Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 8
O Corvo




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não sei se isso vai me levar a algum lugar... em que esperança eu estou me agarrando nesse momento?”.

Minhas mãos estavam enterradas no seu cabelo cacheado, estávamos ocupados demais para falar, mas acho que só eu estava me controlando pra não sair correndo dali sentindo-me, mal e suja em busca de um objetivo que eu não sei ao certo se é lá muito correto.

Faz um mês sem nenhuma noticia nenhum sinal de ninguém que desapareceu nesses últimos tempos, toda cidade foi posta em cidade de alerta com direito a toque de recolher depois a dez.

“quando será que esse beijou vai acabar?” eu pensava isso de meio em meio segundo.

Eu estava sufocada, a quanto tempo estávamos ali? Uma hora? Duas? Nos fundos do Deque Café, quando combinei de me encontrar com Alex aqui era pôr do sol, agora o céu está completamente escuro e nebuloso.

- Alex- falei afastando-o de mim, meus lábios estavam doloridos pela sua intensa ânsia em mordê-los, alisei o seu rosto e seu cabelo encaracolado.

Eu estava ficando realmente boa em fingir.

Consegui sorrir e tudo e fazer carinho em seu ombro antes que ele me abrasasse.

- você trouxe o que eu te pedi? – finalmente perguntei, acho que essa era a hora certa.

- porque eu tento a leve impressão que você só topou ficar comigo por causa disso? – ele questionou. E ele estava certo, completamente certo, ele foi o canal para que eu conseguisse o que queria, mas eu não admiti isso em voz alta, esses meus fins justificavam perfeitamente os meios.

- é só impressão sua. – disse sorrindo, ele colocou um par de chaves na minha mão.

- uma chave da frente outra dos fundos – disse ele triunfante, realmente não deve ter sido trabalho fácil pra ele conseguir copiar essas chaves para mim.

Apertei as chaves como se elas fossem minha vida.

- eu só tenho uma pergunta – ele me olhou com desconfiança – porque você quer as chaves da casa de Olivia Gremin?

Droga. Eu não tinha uma resposta justificável para isso, Alex poderia dar com a língua nos dentes e meu plano iria por água a baixo, tinha que pensar em uma justificativa mais plausível do que a real, que eu estava desconfiando que talvez Olivia Gremin fosse uma sequestradora em massa de habilidades incríveis e um de cativeiro tão inalcançável.

E deveria haver algum resquício de sua psicose no interior da sua casa.

Se não houver indícios de que ela seja mesmo quem eu penso que é, bem... Talvez possam me internar porque eu estou ficando louca.

-sabe guardar segredo querido? – perguntei no ouvido de Alex.

Ele me puxou mais pra perto, e eu senti nojo de mim.

- qualquer um por você.

- eu e as minhas amigas queremos aprontar uma com ela, coisa de garota – forcei a voz de menina fútil – vamos encher o closet dela de ratos ou qualquer coisa assim.

Ele riu e tornou a me beijar.

- com tanto que eu não me meta em sujeira...

O telefone tocou, graças a Deus! Era minha mãe, ela disse apenas que ia fazer sauna hoje a noite no clube e que deixou as chaves no capacho, quando desliguei o telefone fiz a maior cara de tristeza que pude encenar e disse a Alex que minha mãe ordenou que eu fosse para casa, beijei-o longamente e agradeci a ele pelas chaves.

Entrei no carro, apertando a chave com toda força nas mãos, enterrei o rosto no volante e reprimi um grito que queria escapar da garganta. Eu consegui, consegui a chave que vai me dar o acesso que preciso a casa de Olivia. Mas não tenho medo de ser pega, tenho medo de estar redondamente enganada, de estar enlouquecendo.

Já é junho, e não há nenhuma noticia do paradeiro dos desaparecidos.

Acelero o carro em direção a meu condomínio, respirando pouco e as palmas suando. Preparo uma lista mental de tudo que preciso fazer:

1 – entrar na casa de Olivia.

2 – descobrir tudo que preciso para concluir se minhas suspeitas são verdadeiras ou insanidade.

3 – sair de lá sem ser vista.

Passo no Talharins para comer, minha barriga estava roncando de verdade como se algo estivesse vivo, essa era a lanchonete que meus melhores amigo iam comer antes de serem brutalmente capturados.

Sento-me em uma mesa retangular de madeira nos fundos da lanchonete, tudo na minha vida parece ter sido jogando em uma centrifuga a mil quilômetros por hora, não consigo mais dormir direito tendo pesadelos horríveis com Amanda desfigurada debruçada sobre o corpo morto de Hugo, certa noite comecei a me debater sentindo que algo puxava meus pés no escuro, quando acendi o abajur arfando e suando frio descobri que era apenas um dos meus lençóis que tinha se enrolado nos meus pés em quanto eu dormia.

Paranoia descrevia as grandes bolsas roxas no fundo dos meus olhos, o cansaço na minha pele e as sequelas internas na minha mente, por algum motivo nada me tira da cabeça que Olivia tem envolvimento com todos os desaparecimentos, mas não consigo encaixar as peças... como ela estaria mantendo tantos reféns? Onde? E principalmente porque ela estaria sequestrando pessoas?

Ela parece a menor das suspeitas... mas aquele sorriso maligno que a vi der no dia seguinte ao desaparecimento de Hugo, a pulseira de Amanda em seu pulso e o jeito que ela segurou meu pulso no dia em que me deu carona a alguns meses atrás estavam me levando a concluir uma talvez fantasia que justificasse todos os meus atuais medos.

- senhorita?

Levantei o rosto e acordei da minha confusão interna, voltei ao espaço real em que estava: sentada a mesa do Talharins, a garçonete ruiva de bochechas robustas olhava para mim intrigada com um bloquinho e uma caneta gasta nas mãos.

- hã... Um sanduiche com pão de milho e dois cafés, por favor.

A garçonete levou o bloquinho com o meu pedido e me deixou sozinha comigo mesma de novo, afundada nas minhas conclusões psicóticas e malucas sobre uma tal loirinha de nariz em pé.

Devorei meu sanduiche, tomei um café e o outro levei para tomar no caminho, cheguei na minha casa em menos de vinte minutos, tudo estava no mais absoluto breu, entro, tranco-me e acendo o maior número de luzes na sala, estou prestes a ligar a televisão quando ouço um barulho muito estranho vindo do teto bem acima da minha cabeça.

1...2...3... é só sua imaginação Isa. Só sua imaginação. Digo a mim mesma.

O barulho se repete mais alto, olho lentamente para cima e no ultimo segundo foi como se uma flecha negra tivesse sido disparada até mim, um vulto negrume e voluptuoso atingiu meu peito sem que eu a menos tivesse chance de gritar, começo a me debater no chão contra aquela bola veloz como se o medo tivesse tomando uma forma indefinida, sinto que algo perpassa meu peito e uma dor lacerante começa a queimar no meu tórax, o que me perfurou consigo ver agora, não foi um vulto-flecha e sim... Um corvo.

Agarro o pescoço do pássaro com força e o estico desesperadamente até que ouço um estalo, o corvo para de se debater violentamente contra mim e finalmente morre, jogo o animal morto longe de mim, começo a grunhir tentando assimilar o que houve agora, fui atacada por um pássaro dentro da minha casa, um pássaro tão violento quanto um tigre.

Olho para baixou e velho a mancha escarlate do sangue na minha blusa, tiro a blusa e jogo-a no chão , lá está um corte profundo na fenda dos seios, aliso o ferimento, mas o toque me provoca uma dor terrível, como se ao invés dos meus dedos eu tivesse esfregado brasa em meu corte. Coloco um pano limpo contra o ferimento e me agacho lentamente até o corvo morto do outro lado da sala, suas penas são negras como piche e o bico afiado como se tivesse acabado de passar em um grande apontador de lápis, enrolo o animal com um saco plástico e o lanço para fora da minha casa.

Estou tremendo, com a pele gelada, meu corte dói e sangra constantemente, subo até meu banheiro e umedeço outro pano limpo, começo a fazer a assepsia usual: um pouco de água, um pouco de iodo, algodoes... Acho que isso não vai precisar de sutura.

  Minha mente ainda estava processando o ocorrido, não sei como isso foi possível, foi sobrenatural, foi algo que eu nunca ouvi falar em nenhum lugar antes.

As coisas estavam indo além... Além da razão do normal. Esse ataque é mais uma peça do quebra-cabeça que eu ainda não sei montar, sinto que há uma ligação entre isso e tudo de anormal que anda acontecendo com todos a minha volta em minha cidade. Sinto que esse ferimento que queima em meu peito foi um sinal, um sinal pra eu ficar longe.

Mas eu não vou ficar longe, vou descobrir o que tiver que descobrir pra solucionar esses mistérios que me rondam, se for só loucura na final das contas, ao menos eu terei tentando.

Ouço o som da porta lá embaixo sendo aberta, pelo barulho estridente das chaves e o bater dos chinelos é minha mãe, não sei como vou explicar a ela que fui atacada por um corvo sem que ela perca a cabeça e queira chamar um médico ou qualquer coisa assim, no final das contas decido omitir o fato, jogo todo material de limpeza do corte no lixo e visto uma camisola longa de lã com mangas compridas, o que é bem propicio já que a previsão do tempo diz que esta noite terá uma tempestade.

Desço e minha mãe não questiona muita coisa, tento disfarçar ao Maximo perguntando-a como foi sua sauna, conversamos normalmente até ela decidir ir ao seu quarto. Suspiro aliviada e jogo-me no sofá, não estou com coragem para dormir no meu quarto onde talvez um outro corvo esteja a espreita esperando meu sono para perfurar o meio peito de forma mortal, enrolo-me em uma manta felpuda e aguardo o sono em quanto assisto a um canal culinário, o sono não vem, tentei fechar os olhos e pensar em campos floridos, borboletas e coisas não apavorantes mas toda vez a imagem era substituída por criaturas medonhas vindas da parte mais remota da minha imaginação fértil.

“Deus, por favor, preciso dormir”sussurro quando já passam das duas da manhã.

Estou sentada em um grande campo gramado, coberto por flores azuis  que alisam minha pele, o por do sol laranja-queimado desce devagarzinho até que tudo fica escuro, a lua grande e redonda ergue-se com soberania, até que de trás da névoa noturna de um bosque sai Olivia, reluzindo em um magnífico vestido dourado com um capuz delicado sobre a cabeça e os ombros, a cauda do vestido é infinita, e no seu ombro esquerdo... um enorme corvo de asas pretas, repousando em quando ela o acaricia, tento correr mas tenho a impressão que estou em uma esteira de corrida, correndo cada vez mais rápido em um mesmo lugar. Olivia sussurra algo no ouvido do corvo, que abre seus grandes olhos de diamantes amarelos e avança até mim com garras de faca, garras que perpassam meus ombros e fatiam-me....

São cinco da manhã, acordo com a testa úmida e caída no tapete, é... parece que eu consegui dormir, mas acordei muito mais cansada e muito mais amedrontada do que ontem.

- Isadora de que? – perguntou-me a garota longos cabelos que perdiam o tom artificial de azul e agora ganhavam a tonalidade natural de loiro.

- Isadora Agnes. – respondi piamente.

A garota de cabelo quase azul preencheu o restante do formulário, bateu um carimbo sobre ele e me entregou uma folha amarelada  com os horários das reuniões: Clube de Debates Folclóricos, quintas e sextas ás 16h e sábados as 20h.

- parabéns – disse ela sem nenhum pingo de entusiasmos visível – você agora é membro do Clube de Debates Folclóricos, como membro você pode ter acesso a biblioteca do terceiro andar a sala de reuniões numero 10, três faltas e você está fora.  – ele me entregou o formulário com os temas das próximas semanas e a lista de matérias pelas quais eu ganharei nota extra –  tenha um bom dia! Próximo!

Sai da bancada de inscrições e fui até um canto reservado no pátio, como entrar em um clube renegado e esquecido que debatia criaturas míticas ia me ajudar a resgatar meus dois melhores amigos e várias pessoas desaparecidas?

Isso eu ainda não sei.

Mas eu tinha que começar de algum lugar, não tinha?

Vi a programação dessa semana, a menina de cabelo quase azul disse-me que o presidente do clube é Ícaro Perguin, um cara do segundo ano pelo qual eu nunca tinha ouvido falar na vida, deve ser um desses nerds estranhos, cheios de espinhas, revistas de artigos conspiratórios e pôsteres da playboy, mas isso agora era o que menos importava, com o acesso as pessoas certa, as pesquisas certas e a chave de casa de Olivia eu sinto que isso me levaria algum lugar, não sei qual.

Estou agindo por extinto e não sei se isso é bom ou ruim.

- com licença?- alguém de voz doce e exatamente familiar cutucava minhas costas.

Virei e vi Olivia, a expressão abatida e chorosa quase dramaticamente, o cabelo que outrora estava sempre solto e esvoaçante agora estava em um rabo de cavalo simples mas nada que não escondesse sua beleza iluminadora, ela segurava vários cartazes com a foto de Hugo e seu numero de telefone.

Meu sangue estava petrificado, seus olhos fizeram contatos com os meus e eu senti automaticamente minha cicatriz feita pelo corvo queimar como brasas na pele, relutei contra o impulso de me curvar de dor.

- isso estava preso no seu cabelo – ela abriu a palma da mão.

E nela estava uma pena de corvo, perfeita, negra, intocada.


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