Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 7
Mãos Pretas




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O ônibus voltou a estacionar na frente da escola, a viajem passou em um piscar de olhos. Estávamos de volta, e uma fila de pais inclusive minha mãe nos esperava ali para nos levar para casa e levar nossa bagagem.

- esta viajem foi a melhor da historia das viagens – Sara declarou solenemente em quanto amarrava uma pulseirinha no meu pulso que dizia “ Estive em Cabo D’água e adorei.” Foi gentileza da parte dela comprar essas pulseirinhas para mim e Amanda,em forma de agradecimento pois de fato ela se sentia muito solitária antes de conhecer a gente.  – essas pulseiras são únicas, mandei um hippie fazer antes de partirmos de lá. – Sara completou com um sorriso.

Descemos todos do ônibus, nesse 25 de maio a noite, os adolescente do colégio Albere voltaram da excursão cheios de lembranças, fotos e muito o que contar da ultima viagem escolar de todas, já que de esse era o ultimo ano no colégio.

Abracei minha mãe em quanto ela pegava minha mala, ela estava azeda de saudades e disse que detestava ficar sozinha em casa, cinco dias pra ela foram um suplicio, quando disse que ia comprar um cachorrinho para que ela não se sentisse só quando eu viajasse, ela fez careta e disse que preferia a solidão mesmo a uma bolinha de pelos cheia de carrapatos e dentes afiados.

Olhei de relance uma ultima vez e Hugo estava encostado em um poste, sozinho falando ao telefone, pela expressão dele acho que os pais meio que estavam atrasados para buscá-lo.

- você não quer carona? – gritei para ele antes de entrar na caminhonete da minha mãe.

Ele fez que não com a cabeça e sorriu para mim.

Eu fui embora.

Fiquei tagarelando sem parar sobre tudo o que vivi nesses últimos dias a minha mãe (não tudo,contei uma  versão editada da viajem pra deixar ela feliz) ela pareceu bastante animada, mas bastante sonolenta também, ajudou a descarregar a minha mala e foi para seu quarto com uma xícara de café, entrei no meu quarto joguei a mala no chão e cai no meu chuveiro, tomei um banho que pareceu durar uma eternidade,vesti um short de tecido, um sutiã e coloquei um filme qualquer na televisão, enfiando-me debaixo das cobertas, abri um pouco as persianas para alimentar um habito meio psicótico: observar a casa de Olivia que estava toda escura e supostamente vazia, Desde a decida do ônibus eu não a via, a viajem parece ter afetado bastante sua rotina de beleza porque no penúltimo dia, Olivia parecia cansada, o cabelo mais desgrenhado, os olhos um pouco opacos e os lábios mais descoloridos, como se estivesse gripada ou alguma coisa do tipo. Dava até para disfarçar sua beleza estonteante por cima de toda aquela camada de fatiga que cobria o seu rosto.

Começo a prestar atenção no filme quando sinto minha barriga roncar, vou a cozinha, minha mãe deixou um pratinho no micro-ondas para mim com carne cozida, arroz a grega e rodelas de pimentão, comi tudo com um grande copo de suco de laranja, e voltei para o meu quarto, as pernas formigavam e minhas panturrilhas estavam doloridas, todos os dias de caminhada e passeios da excursão me deixaram morta.

Olhei no relógio da parede, onze e quinze da noite.

Subi até meu quarto,  ao chegar na porta entreaberta senti um vento frio e desagradável, recuei dois passos e fiquei estática no meio do corredor, respirando pesado, como se o clima tivesse mudado como em um terrível filme de terror. Eu estava com medo de entrar no meu próprio quarto.

O toque do meu telefone ensurdeceu-me, dei um salto e um grito fino de susto, pus a mão no peito e me acalmei, entrei no meu quarto sentindo-me muito boba, atendi o aparelho e pulei na cama.

-Isa! – a voz de Amanda do outro lado era de pânico, desespero e cortante.

Senti meu sangue congelar nas veias.

- Amanda? Alô? – eu estava tremendo com o telefone na mão.

Amanda estava chorando.

- ela o pegou! Pegou ele! Levou ele – ela ficava repetindo, soluçando completamente devastada.

Agora eu agarrava o telefone com toda força, eu sabia de quem ela estava falando, sabia exatamente!

- Amanda, acalme-se! Onde você está?

- Hugo! Pegou o Hugo! Levou ele... a gente estava indo pra lanchonete, eu estava dando carona a ele, o carro enguiçou... as mãos pretas... pegaram ele e jogaram em outro carro... –ela estava ofegante - ... eu corri... meu Deus! Ela vai me pegar! Não deixe Isa! As mãos vão me pegar também...

Eu comecei a chorar loucamente.

-Amanda fuja daí... Chame ajuda! – eu berrei ao telefone. – onde você está?

E então ouvi um estalo como se o telefone dela tivesse caído no chão, e em seguida ouvi claramente Amanda relutando contra aquilo que estava a perseguindo:

-NÃO! Pare, me solta, socorro! Me solta...por favor... NÃO!- eu ouvi os gritos dela, depois uma respiração ao telefone, eu estava suando frio. – Isa! Ela é... – foi a ultima coisa que ela disse pra mim.

Seja quem for, pegou Hugo e pegou Amanda também.

- Amanda! Fale comigo! – gritei.

Alguém riu do outro lado da linha. Uma risada medonha.

A ligação caiu, quando tornei a ligar. Estava dando caixa postal.

Eu gritei! Gritei, desesperadamente, atormentada como se eu estivesse ali vendo alguém pegar Amanda e Hugo e não pudesse fazer nada para impedir, comecei a chorar quando minha mãe entrou no quarto com uma faca, ao me ver sozinha ela abaixou sua “arma”  e parou pra escutar o motivo dos meus berros.

Eu contei tudo a ela, ela tentou manter a calma e mandou que eu vestisse roupas de sair e tênis, ela olhava pra mim com tanta proteção que por meio segundo esqueci de todo pânico me envolveu.

Fiz uma breve, porém concreta conclusão no meio tempo em que vestia meu casaco.

-mãe?

- oi Isadora. – disse minha mãe vestido sua calça jeans atordoadamente.

- a senhora sabe quem é a próxima não sabe? – perguntei sem fôlego, meu peito doía e nos meus olhos as lagrimas aflitas não paravam de escorrer.

Ela largou o que estava fazendo e me abraçou com força.

- seja quem for. – disse ela reprimindo um soluço, com certeza pra me encorajar a ter força – eu nunca vou deixar que peguem você.

A campainha soou forte em meus ouvidos, sete vezes no total, assim que esclareci os fatos a minha mãe pedi que ela ligasse para policia, e como era de se esperar quem estava do lado fora da minha casa agora era o agente Roger.

Ele chegou com sua equipe e exigiu que eu contasse nos mínimos detalhes tudo que vivi desde que desci do ônibus até o momento da ligação, chorei ao lembrar os gritos desesperados de Amanda.

- mãos pretas? – questionou o agente Roger

- foi o que ela disse – respondi soluçando – que as mãos pretas pegaram Hugo e iria pegá-la

Ele explicou-me que encontrou o carro de Amanda abandonado em um atalho ermo a doze metros da lanchonete Talharins, e o celular de Amanda no meio fio atrás de um arbusto a dois metros perto do carro. As três ultimas chamadas no aparelho dela foram foram para mim.

- porque ela não ligou para policia? Porque ela ligou logo pra mim? – fiz esse questionamento em voz alta pra mim mesma, mas um dos ajudantes do agente Roger fez questão de responder.

- é isso que nos intriga.

- não sabemos por que, como ou o que o seqüestrados quer com tantos estudantes, e porque não houveram corpos ainda nem pedidos de resgates a família, mas todos estão começando a deixar a cidade por causa do medo.

Depois de pegarem meu telefone celular para quebrar o sigilo e tentarem achar alguma pista mais especifica os agentes da policia se despediram, o agente Roger garantiu que pediria para um dos seus homens montar guarda na minha casa por essa noite e aconselhou que nem eu nem minha mãe saíssemos até o dia seguinte.

Quando estava prestes a fechar a porta, o Agente Roger chamou-me no jardim, fui até lá hesitante.

- achamos isso na carteira do rapaz. – ele o pequeno papel quadrado em minhas mãos, um pouco abarrotado, quando virei era a fotografia, ali estava meu sorriso sem graça e o cabelo molhado jogado para trás, a foto minha que ele tirou no dia em que estávamos voltando do lago do Trovador, quando ele me salvou e levou para casa. Essa era a foto que ele insistiu para tirar e conseguiu.

“ uma foto da garota que nunca morre.”

Segurei a foto com força na palma da mão como se fosse a mão dele, prestes a soltar a minha.

- eu quero de volta – disse para agente Roger, erguendo os olhos pra ele, ele parecia em uma confusão interna entre a frieza que seu trabalho exigia e uma espécie de maré emocional que se formava em seus olhos. – quero Hugo e Amanda de volta.

A risada maníaca que ouviu no telefone retumbou em meus ouvidos.

E o sorriso dos meus amigos invadiu os meus olhos.

Pesar e medo se solidificaram e viraram fúria.

Não sei o que posso fazer, mas farei... Por Diane, por Ágata, por Hugo e Amanda... Farei o que preciso for para no mínimo descobrir o que aconteceu.

O noticiário desta segunda-feira anunciava além do desaparecimento de Hugo e Amanda, a de dois rapazes e uma moça que foram vistos pela ultima vez saindo do bar Cult a 200 km de Camilo (nossa cidade). Eu lia tudo meio pasma, meio entorpecida na cozinha onde minha mãe preparava o café, faltar aula hoje não me ajudou em nada.

Alisei a fotografia de Hugo e Amanda fazendo careta no visor do meu celular.

- eu preciso sair – disse a minha mãe.

Como era de se esperar ela disse não.

- posso ir ao menos ao jardim?

Ela fez um gesto com as mãos para que eu fosse, mas me olhou com uma expressão que exigia que tivesse cautela. Andei até a parte traseira da nossa casa onde ficava uma pequena cerca branca e grama não aparada há muito tempo, sentei-me no chão, abraçando os joelhos e com o queijo apoiado nas mãos fechadas, fechei os olhos pensando onde estariam todos aqueles que conheci, que convivi, será que seus corpos boiavam sem vida em algum rio? Será que eles estão sofrendo nas mãos de algum maníaco sem coração?

Lentamente, muito lentamente começo a sentir o sol de leve em minha pele em quanto prendo a respiração, tudo que eu queria era voltar dois dias no tempo.

Dizer que Amanda é a melhor amiga do mundo

E que Hugo...

E que na verdade Hugo é...

Ouço um ronco de motor que interrompe todos os meus pensamentos, abro os olhos e lá está minha vizinha, escondo-me entre a grama alta e cerca branca até os limites que dividem minha casa da dela, ela parece que também não foi a aula hoje.

Mas não por tristeza...

Ela desceu de seu carro em um estonteante top que deixava a lisa barriga imaculada de fora, calça jeans, óculos de sol. Percebi nela uma beleza renovada: os cabelos ganharam mais volume dourado e a pele mais viço como chocolate branco recém-derretido.

Ela sorria de orelha a orelha.

Cheguei perto o suficiente para vê-la pegando na bolsa de couro tingido as chaves de casa, começo a sentir o rosto e as mãos geladas, o corpo perdendo a compostura, o ar me faltando nos pulmões...

Porque no pulso de Olivia, está a mesma pulseirinha que Amanda ganhou de Sara, inconfundível.

Sei que é a pulseira de Amanda.

“essas pulseiras são únicas, mandei um hippie fazer antes de partirmos de lá” foi o que Sara disse.

Não pode ser. Não pode ser...

Olivia entra em sua casa e fecha a porta.

Não pode ser, mas é.

Tenho a leve e louca sensação que a seqüestradora maníaca que tem colocado nossa cidade em pânico, que me fez chorar a noite inteira, que por algum motivo insano está dando cabo de várias pessoas que conheço e amo chamasse...

Olivia Gremin. 


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