O Cisne Acorrentado escrita por louisevondini


Capítulo 6
Capítulo 6




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OS VENTOS COMEÇARAM A SOPRAR mais forte no bosque que ficava nas imediações do Santuário. Tudo ao redor eram precipícios e um solo castigado pelo calor, seco e improdutivo. Porém, naqueles poucos metros quadrados, as árvores cresciam e floriam livremente, as oliveiras tomavam conta de quase todo o terreno.

Os galhos de uma árvore arranhavam incessantemente a madeira da janela e da parede de um quarto em uma cabana no início do bosque, o som percorria livremente o cômodo e repercutia ainda pela sala e pela cozinha suavemente, em conjunto com a brisa que balançava as cortinas e levantava as folhas brancas com grandes números negros impressos do calendário. Uma folha caiu e flutuou até o chão, arrastando-se pela madeira escura até que parou sob a sola de um sapato preto lustroso.

Alexiei Hyoga Yukida olhou casualmente para o chão e viu o papel com o grande número doze que tomava conta de quase toda a folha, e, logo abaixo deste, o nome do mês.

Pegou a folha e jogou-o no lixo, continuando sua procura pelos armários daquela casa em que nunca esteve antes.

Shun Amamiya abriu seus olhos verdes quando ouviu um baque em seu quarto. Piscou algumas vezes e sentou-se na cama, percebendo estar apenas usando sua calça preta e sua camisa branca, sem gravata ou meias ou paletó. O som que o acordou, da janela batendo na parede do lado de fora, voltou a ressoar no quarto. O vento não fora tão forte a ponto a destrancar uma janela que abria para fora, mas a fechadura estava frouxa e ele tomou nota de que deveria consertá-la um outro dia.

Lá fora a noite estava densa e ele podia ver algumas estrelas e o brilho da lua apagando parcialmente a luz de algumas. Os galhos da árvore entravam pela janela, machucando o tecido branco de algodão da cortina e Shun tomou uma segunda nota: cortar os galhos pela manhã.

Girou o corpo e levantou-se, os olhos percorrendo o quarto, ainda sonolento. O vento frio fazia quase tudo ou tremer ou balançar. A corrente na parede, suspensa por dois pequenos ganchos, formando um M, batia e voltava, o ruído ecoando por seus próprios anéis de ferro.

Quem a visse talvez duvidasse do bom gosto do dono da casa, que a havia mobiliado com suas próprias mãos, mas, para Shun aquele pedaço de corrente de quase dois metros não era mera parte da decoração. Aquele era o símbolo, o troféu, da primeira grande vitória de Loren Manara em seu treinamento, quando ele conseguiu dominar completamente as técnicas com correntes que seu Mestre insistiu em lhe ensinar, e empatou com Shun Amamiya numa batalha onde todos os golpes teriam que vir do aço maleável e não dos próprios punhos.

Na batalha, grande parte da corrente se partiu e caiu em um abismo. O que restou Loren deu a seu Mestre, como um presente.

E o presente movimentava-se como um pêndulo de um relógio antigo, que tocava um sino à meia noite.

Os olhos do cavaleiro de Andrômeda pousaram sobre o relógio e eram apenas onze.

Como se só então houvesse acordado de um sono que não foi longo, Shun sentiu um cosmo tão incomodamente perto, na sua casa. Seus pés procuraram os chinelos.

Hyoga, pela quarta vez, acrescentou mais algumas folhas de cidreira à água fervente, acreditando, pela cor do chá, que ele estava ainda muito aguado. Enquanto a fervura desaparecia, para logo depois a água voltar a borbulhar, tentava se lembrar se Shun gostava ou não de açúcar no chá.

Sua memória lhe revelou que ele nunca havia sequer dado importância às preferências do homem com quem dividia a cama apenas durante as noites, desaparecendo quando o sol raiava.

O chá estava pronto.

Um ruído de passos suaves, aveludados, surgiu em suas costas e ele não precisou virar-se para saber quem era. O cosmo tranqüilo, mas ao mesmo tempo ansioso de Shun preenchia tudo ao redor. Seria ânsia de vê-lo, ou de tê-lo pelas costas o mais rápido possível? Hyoga não sabia e preferia não especular.

— Você gosta de açúcar no chá? — Perguntou o cavaleiro de Cisne derramando o liquido em duas xícaras igualmente. Ele virou-se apenas um pouco, olhando por cima do ombro, quando a resposta não veio.

Shun puxou uma cadeira, na ponta oposta da mesa em relação à bancada onde Hyoga fazia o chá, e sentou-se, olhando para ele com um misto de curiosidade e surpresa.

— Um pouco — disse o cavaleiro de Andrômeda. — Nem doce demais, nem amargo.

Hyoga voltou-se e colocou apenas uma pequena quantia na xícara de Shun e um pouco mais na sua. Sentou-se na mesa, empurrando o chá para o homem com longos e ondulados cabelos verdes que flutuavam no ar, levados pela fria e constante brisa.

Arigatou gozaimashite.

Douitashimashite — respondeu Hyoga.

Shun tomou apenas um gole do chá e suas sobrancelhas se uniram em desgosto. Hyoga o olhou curioso e fascinado.

— Está forte demais.

— Desculpe.

O cavaleiro de Cisne também tomou apenas três goles e não conseguiu mais. Os dois fitavam suas xícaras azuis de porcelana com desenhos de violetas, o silêncio recaindo sobre eles como sempre acontecia, mesmo há cinco anos atrás, não apenas quando não tinham nada a dizer um ao outro, mas também quando o que queriam falar era talvez mais do que pudessem exprimir em palavras.

Foi a voz de Shun Amamiya que quebrou aquele comum, porém inquietante silêncio.

— Como você soube onde eu morava?

Os olhos de Hyoga se estreitaram, mas quando viu que Shun realmente não sabia, respondeu:

— Você me disse. Estava quase dormindo, mas disse.

— Eu disse...? — Sua voz saiu baixa, quase inaudível.

— Disse onde ficava e também disse que queria chá. Eu fiz porque achei que você ainda acordaria durante a noite.

— Como você poderia saber?

— Não sei. Foi um palpite.

Os olhos do cavaleiro de Andrômeda deixaram de fitar os azuis de Hyoga e percorreram a mesa, parando no chá.

— Péssimo chá — ele disse, seu rosto ainda sério.

— Eu já pedi desculpas.

— Duas vezes. Uma aqui, outra na escadaria. Uma desculpa que eu aceitei, mas você quer mais. Mais do que posso dar.

— Você está me negando uma segunda chance? Você sempre dava uma segunda chance aos outros, às vezes uma terceira e uma quarta.

Shun levantou-se com sua xícara na mão, pegou a de Hyoga quando passou por ele e jogou o chá pelo ralo da pia, pegando mais ervas no armário e colocando água para ferver.

— Você se esquece de uma coisa, Alexiei: o Shun que você conheceu não existe mais. Eu não posso dar uma segunda chance a você, eu não vou arriscar. Sou eu, minha escassa felicidade, que está em jogo. São coisas que eu não posso apostar ou eu... Ou eu vou sumir. Eu vou desaparecer.

A mão dele tremeu levemente enquanto segurava o bule, que, por sua vez, tilintou contra o fogão, o som ecoando pela cozinha que estava em silêncio.

Sentiu as mãos de Hyoga apertarem seus ombros e o corpo dele colou-se em suas costas, o rosto escondendo-se na curva de seu pescoço, cheirando os cabelos e a pele pálida. Hyoga puxou a mão de Shun, que segurava o bule, e beijou cada dedo até encostar seus lábios quentes — e frios ao mesmo tempo — na palma.

— Não faça isso... Por favor, Alexiei... Eu tenho tanto medo.

— De mim?

— De acordar sozinho. De morrer mais uma vez... — murmurou, a mão livre correndo sua própria cintura num abraço em si mesmo.

Hyoga suspirou e se afastou apenas por um segundo, em que seus braços enlaçaram o corpo menor, a cintura esguia sob a camisa branca. Shun estremeceu e conteve a custo um leve gemido.

— Eu não vou fazer isso, por Athena, por todos os deuses, eu não farei — disse Hyoga, quase gemendo, enquanto provava com beijos a pele que há tanto tempo tocou e que não deu valor até o dia em que as lembranças lhe doeram. — Dê-me uma chance. Uma única. Eu esperei todos esses anos por isso. Para te dizer que eu errei, para te pedir as desculpas que você aceitou e a chance que não quer me dar. Eu morria durante o sono, quando eu te revia chorando e sendo engolido pela escuridão, apenas para acordar e morrer novamente quando a noite caísse. Por Zeus, Shun, uma única chance...

Os olhos de Shun umedeceram-se e filetes de lágrimas escorreram por seu rosto, pingando nos braços fortes que o abraçavam. Não eram lágrimas de felicidade pelo que escutava — porque, de certa forma, saber que Hyoga sonhava com ele todos os dias era confortador para o rapaz adormecido que talvez, apenas talvez, ainda existisse dentro de si —, mas de tristeza. Ele nunca, em todos esses anos, desejou mal ao homem que amava.

— Eu sinto muito, Alexiei... Eu não posso. Não quero que você sofra, eu nunca quis, mas eu... Como eu poderia? Depois de tantos anos acreditando que você nunca me amou e nunca amaria, e você aparece dizendo essas coisas.

— É assustador, eu sei — Hyoga afastou-se, fazendo Shun virar-se e encará-lo, segurando-o pelo queixo pequeno. Beijou suavemente a bochecha rosada, interrompendo o caminho do fino rio de lágrimas. — Mas eu quero que você me ouça. Pelo amor que você tem por mim, porque eu sei que você ainda me ama.

Os olhos de Shun se arregalaram e seu rosto pareceu pegar fogo. Impossível esconder alguma coisa daqueles olhos de gelo que tudo via e que com nada pereciam se importar. Mas naquele momento o cavaleiro de Andrômeda viu um brilho do que lhe pareceu ser esperança nos olhos azuis de Hyoga. A maldita e bendita esperança.

Os braços do cavaleiro de Cisne o ergueram do chão. Assustado, Shun esboçou um protesto, mas Hyoga sorriu ternamente e o sentou na mesa. Puxou a cadeira em que esteve sentado há pouco e ficou de frente para Shun, mas perto o suficiente para que suas mãos pudessem acariciar as coxas roliças sob a calça preta.

Os cabelos longos do cavaleiro de Andrômeda fizeram uma cortina ao redor de seu rosto quando ele baixou a cabeça, envergonhado pela posição em que estava: suas pernas abertas e Hyoga praticamente no meio delas.

— Olhe para mim. — Disse Hyoga, não uma ordem, mas uma súplica.

Os olhos verdes de Shun Amamiya fitaram o rosto lívido do homem à sua frente.

— Eu quero que você ouça bem o que eu vou dizer, antes de julgar se deve ou não me dar uma segunda chance. Você esta entendendo? Eu tenho muita coisa para te dizer, tantas que não conseguiria falar nem numa noite inteira ou duas. Mas você vai ter que ouvir o mais importante.

Shun assentiu ligeiramente com a cabeça e Hyoga Yukida acariciava suas longas coxas quando começou a falar.

Só existe uma verdade sobre o que eu sentia por você há cinco anos: gratidão.

Eu sempre fui agradecido por você ter salvo minha vida, nunca escondi isso, você sabe. Você era o mais próximo de um melhor amigo que eu tinha. Mas, mesmo assim, nós dois vivíamos num mundo aparte.

Eu não poderia te dizer porque beijei você naquele dia, porque levei você para a cama, isso é ainda um mistério até para mim, e prefiro deixar assim. É uma parte do passado que ou não se encaixa, ou é perfeitamente compatível com todas as outras. Complicado, essa é a palavra.

Eu queria poder te dizer agora que te amava de uma forma diferente, de uma maneira sádica, mas que ainda poderia ser remotamente chamada de amor. Talvez você pudesse se confortar um pouco e imaginar como as coisas poderiam ter sido diferentes caso eu agisse de outra forma, como condizia a um homem apaixonado.

Mas a verdade é que eu não te amava, e tudo pelo que você passou era inevitável, de modo que não haveria outra saída, senão essa. A mais dolorosa, porém a única.

Eu nunca me esforcei nem mesmo para mentir para você, fingir que gostava ao menos um pouco, que me importava. Sempre pensei que isso traria problemas. Talvez eu estivesse certo. Escolhi a verdade que dói à mentira que falsamente não machuca. Eu não queria mentir para você, não queria ser ainda mais cruel do que já era. Sim, eu sabia que eu estava errado, eu sabia que você sofria, no entanto... Por Athena, é tão difícil compreender, mas eu simplesmente queria continuar com aquilo, queria poder afirmar pra mim mesmo que você era meu, mas eu nunca seria seu. Uma brincadeira sádica que acabou com a sua vida e a minha.

Não foi doloroso para mim partir sem me despedir de você. Eu achei que seria perda de tempo.

Quando o avião decolou senti um alivio, um peso que era deixado para trás e pensei: finalmente livre, finalmente sozinho. Apenas eu e minha mãe, mais ninguém.

Foi apenas quando disse isso para mim mesmo que pude finalmente entender o que você foi para mim durante todo aquele tempo — até então eu não sabia e preferia não saber: você era a corrente que tentava me sufocar. Você me amava e tentava me puxar para o seu mundinho, mesmo que nunca tenha exigido nada de mim; você nunca me pediu nada. Mas o seu amor, apenas isso, tentava me atrair. E eu fui tomado de uma raiva tão súbita naquele avião, tão intensa quando concluí: você queria que eu o amasse, era o seu maior desejo, mas isso significava que todo o meu amor não seria mais dela, da minha mãe. Aquilo foi uma afronta. Se eu tivesse descoberto antes, poderia ter tentado te matar, porque o que você queria era me roubar da minha própria mãe.

Eu te odiei por tanto tempo... Até aquele dia.

Foi apenas um sonho. Você sentado num lugar que era todo escuridão, você próprio era a única luz e chorava, por Zeus, você chorava tão alto e com tanta força que eu acordava sobressaltado e podia jurar que meus ouvidos doíam. E o seu choro só terminava quando você era finalmente tragado pelas sombras.

Eu não sabia o que aquilo significava e achei que fosse apenas um sonho tolo. Talvez por falta de um corpo ao meu lado. Mas o sonho continuou, todas as noites. Dificilmente ele não vinha, e quando isso acontecia eu não tinha outros sonhos.

Passei por todas as camas de todas as mulheres e homens mais belos da aldeia, eu acreditava que era apenas isso, falta de sexo, afinal, era tudo que nós fazíamos, nada mais. Mas não adiantou e comecei a ficar desesperado.

Então aquele peso que julguei ter deixado para trás... Ele voltou, mais esmagador. Eu chorava durante o sono, tremia e um dia me peguei chamando por você. Gritei desesperadamente por você, quebrei tudo que podia ser partido e estraçalhado naquela cabana onde eu morava. Eu estava sozinho, Sora estava na aldeia, na casa de um amigo. Ele ficou assustado com o que viu quando voltou. Mas não mais que eu.

Teve uma época que eu não queria mais dormir. Saia de casa com uma garrafa de vodca nas mãos quando Sora adormecia, e ia para bem longe, no meio da neve. Olhava para aquela imensidão branca, me embriagava e só conseguia ouvir seu nome. Ele não vinha dos meus pensamentos, dos meus delírios, mas da minha própria boca. Eu esmurrava a neve, quebrava a garrafa, e explodia tudo ao redor, mas continuava chamando por você, quase inconscientemente. Foi numa dessas noites, enquanto eu te xingava por me atormentar, que eu disse. Nem eu conseguiria acreditar no que disse, não fosse o eco que repetia as minhas palavras incessantemente.

Eu gritei, caindo de joelhos no chão, chorando:

Pelo amor de Athena, pára com isso, pára de me atormentar, pára de chorar! Você não vê que eu te amo?!

FIM DO SEXTO CAPÍTULO


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