas brancas. Infelizmente ela detestava usar vestidos, e era a única coisa que haviam providenciado. Bem, daquela vez, teria que passar.

Ao sair do seu aposento, avistou uma grande sala iluminada ao fim do corredor. Foi até ela, atraída pelo calor do ambiente, e topou com o amigo saindo de uma outra sala. Pensou rapidamente no por quê ele demorara tanto quanto ela, mas esqueceu do detalhe rapidamente. Entraram no salão, onde crepitava o fogo em uma aconchegante lareira. Arme estava sentada em uma poltrona grande demais para ela, e convidou os dois a acompanharem-na no chá.

— Tsc. As duas mocinhas demoraram muito. — ela sorveu um gole em sua finíssima xícara de porcelana — Logo mais é o jantar, e já estava pensando que teria que tirá-los à força do banheiro. Aliás, Ronan, considerando que é um homem, é meio suspeita a sua permanência prolongada nesses recintos fechados.

— ...Que tal tratarmos dos negócios, Arme? — disse, levemente irritado com a insinuação.

— Oh, sim. Bem, vejamos... acredito que talvez vocês já saibam o motivo pelo qual vieram para cá.

Os dois levantaram as sobrancelhas, confusos.

— Não pude deixar de notar as características dos cortes de Elesis. Expliquem-me como foi o ataque que sofreram e descrevam a criatura.

Ambos se olharam, constrangidos. Não era a experiência mais renovadora do mundo reviver aqueles momentos. A Gladiadora contou em poucas palavras o episódio, obviamente omitindo as partes que não convinham. No fim, a feiticeira sorriu de forma jocosa, compreendendo absolutamente a situação.

— Bem, meus amigos, há uns seis ou sete anos começaram a ser registrados alguns ataques à caravanas de comerciantes que passavam pela Floresta Élfica. Uma espécie de lobo estava assustando as pessoas que usavam aquela rota, fazendo com que muitas abandonassem o caminho por outros alternativos mais seguros. Nós não demos muita atenção, afinal, a floresta fora devastada no... acidente élfico... — disse, referindo-se ao massacre — e era normal que os animais sobreviventes adquirissem tal agressividade. Algum tempo se passou, e novas denúncias chegavam até aqui, mas nada realmente alarmante. Porém, nos dois últimos anos, ataques realmente sanguinários ocorreram. As pessoas relatavam que um demônio de quatro patas dominava a área, e muitas mortes começaram a acontecer. A soberana Enna, em sua inteligência e prudência, logo soube que era melhor não deixar que essas informações vazassem para o reino de vocês, pois ela sabia muito bem que a guerrilha patética dos Cavaleiros Vermelhos contra os Guardas Reais poderia se intensificar em uma tentativa imbecil de um grupo mostrar superioridade ao outro, protegendo e patrulhando o continente. Nós, os Magos de Serdin, resolvemos intervir; eu mesma investiguei durante vários meses, e até alguns dos nossos homens morreram ao tentar enfrentar tal criatura.

— E então...? — falaram em coro, ansiosos para o fim da narrativa.

— Então, após extensivo estudo da minha parte, eu proibi terminantemente que a empreitada discreta atrás do lupino continuasse.

— ...E por que você faria uma coisa dessas, visto o poder destrutivo que o monstro possui?

Arme suspirou, enfastiada. Observou, com olhos frios e distantes, as chamas da lareira dançando, e bebeu mais um pouco do líquido borbulhante da xícara.

— Os anos na corte de Canaban deixaram vocês lerdos, é isso? Ainda não conseguiram juntar os fatos? Há uns seis anos, o que coincide com o tempo em que voltamos para Vermécia, uma fera ataca pessoas na Floresta Élfica. Sério que não perceberam? E ainda por cima os dois tem a coragem de chegar quase mortos e aos frangalhos na presença da rainha? Por Armenis, a deusa da sabedoria, vocês deveriam ser destituídos dos seus cargos por incopetência, invalidez, burrice...

— Se você for mais direta, talvez nos ajude um pouco, maguinha.

Arme lançou um olhar gélido para Elesis, que estava com uma carranca fechada. Talvez a memória do apelido pudesse ser agradável em outra situação — mas não naquela.

— O monstro, caso ainda não tenham percebido, é o Ryan.


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Notas finais do capítulo

O monstro enfrentado por nossos heróis se revela como um antigo aliado O que farão Elesis e Ronan, diante da transformação de Ryan? Os bravos guerreiros irão capturá-lo ou usar de meios mais... extremos?Acompanhe nos próximos capítulos!



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