King and Lionheart escrita por senhoritavulpix, Lichiaw, Sitriga


Capítulo 3
Astros Pulsantes


Notas iniciais do capítulo

Oh, aí está você novamente. Bem, o terceiro capítulo saiu mais rápido do que imaginamos, e bem maior também, hehe.As coisas estão começando a esquentar...Boa leitura!



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Aquele não era um deserto como tradicionalmente as pessoas imaginam. Na verdade, ao invés de uma extensão infinita de areia quente sob os pés ou dunas tortuosas que mudam de lugar a todo instante pela ação dos fortes ventos, O Vale do Juramento é uma vasta planície árida. Com elevações rochosas a oeste e o desmedido lago a noroeste que faz fronteira com os Bosques Élficos, e, cortado por um extenso rio que ao longo dos milênios fendeu a terra fazendo o maior cânion do continente, a região é um espetáculo na natureza à parte.

Apesar do clima extremo, que pode variar de temperaturas negativas durante o inverno até ao calor extraordinário no verão, é um ecossistema que abriga várias formas de vida, animais e vegetais, todas muito ricas e especiais, bastando saber como e onde procurar para achá-las. A primeira vista o ambiente parece ser uma terra dura e estéril, mas com paciência pode-se achar espécimes fantásticas de insetos, e se tiver sorte (ou azar), quem sabe até mesmo topar com Drillmons selvagens, Gons ou as belas Harpias.

Tais criaturas, no passado, foram aprisionadas pela magia de Cazeaje. Quando o esquadrão de elite saído de Canaban passou por ali, travaram batalhas sangrentas contra elas. Felizmente, nossas heroínas conseguiram passar incólumes da aventura. O mesmo não pode-se dizer a respeito daqueles seres mágicos, que tiveram uma diminuição notável de indivíduos, sobretudo porque caçadores que frequentemente atravessam o local começaram a se interessar pelas carnes exóticas dos Gons e suas peles úteis e duráveis, pelas penas bonitas das Harpias — e outras partes bonitas também, que deixo ao seu encargo imaginar — ou pelos ferrões dos Drillmons.

Apesar disso, ainda é possível andar pelo Vale e passar por coelhos, raposas e outros mamíferos pequenos, e, entre outras plantas maravilhosas, achar endêmicas flores medicinais raríssimas do deserto, que tem propriedades terapêuticas inacreditáveis, apesar de pouco conhecidas — o que é bom, porque se fossem descobertas com certeza encontrariam a extinção em um curtíssimo espaço de tempo.

Porém, como todo grande espaço ressequido, os viajantes também enfrentavam os problemas habituais de zonas desérticas, como o calor elevado de dia e o frio cortante de noite, a falta de água para beber, a comida escassa, os equipamentos cheios de pó ou os cavalos cansados demais para trotar.

Por sorte, durante os anos de travessias entre Canaban e Serdin, Ronan e Elesis conheciam aquele terreno tão bem quanto um ao outro. Ou ao menos era isso que achavam, até o momento que começaram a ter divergências de opiniões por onde deveriam seguir.

— Eu só estou dizendo — e apontou o dedo em um lugar no mapa — que seria mais rápido atravessarmos o Vale indo pela encosta da cadeia montanhosa que divide Canaban e Serdin. Acredito que Arme precisa de nós urgentemente. — disse o rapaz.

— É claro que é mais fácil e rápido, mas eu vou ter que repetir de novo que nessa época do ano as temperaturas lá estão insuportáveis? Essa área, além de ser bem no meio do continente — e por isso, mais quente — fica também no meio de montanhas a leste e oeste, logo, o vento é mínimo. A sensação térmica é horrível. Se fosse uma área úmida já seria ruim por ser quente e abafada, imagina então um local totalmente inóspito!

Haviam parado de caminhar para discutir por onde iriam, mas o que era para ser simples acabou-se transformando-se em uma discussão inflamada que já alongava-se por horas — desde que eles saíram da Floresta de Canaban aquela manhã mais cedo. Os cavalos, cansados daquela ladainha que não dava em lugar algum, abaixaram suas cabeças para ruminar e descansar, enquanto a paciência dos dois humanos diminuía conforme o tempo passava.

— Ah, pelo amor de Gaia. Você não aguenta dois dias de caminhada? Cadê aquela mulher excepcional que eu conheci anos atrás?

— Eu não falo de mim, falo dos cavalos. E se eu não aguentar, qual o problema? Eu ainda sou um ser humano!

— Ah, agora é um ser humano? Hoje de manhã estava se gabando que as pessoas te comparavam com Ernasis. Aliás, fale pelo seu cavalo, porque o meu com certeza aguenta andar durante dois dias. Além do mais, deixe-me te lembrar que apesar de tudo eu ainda sou um mago, posso muito bem conjurar qualquer magia besta para evitar morrer de calor.

Aquela era uma ideia válida, que ela não havia pensado. Em condições normais uma pessoa não conseguiria aguentar a viagem. Mas com magia a situação era diferente. Viajar de noite também poderia ser a chave. Mesmo ela sendo fria, ainda assim podia-se usar encantamentos arcanos para conservar o calor do corpo, e de dia uma tenda fria para dormir era todo o essencial. Entretanto ela era teimosa e obstinada, e não toleraria ir por outro lugar que não fosse pela área costeira.

— Você pode usar a sua magia e ir por aí, mas eu vou por aqui! — apoiou a mão com firmeza em outro ponto do mapa, por onde seguia o rio que saia do Grande Lago e de partes da Floresta Élfica. Aquela parte era com certeza muito mais fresca, devido a brisa marinha e os inúmeros regatos, e até mesmo algumas figueiras e oliveiras resistentes que faziam sombra.

— Sua idiota! — esbravejou — Será que não dá pra me ouvir ao menos uma maldita vez na vida?!

— Não, não dá! Estou sendo só mais sensata que você. Agora estou mandando você ir por lá! Se não dá valor à sua vida e quiser se matar, tudo bem, mas eu vou garantir a minha vida indo pelo outro lado. E você não é um mago tão bom assim, Ronan! Nunca foi! Até a Lire era melhor maga que você! E me deixa em paz, é uma ordem!

— Elesis Sieghart, deixa de ser cretina! Você não é mais líder da Grand Chase ou de qualquer droga, então pare com essa mania ridícula de achar que ainda manda em alguma coisa! Porque nós não mandamos mais nem em nossos narizes, quanto mais você que era a grande estrela de tudo e agora virou só uma marionete nas mãos da rainha!

Dito essas palavras, ele arrependeu-se imediatamente. A moça olhou-o estarrecida e apertou os lábios, os olhos umedeceram ligeiramente. Autoritária por tanto tempo, havia se acostumado com a liderança. Era um pouco duro lembrar de que mais nada existia, ao não ser as lembranças.O que ele falou soou como um tapa em sua face, fazendo-a voltar à realidade.

— ...Perdão. Tem razão, vamos por onde você quer ir, mesmo. — Falou, humilde.

— ...Me desculpe.

— Não, você está certo. Isso não é uma estratégia militar, é só a maldita escolha de um caminho. Estou sendo teimosa e rebelde como uma criança.

— Não, eu... eu... — procurava as palavras, que escapavam de sua boca.

Ela virou-se para que seus olhos marejados e expressão levemente contorcida não fossem vistos. Interrompeu-o bruscamente.

— ...Por que não me deixa, Ronan? Por que não me deixa como todos os outros fizeram? — continuou, não dando espaço para respostas — Porque eu carrego esse fardo, sabe? Eu era a líder, o ícone. Eu tenho que suportar ser manipulada e moldada pelos reis e rainhas, e participar de cerimônias e banquetes com pessoas desagradáveis e mesquinhas. E tenho centenas de responsabilidades enfadonhas, e faço discursos que nem ao menos fui eu que escrevi... Gosto de ser tratada como humano, não como algo para ser mostrado e exibido. Também não me agrada resolver encrencas internas que nem ao menos me dizem respeito. Me vigiam todas as horas dos dias durante todos os dias das semanas, e sinto o peso da obrigação de não cometer erro algum, de ser a própria imagem de um deus, porque é isso que as pessoas esperam de mim.

“Eu gostaria de lutar contra isso, sabe? Mas um herói se rebelando seria catastrófico... Porque agora eu não sou mais uma mulher: perdi a identidade para ser um símbolo. E se esse símbolo pode fazer alguma coisa, se ele pode revoltar-se e deixar de responder às suas obrigações, então o povo dirá que também pode, e isso geraria o caos. Eu estou em evidência, sempre. Mas você...? Você não tem que dividir esse peso comigo, porque você é livre. Poderia voltar a ser o líder da Guarda Real. — ela limpou os olhos com as costas da mão, e continuou, dessa vez com um tom de voz um pouco menos duro — Você não tem que viver esse inferno de vida comigo. Poderia mandar em seu próprio nariz, se quisesse. Teria autonomia e liberdade, e não prestaria satisfação a ninguém mais que não fosse a rainha do nosso reino. É claro que ainda é um herói de guerra, mas com o tempo não precisaria ficar tão exposto como eu. Você ainda é jovem e bonito... poderia arranjar uma esposa graciosa e ter filhos... Mas a mim, nada resta. Não posso ser a Líder dos Cavaleiros Vermelhos pois preciso sair do continente constantemente, porque... — soluçou, engasgada com as próprias palavras — porque preciso encontrar meu pai. Pelas deusas! Eu sei que é loucura, e ele pode já estar morto há muitos anos... mas... eu... eu não posso desistir dele... sem ter exaurido minhas forças e tentado de tudo...”

Elesis sempre havia sido a imagem da bravura e da determinação. Passava por cima de tudo e todos que ousassem entrar em seu caminho, e mostrava a verdadeira justiçaatravés da sua espada impiedosa. Todavia, anos depois, fragilizada e desgastada por causa do capricho dos outros, em quase nada ela lembrava a garota de outrora. Ronan sempre havia se admirado da voz de comando e carácter forte dela. Cortava-lhe o coração vê-la naquele estado, e não sabia o que fazer. Estava desnorteado. Tentou aproximar-se para abraçá-la, mas ela o repeliu e afastou-se. Não queria ser consolada como a quem faz com uma menina repreendida, e nem lhe queria que ele tivesse pena da sua dor. Por um instante — e só por um maldito instante — queria que deixassem-na sofrer como um adulto, sem paparicações e mimos.

— Você está errada. Eu jamais sairia do seu lado, Elesis.

— Não! Não tem que passar por isso comigo, ainda mais quando se pode ter uma vida normal. Deveria ter feito como todos os outros, me larga, não vale a pena viver de aparências vazia, uma existência que não tem mais sentido! — Percebendo que havia se alterado, suspirou em resignação. Ronan abraçou-a fortemente, colocando a cabeça dela em seu peito e afagando os cabelos acobreados e lisos da mulher.

— Eu nunca te deixei, e não vai ser agora que acontecerá. Não fale bobagens.

— Por quê? Por que é tão teimoso?

— ...Você não entenderia... — pensou melhor. Nem ele entendia o que sentia.

Optaram seguir viagem por onde Elesis indicara, andando a leste do Vale, indo em direção ao Grande Lago e passando por entre os raros riachos do caminho, que ao desembocarem no cânion faziam cachoeiras. Aquele revelou não ser um rumo tão ruim, afinal. O vento que vinha do oceano era forte o suficiente para chegar ao continente e o gostoso cheiro de maresia perfumava o ar. E se aguçasse a visão, talvez desse para ver o mar ao longe, como uma linha fina e azul no horizonte distante.

De qualquer modo, as altas temperaturas foram um tormento. Para deixar o calor ainda mais insuportável, as roupas que trajavam eram abafadas por serem longas e cheias de tecido para evitar que a radiação deixasse sequelas na pele. Mesmo com a magia arcana para dispersar calor corporal, o grupo não estava confortável; aquilo somente atenuava o problema, mas não resolvia completamente. Para agravar, os cavalos sedentos tomavam muita água, o que obrigou o cavaleiro a racioná-la. Apesar de tudo, com todos os anos de experiência em sobrevivência que tinham, aquela não era uma situação desesperadora. Longe disso, podia ser descrita no máximo como “desagradável”.

Com sorte, depois de um dia e meio de caminhada quase sem descanso — pois a noite era fresca e podiam avançar mais na empreitada — avistaram uma solitária árvore perto de um riacho que corria veloz para a grande fenda. Sinal não só de que estavam chegando até a Floresta Élfica como também teriam água fresca e limpa para beberem e também se lavarem.

— Ah, finalmente, graças aos deuses eu estava certa. Muita coisa mudou por aqui, mas ao menos esses aroios permanecem os mesmos — disse Elesis, debruçando-se sobre o curso de água e pegando um pouco do líquido cristalino em seu cantil, para passar ao parceiro — Acampamos por aqui, essa noite. Os cavalos terão água o suficiente para trotarmos amanhã até a Floresta. Se estivéssemos em algum local alto talvez até pudéssemos vê-la agora.

— Concordo. A sombra dessa não é grande mas é bem agradável. Amarrarei os cavalos nela... — suspirou, aliviado — Eu vi algum tipo de vegetação rasteira uns quinze ou vinte minutos a oeste daqui. Vou verificar se há algum tipo de planta ou qualquer coisa por lá. Volto em breve.

— Eu não vi nada. Bem, quer que eu vá junto?

— Não, não. Mas se quiser, arrume a tenda. Assim que eu chegar, conjuro as magias.

E, dito isso, saiu apressadamente. Em verdade gostava muito de ter a amiga sempre por perto, mas ultimamente a presença dela anuviava-o um pouco. Somente sozinho conseguia manter os pensamentos em ordem, e por isso arrumou qualquer desculpa a fim de caminhar um pouco para afastar-se dela.

Subiu o rio por um tempo, virou e distanciou-se dele por uns minutos. Guiou-se para onde achava ter visto alguma coisa. Contudo, não estava procurando por ervas. Após alguns minutos de caminhada, contemplou abismado o que parecia ser uma cena recente de massacre. Uma harpia jovem sem as penas jazia ao lado do que aparentava ser carcaças de Drulls, cujo os ferrões foram retirados meticulosamente por algo afiado, como uma adaga. Os corpos deles, porém, eram quase irreconhecíveis.

— Tsc... caçadores nojentos.... Na época de Cazeaje essas criaturas eram malignas por serem controladas pela Rainha Negra — e um arrepio percorreu-lhe a espinha, ao lembrar-se do nome —, mas agora elas são criaturas livres e indefesas... É brutal demais matar uma harpia sem motivos, ou pior; com o motivo imbecil de colecionar-lhe as penas.

Aquilo que Cazeaje disse anos atrás ainda ecoava em sua cabeça. “Humanos... Vocês não acham que a paz que vocês desejam é algo egoísta?” Cerrou os punhos com força, e um ódio cego fê-lo respirar pesadamente “A paz para os humanos é o extermínio de outras raças, dos monstros... Vocês nunca pensaram nisso? Sério mesmo?”. Maldita. No fim, ela tinha toda razão.

— Gaia, zele por nós.

Com algumas pedras que achou ao redor fez um singelo túmulo para os seres que ali morreram. Demorou um pouco, é verdade, mas ele achou que era o mínimo que podia ser feito para aqueles que tiveram morte tão violenta e banal. Com o punhal, marcou na maior das pedras o dia que encontrou os cadáveres.

Voltou para o riacho e lavou-se da melhor maneira que podia. Queria limpar a sensação de sangue e morte da pele. Seco, voltou ao acampamento já pensando em uma desculpa pela demora.

Avistou a oliveira, distante, e somente um cavalo amarrado a ela. O outro havia soltado-se da planta, mas, para a sorte do cavaleiro, ele estava bem perto dela, comendo as ervas que germinavam do lado oposto. Aproximou-se cuidadosamente e muito silenciosamente para não espantar o animal.

— Êia! Onde pensa que vai, hm? Desculpe, não vai querer fugir daqui e ver o que tem mais pra lá.

Ao amarrar o equino na árvore o cavaleiro ficou de certo modo escondido do rio, pois a grande planta o encobria. Foi nesse momento que, sem querer, ele viu uma cena um tanto inusitada. Elesis, com umas poucas roupas, tomava banho e divertia–se como criança na água. Como amigo, ficou profundamente feliz em vê-la finalmente sorrindo. E, como homem, ele também não pôde deixar de notar o quão bonitas eram as curvas dela, e em como o cabelo ruivo dela ficava brilhante na água, ou em como suas pernas, braços e barriga eram torneados, e quão bonito era seu busto. E o cair da tarde — que tingiu o céu entre o vermelho e o alaranjado — ressaltava ainda mais a beleza dela. De súbito ele percebeu que aquela menina que ele conhecia havia tantos anos não amadurecera somente em personalidade.

Era engraçado imaginar que alguns anos atrás ele sequer pensaria nela desse jeito. Desde que se conheceram, ela sempre fora extremamente masculinizada, brandindo a sua espada e gritando ordens toda a hora. Sempre atrás de ferimentos e ataduras, nunca deixava sua beleza transparecer. Detestava quando lembravam-na de sua condição feminina, como se isso pudesse impedí-la de guerrear ou liderar uma equipe. Dificilmente mostrava o que sentia, e era conhecida por ser impiedosa e até um pouco fria. Mesmo depois da Grande Batalha, ela continou com seus hábitos militares por alguns anos, e, nesse tempo, ele não tinha lembrança de ter sentido nada mais do que pura camaradagem. Porém, havia pouco tempo que ela estava mostrando-se mais sensível, e saindo do seu impenetrável casulo. Agora parecia até mais... humana. E muito mais mulher.

— Ronan, seu idiota, o que você pensa que está fazendo? — disse a si mesmo, forçando-se a tirar a imagem da mente. Ficou brincando com a crina dos cavalos até que ela saísse da água e vestisse suas roupas completas.

— Você demorou. O que aconteceu? — Sorriu, enquanto secava os cabelos. Elesis sorrindo sem motivos era um acontecimento ao mesmo tempo raro, estranho e bonito, assim como, por exemplo, as auroras boreais.

Caminhou até ela, levemente enrubescido.

— Eu não achei nada. Até andei bastante, mas... — ficou um pouco perdido. Não queria contar o que havia visto ainda mais cedo, mas a presença dela e o que ele havia visto dela deixou-o momentaneamente desequilibrado — ...foi em vão. Enganei-me, só perdi tempo, desculpe. Mas vejo que aproveitou o tempo, não?

— Ah, sim. Depois de montar a barraca, e como você demorava muito, decidi limpar os cavalos. Mas eles me deixaram tão imunda que eu mesma tive que me lavar, — brincou — a vida anda tão mecânica que me deixa contente fugir da rotina um pouco.

Os galhos secos crepitavam ao fogo, esquentando os dois no gélido período noturno. Havia algum tempo que, em quase todas as noites, Erudon observava que a parceira, compenetrada, sempre folheava algumas anotações, conferia mapas, usava a bússola e mais outros instrumentos, fazia ainda mais algumas notas, e, por fim, escrevia no já conhecido caderno de capa vinho. Esse comportamento todo seria normal em tempos de grandes expedições, mas parecia um tanto fora de propósito na situação de calmaria atual. Enquanto preparava o jantar, o jovem resolveu arriscar.

— Escuta, Elesis... o quê você tanto anota? Até onde me lembro há anos não fazemos relatórios de missão ou algo do tipo. — sorriu ao pensar na Comandante Lothus — Isso era nos tempos da Grande Caçada, ou quando éramos líderes de nossas Ordens e a rainha tinha que ficar a par de tudo... Mas continuar com a prática militar me parece um tanto... despropositado.

— Bem, é difícil largar hábitos. — e voltou ao que estava fazendo.

Pela resposta curta e seca, Ronan sabia que ela havia dado o assunto por encerrado. “Meh... essa grossa de agora em nada lembra a mulher que vi hoje mais cedo”, resmungou. Por sorte, ela não ouviu nada, ou ao menos fingiu bem.

Ao acabar o jantar, ambos deitaram por um tempo de costas, adiando o momento de entrar na tenda. Uma das coisas mais incríveis em uma região árida não é o que com dificuldade se encontra na terra, mas sim o que fica, em fartura, acima de nossas cabeças. Nesses lugares a noite pode ser tão limpa que se tem a impressão de dobrar o número de astros celestes. E, em noites especiais, a lua cheia mostra-se às criaturas terrestres em toda a sua pompa e em todo o seu esplendor, e reina, tranquila, entre as estrelas, suas milhares de súditas. Por sorte, aquela era a última noite nessas condições antes que o disco prateado começasse a diminuir.

— Parece que elas pulsam, não é? Digo, as estrelas.

— Verdade. É como se fossem... vivas. — ela falou.

— Daqui, a constelação de Ernasis brilha bastante.

— ...E a de Armenian mais ainda.

— Pode até ser... mas para mim, Ernasis continua sendo a mais bela. — e findou a conversa, sorrindo.

Vencida pelo cansaço, Elesis recolheu suas coisas com um pouco de desmazelo e foi dormir. Ronan permaneceu mais um tempo acordado, refletindo. Alguma coisa nebulosa desenrolava-se e revela-se em seu coração, mas ele não sabia exatamente o quê. Uma tipo de frenesi se apossava dele, e também uma curiosidade louca, um desejo de algo que não sabia definir. Olhou para o céu, como quem roga por uma resposta. “Não”, pensou. “Não tem como ser isso...”. Era uma ideia muito cretina, aquela…

De esguelha, por reflexo, viu o diário que a amiga lia e relia ainda mais cedo e que descansava naquele momento debaixo de uma pilha de pergaminhos e papéis. Instintivamente ergueu o braço para pegá-lo. Ele estava curioso quanto ao conteúdo, e também, caso tivesse sorte, talvez a amiga também estivesse se sentindo assim como ele estava, e talvez ela não quisesse contar. Entretanto, deteve-se. “Não, também não posso ir invadindo a privacidade dela desse jeito. Seria como jogar minha honra no abismo”. Olhou novamente o caderno, inocentemente perto dele. “Mas... se fosse importante ela teria escondido melhor, penso.” Estava decidido a pegar, quando foi tomado por outro pensamento “Ou talvez ela tenha deixado tão a vista porque confia em mim, ou ainda isso é um tipo de teste”.

— Ah, que se dane.

E, debaixo de inúmeras estrelas, tantas quanto os grãos de areia na praia ou as folhas nas árvores, e iluminado por elas, que estavam sendo não só testemunhas, mas também cúmplices do ato, Ronan abriu o caderno de Elesis.


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Notas finais do capítulo

Oooh! O que será que o Ronan vai encontrar nesse diário que poderá mudar a relação dele com Elesis?
Não percam o próximo capítulo! E se quiserem e puderem, não deixem de comentar. Dicas, críticas, sugestões ou elogios são importantes para melhorarmos ainda mais. Leremos cada comentário com carinho. ç:



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