Menina Gaunt escrita por RafahAmorim


Capítulo 9
Ósculo


Notas iniciais do capítulo

Adorei escrever esse capítulo, e espero que vocês gostem tanto quanto eu.



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O som do vento lá fora não passava de um ruído agradável dentro da biblioteca onde os dois ocupantes mais novos da casa se encontravam.

"O que é um ósculo?", indagou Merope lembrando-se de ter visto a palavra em algum dos livros que lera na semana anterior.

Tom pareceu surpreso, e soltou uma breve risada discreta. "Ósculo significa..."

Porém, antes que pudesse terminar, um baque alto os alcançou. Merope sobressaltou-se ao ouvir o grito de Darcey. A jovem precipitou-se, saindo rapidamente da mesa onde faziam seus estudos rotineiros, e seguiu para cozinha com Riddle em seu encalço. Quando chegaram ao cômodo, a moça foi acometida por uma onda de choque ao encontrar Darcey estatelada no chão. Seu semblante demonstrava a mais pura dor. Merope não tardou a se abaixar e Tom repetiu o gesto.

"Deixe que eu faça isso" Thomas, que viera movido pelo barulho, tomou o lugar de Merope, passando o braço da senhora em volta de seu pescoço. Pai e filho alçaram a idosa e levaram-na rapidamente para o quarto de serviçal. Merope se postou ao lado da cama, ajoelhada no chão de madeira. "Darcey", chamou em desespero.

"Tom", pronunciou o dono da casa. "Chame o doutor, Parsons. Rápido!", acrescentou quando notou que o filho continuava parado, atônito.

Em silêncio, Tom saiu do aposento. Vinte minutos depois, ele voltava com o baixo e calvo médico que trazia uma grande bolsa de couro preto. Thomas buscara uma compressa fria que Merope tratou de colocar na região onde Darcey indicava entre ruídos. Ficava próxima ao quadril, do lado esquerdo. Mary juntara-se a eles logo após a saída de Tom.

O doutor, depois de preparar seus equipamentos, pediu que todos se retirassem do quarto; Thomas perduraria. Angustiada, Merope, pediu em tom de súplica: "Posso ficar também?" Ela entendeu que ouviria uma negativa, quando Tom interveio.

"Ela é sobrinha de Darcey.", mentiu não se importando com o olhar fulminante de sua mãe.

O doutor assentiu. Mary e Tom saíram e Merope sabia que o rapaz ouviria um sermão. Contudo, não pensaria nisso naquele momento. A situação de Darcey ocupava toda sua mente.

Parsons examinou a mulher por longos minutos e estabeleceu o diagnóstico. "Fratura pélvica."

Merope não sabia o que aquilo significava, no entanto, analisando a expressão de seu patrão, compreendeu que não era nada bom. O clínico acrescentou que ela precisaria ser internada urgentemente. Medicou a pobre senhora com algo que aliviaria a dor temporariamente, e partiu do quarto sendo acompanhado por Thomas. Tom voltou em um tempo que Merope não soube mensurar.

"O que ele disse?", fechou a porta e foi até Merope, que levantara-se e estava ao pé do leito provisório.

Pela velha janela, já se enxergava que o céu era um breu estrelado.

"Fratura pélvica.", sussurrou para então mirar Tom; ela reprimia as lágrimas. "O que isso quer dizer?", Merope não se deu conta de que era a segunda vez no mesmo dia que lhe perguntava o significado de algo.

"Quebra da bacia." Pela primeira vez, recebia a resposta. "É grave nessa idade", emendou com pouco tato; a fisionomia tensa.

A porta foi aberta novamente, e Thomas adentrou o recinto ladeado por quatro homens trajados de branco; dois deles carregando uma maca. Logo, Darcey já estava sendo carregada pelos enormes indivíduos. Mary, que entrara junto dos funcionários, os seguiu não sem antes demonstrar, pela mirada, seu desgosto com Merope.

"Senhor.", ela chamou ao perceber que o herdeiro do lugar fazia menção de sair. "O que vai acontecer agora?"

Merope sabia que não receberia mais notícias a respeito da idosa até que ela retornasse para a casa. Despossuía o direito de interrogar seus chefes, contudo, não conseguiria dormir sem ter ao menos uma fonte de informação sobre sua querida Darcey.

"Não sei ao certo.", respondeu Tom com o semblante pesado. "O hospital fica em Great Hangleton. Se a situação for grave, uma cirurgia será necessária. E diga 'Riddle'", falou autoritário. "Sinto-me um velho caduca cada vez que me chama assim."

Sem olhar para trás, ele saiu. E de repente, Merope sentiu que o quarto duplicara de tamanho. Pela primeira vez desde que chegara àquela casa, dormiria sozinha.Tardou a ser capturada pelo sono, e quando aconteceu, seu subconsciente amaldiçoou-lhe com pesadelos. Acordou encharcada de suor. Limpou-se com o lençol e voltou a dormir horas depois só para ser acometida pelos mesmos sonhos terríveis. Dessa vez, só despertou com o sol nascendo.

Poucas horas mais tarde, encontrava-se na cozinha explicando a Frank, Finn e Penny todo o acontecido.

"Oh, céus!", exclamou Frank, atordoado. "Que lástima!" Finn também parecia bastante balado com a condição de Darcey.

A única exceção era Penny, que não fazia questão de esconder sua impaciência. "Só mais um motivo para que eu comece logo meu trabalho.", ela foi em direção à pia de mármore. "O que?", questionou cínica ao perceber os olhares de indignação dos presentes. "É isso o que significa. Apenas mais serviço, querida. Para mim e para você.", terminou maldosa em direção à Merope.

"Você vai ficar velha um dia.", garantiu Finn que não estava com a costumeira expressão sorridente no rosto cheio de marcas de espinhas. Ausentou-se, pela porta dos fundos, depois de fazer um aceno modesto na direção de Merope e Frank, que estavam próximos à abertura que levava aos restante dos aposentos.

"Fedelho.", xingou Penny enquanto virava-se para lavar a louça do café-da-manhã.

"Não ligue para ela." Frank pediu em voz baixa ao notar que Merope rebateria. "É amargurada, a pobre coitada. Se tiver notícias de Darcey, me avise, sim?", adicionou com um olhar gentil.

Merope consentiu com a cabeça e, observando o velho homem sair, não pôde deixar de pensar que Frank e Darcey formariam um belo casal. Torceu para que Darcey tivesse tempo de notar isso também.

Por mais que lhe custasse admitir, sabia que, em partes, Penny tinha razão. A falta de Darcey designava muitas coisas, inclusive tarefas extras. Decidida a fingir que a megera não existia, a moça tratou de inciar seus afazeres.Por volta do meio-dia, quando pegava, sozinha, os pratos para levá-los à mesa, Tom apareceu. "A lesão realmente foi grave, então eles terão que operá-la.", e, sem dizer mais nada, voltou de onde viera.

Merope ficou parada sem saber o que dizer. Quando serviu o almoço, ninguém agia como se algo de ruim estivesse acontecendo. Ela sentiu-se impotente e desamparada, não podendo fazer nada pela primeira pessoa que lhe ensinara o que era carinho. O que seria de Darcey se os Riddle resolvessem não pagar todo o tratamento? Thomas certamente assumiria a responsabilidade. Todavia Mary, não. E se ela convencesse o marido a não arcar com as despesas? Tom poderia impedir.

Não, ela dispensou o pensamento. Por mais que o rapaz tivesse deixado de ser tão rude, não era do seu feitio ajudar sem receber nada em troca. Fizera-se bem claro no passeio que haviam feito dias atrás.

Merope carregou suas dúvidas por três noites. Sua agonia era tanta que não teve outra alternativa senão encarar Tom e buscar informações. Era quase meio-dia de um sábado, ele retornava da rua e estava prestes a subir as escada, quando ela o interceptou. Era sua oportunidade já que, desde que a senhora caíra, as aulas haviam parado.

"Riddle, tem alguma notícia de Darcey?", fizera questão de mostrar que não esquecera a ordem.

Ele, que estivera com um pé no primeiro degrau, se colocou por inteiro à sua frente.

"Encontre-me às onze da noite, lá trás, próximo à porta da cozinha. Leve uma capa de frio." Subiu as escadas logo em seguida.

O que uma saída, aquele horário da noite, poderia ter a ver com a saúde de Darcey? Merope não estava disposta a questionar. Fez toda sua tarefa com agilidade e em silêncio. Tom não precisava dizer que o encontro era sigiloso. Às nove, tomou um banho e colocou um vestido que outrora fora verde musgo, mas que agora não passava de um desbotamento quase cinza. Calçou as habituais sandálias de tiras e pegou seu único, e mirrado, casaco preto. Aguardou com ansiedade, sempre indo à cozinha para verificar o relógio de pêndulo pregado à parede acima da pia. Perguntou-se se sua inquietação era por curiosidade ou por sair com Riddle.

Finalmente, faltavam cinco minutos. Ela apagou a luz e seguiu para o exterior. Tom apareceu pontualmente às onze horas.

"Pensei ter dito para trazer uma capa de frio.", sibilou.

"Não tenho uma.", sussurrou se encolhendo. Ainda era meio de agosto, porém, ao anoitecer, a temperatura sempre baixava. Merope agora sentia, na pele, a consequência da falta de um agasalho mais robusto.

"Tome.", tirou seu sobretudo preto e o entregou à Merope. "Pegue antes que eu mude de ideia", terminou grosseiro percebendo que ela não se movera.

Não desejando outra bronca, ela pegou a roupa e a vestiu, sentindo um alívio instantâneo.

"Por aqui", disse Tom sem esperar por um agradecimento. Ele seguiu para a outra extremidade, até onde a floresta permitia. Ela caminhou rapidamente para a mesma direção. Desceram o monte onde a casa se situava, e Merope entendeu porque estavam tão rentes às árvores. Dali, provavelmente seria difícil que alguém, Mary ou Thomas, olhando pela janela, os visse.

Chegando à planície, Tom informou. "Te levarei ao hospital." Merope, ainda surpresa, sorriu involuntariamente. Melhor do que saber sobre Darcey, seria vê-la. Andaram por mais alguns minutos até toparem com um carro que estava numa rua deserta que levava para fora da cidade. O veículo dos Riddle era o mais moderno entre os poucos que haviam no vale. Era preto, com rodas altas, grandes e finas; os aros que cobriam sua extensão pareciam com o de bicicletas. A parte superior era quadrada e a superfície refletia a luz lunar

Riddle contornou o carro chegando ao banco carona. Abriu a porta. "Entre.", ordenou duro. Merope, um pouco atônita, acomodou-se nos bancos luxuosos de couro bege. Ela nunca estivera em um carro antes. Tom apoderou-se de seu lugar atrás do enorme volante. Logo, seguiam pela pequena estrada. A moça se agarrava à janela, um pouco assustada com o movimento inédito. Riddle dirigia com habilidade e percorreu todo o escuro trajeto em silêncio. Em meia hora, o caro parou perto de um grande edifício amarelado, com janelas grandes e arredondas na parte superior.

Tom saiu do carro e Merope o imitou. Ele atravessou a rua e foi para o fundo do prédio. Merope — que lia com orgulho o letreiro "Great Hangleton Hospital" — o acompanhou segundos depois de perceber que ele já se aproximava da estrutura.

"Escute." Tom parou de súbito quando enfim chegaram na entrada traseira do lugar. Merope teve que se imobilizar rapidamente para não esbarrar nele. "Consegui uma autorização especial para que você visite Darcey. Contudo, ninguém pode saber. Não demoraremos mais que dez minutos lá dentro. Então, seja rápida."

Um homem com vestes brancas e ruivo surgiu da porta mais próxima. "Senhor Riddle.", estendeu a mão para Tom quando diminuiu a distância. Pelo seu sorriso e simpatia até para com a própria Merope, ela teve certeza que a tal autorização fora concedida depois de uma boa quantia em dinheiro. "Já deu as instruções para a senhorita?", quis saber sorridente demais.

"Já, já.", bufou impaciente o mais alto e passou a mão direita sobre os fios castanhos; uma mania com a qual Merope se familiarizara. "Vamos. Quero acabar com isso o mais rápido possível."

Os três adentraram o hospital e instantaneamente Merope sentiu calafrios junto do forte cheiro de álcool. Pareciam estar num depósito, grandes caixas cobrindo o espaço. O homem abriu mais uma porta e os levou por corredores desertos e no mais completo silêncio. A jovem mulher perguntou-se porque Riddle estava disposto a se sujeitar àquela situação por ela.

Subiram dois lances de escadas e logo o guia abria um grande portal de madeira que dava para um espaço igualmente enorme, repleto de leitos metálicos e brancos ocupados por figuras que eram difíceis distinguir no escuro. O homem andou até parar na quinta cama do lado direito. Merope e Tom fizeram o mesmo.

"Por favor, não se demorem. E sem choros altos.", acrescentou para Merope com um sorriso, dessa vez, mais forçado. Encaminhou-se para a porta.

Merope então percebeu que estava a poucos passos do leito de Darcey. Ela se abaixou ao lado da senhora e a abraçou, mas a idosa não deu o menor vestígio de sentir o toque. Estava pálida e dolorosamente mais magra. Apesar de terem pagado todo tratamento — e Merope era grata por isso — estava claro que os os Riddle não estavam dispostos a aceitar mais despesas que o necessário. O lençol que a cobria era fino e Merope temeu que a aquilo não fosse o suficiente para deter o frio.

"Será que eles não têm um cobertor ou algo do tipo?", virou-se para Tom num sussurro agoniada percebendo que duas lágrimas já caiam de seus olhos. Ele, que estivera todo o tempo com os braços atrás das costas assistindo a cena um pouco afastado, garantiu. "Providenciarei isso." E foi para a porta de madeira.

Merope ficou mais à vontade para abraçar a senhora com Tom distante. "Darcey.", murmurou para a velha que, apesar de não carregar o semblante de dor do qual ela se recordava desde a última vez que a vira, não parecia muito melhor. Sussurrou-lhe palavras de conforto até que o rapaz retornou.

"Temos que ir.", avisou Tom.

Merope depositou um singelo beijo na testa da senhora e saiu junto do patrão. Retornaram pelo mesmo caminho acompanhados do funcionário. No carro, fizeram o caminho de volta pelas ruas referidas. Desceram do automóvel e Tom acompanhou a moça até os fundos da casa. Ela devolveu-lhe o casaco.

"Obrigada.", murmurou. Antes que pudesse explicar a imensidão do que aquilo significara, Tom acercou-se dela ao ponto de ficar perto o bastante para que a empregada pudesse enxergar suas pequenas e escassas pintas no rosto.

"Te deixei sem uma resposta dias atrás.", sussurrou sedutor. "Isso é um ósculo."

Tom passou a mão por trás da nuca de Merope e a beijou com gentileza; o toque de intensidade na ação fez a jovem cerrar os olhos instintivamente e corresponder-lhe com a mesma vivacidade.


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Notas finais do capítulo

Ficarei muito feliz em responder seus comentários.



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