Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 6
O Trajeto




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20 de maio. Um sábado de sol tão forte que fazia a pele tostar.

Coloquei minha frasqueira e minha mochila no compartimento acima do meu acento no ônibus e sentei-me ao lado de Amanda que dormia com os fones de ouvido enterrados até os tímpanos.

- bem galera, essa a viajem de vocês mas temos algumas regas que vocês sabem bem: nada de bebidas, nada de garotas e garotos no mesmo quarto depois das dez, nada de sair do hotel em nenhuma circunstancia, se descumprirem alguma regra pegam o primeiro ônibus de volta pra cá entenderam? – o nosso instrutor dizia tudo isso de bermudas curtas, pernas muito peludas e um apito pendurado no pescoço, além do boné com um tigre bordado, símbolo da nossa escola. 

Todo mundo gritou que entendeu, mas eu aposto meus dois dentes da frente que Thiago Salles e os outros caras do time de futsal estão levando no meio da bagagem latas e mais latas de puro álcool e seus deleites.

Uma viagem com oitenta jovens de cinco dias a uma pacata cidade litorânea e histórica do interior sem dosesinhas de aguardente era praticamente impossível. Ninguém falava nos museus, nas peças teatrais, nas visitas aos monumentos... todos queriam festas nos quartos, ficadas nos reservados e as famosas pegadinhas com balões d’água escondidos nos colchões e bombas de chumbinho na tampa das privadas.

O ônibus começou a andar, e alguém logo pegou um violão e começou a dedilhar aquelas musicas clichês dos anos oitenta que todo mundo sabe pelo menos uma frase da letra. Olhei para o lado esquerdo e vi apenas Hugo com o braço em torno dos ombros de Olivia o queixo apoiado em sua cabecinha loira, ele olhou pra mim com doçura e eu virei a cara. Hugo andava estranho, parou mais de falar comigo, não me mandava mensagens de texto nem ficava longas horas conversando comigo sobre o futuro comigo como costumava ser antes, o sol dele era a Olivia Gremin. E não pude deixar de sentir o pesar disso tudo.

Uma viagem de quinhentos quilômetros, dividida em momentos de ápice e silencio, tive até tempo de ler um pedaço de “A Odisseia” antes de começar a babar e roncar em cima de livro.

 Quando chegamos a cidade de Cabo D’água, estávamos todos só o pó, cansados, sujos e mortos de fome, uma pausa rápida em um posto de gasolina para comer e todos fomos direto para o hotel.

 O local era um sonho, salões modernos, sala de jogos e deque. O quarto 222 era o meu, de Amanda e de Sara Florence, e “garota girafa” que não foi solicitada em nenhum outro grupo para divisão dos quartos e por gentileza oferecemos para ficar conosco. Revezamos um banho no maravilhoso chuveiro quente. Joguei-me na cama logo em seguida com pirulitos azuis e uma revista bem velha que usurpei da recepção.

- se não se importam vou ficar um pouco no deque. – declarou Sara saindo com uma pequena luneta e uma revista de artigos sensacionalistas.

Amanda também saiu, de biquine e roupão branco felpudo, perguntou vária vezes se eu não queria tomar banho de piscina com toda a galera, e eu disse que não. Tudo que eu queria era dormir.

Fiquei sozinha, deitada de bruços na cama molenga...

Por quinze maravilhosos minutos, porque bateram na porta do meu quarto.

-entra! – gritei impaciente.

Hugo entrou, com duas latas de coca-cola e um pacote de Cheetos. 

- lembrou que tem amiga? – perguntei sem dar importância a sua entrada, ele sentou-se na cama em que eu estava deitada fingindo que eu não tinha feito um comentário espinhoso, abriu uma latinha de coca, deu um gole e meu deu a outra latinha fechada.

Eu tomei meu refrigerante em silencio, e permaneci na minha inércia.

-onde está a namorada perfeita? – ironizei a certa atura ajeitando os travesseiros para que minha cabeça ficasse bem alta, Hugo virou-se para mim.

- não deixe as coisas difíceis Isa. – suspirou ele – não está vendo meu pedido de desculpas? – ele balançou a latinha de coca e o pacote de Cheetos como se fossem itens valiosíssimos.

Eu não queria, mas acabei sorrindo. É, ficar com raiva de Hugo era impossível.

Hugo disse-me que Olivia preferiu ir a piscina com as garotas da aeróbica, eu fiz careta e ele enfiou um punhado de salgadinhos na minha boca em ato de reprovação, joguei a lata de coca vazia em seu abdômen e fechei os olhos, eu estava realmente cansada e não queria conversar.

- você deve estar muito apaixonado pra deixar suas amigas de infância de lado. – disse sem rancor comendo mais salgadinhos – te entendo, acho que a depender das circunstancias uma hora todo mundo muda de atitude.

- já se sentiu com o coração quase parando? Com vontade de ficar cada vez mais perto de alguém de modo que não fosse possível? – suas palavras foram tão repentinas que me fizeram fraquejar. Nunca tive um namorado de verdade, porque diabos ele estava pedindo minha opinião sobre o meu assunto mais rarefeito?

-sente isso por ela?- respondi com outra pergunta.

Ele ficou, calado, abaixou a cabeça e fez muxoxo.

- parece legal demais estar perto dela – começou dizendo ele em relação a Olivia – todo mundo diz “uau” quando a beijou, e acham ela linda... mas é como se ela fosse um troféu, ela é linda e... – ele pareceu procurar uma palavra não constrangedora.

- ...gostosa. – completei sem rodeios – essa palavra não dói aos meus ouvidos Hugo, pode dizer que acha sua namorada gostosa que eu não vou surtar nem nada. – senti minhas bochechas queimarem.

- é... – ele riu nervosamente mas continuou. -... ela é gostosa, mas falta alguma coisa, alguma coisa no estomago, no fôlego, que a gente sente quando ama alguém.

Fiquei em silencio, ele estava olhando bem nos meus olhos.

-bem... acho que isso é questão de tempo. – suspirei tentando não olhar nos olhos de Hugo também.

Então a luz falhou, ficou amarela, e simplesmente apagou-se de vez, vários gritos no corredor. Faltou luz.

- detesto escuro – sussurrei

- eu to aqui – na escuridão senti os dedos de Hugo nos meus ombros.

Então seus lábios acertaram meu queixo, hesitei, senti-me confusa mas acabei descobrindo que estava me sentindo bem com aquilo, seus lábios subiram e tocaram minha boca, duas vezes de leve depois ele me beijou pra valer. Sem risada, sem desdém.

-Hugo... – disse assustada empurrando para longe de mim.

A luz tornou a acender da mesma maneira súbita que faltou, com certeza um mau contato na rede elétrica ou uma dessas coisas do destino que acontecem em horas impróprias, olhei pra Hugo, no claro parecia bem mais covarde pra quem acabou de beijar-me sem aviso, vi seu rosto confuso, seus olhos marejados e o rosto vermelho.

- me desculpe por isso. – ele disse saindo do quarto como um louco e fechando a porta.

Prendi a respiração, ele me beijou... me beijou mesmo.

E eu quis.

Ele tem namorada.

E nos somos amigos.

Ai então veio a raiva.

- então você acha que porque tem Olivia Gremin pode beijar qualquer uma seu merda! – gritei para o vento e joguei um travesseiro na porta fechada.

Eu queria ter dito isso a Hugo. Como ele me magoou e como ele ter me beijado só piorava as coisas, eu não gosto dele desse jeito!

De repente tive uma leve sensação de estar sendo observada, os pelos da minha nuca ficaram em pé, e apesar de estar sozinha senti um grande par de olhos por cima de mim, aninhei-me no lençol da cama e outro apagão recomeçou. Estou no escuro de novo. Só que dessa vez é pior. Hugo não está aqui.

Amanda retornou ao nosso quarto meia hora depois equipada com uma enorme lanterna di tipo que guardas florestais usam, ela estava encharcada e com uma toalha na cabeça, ficou tagarelando sobre os físicos alheios e depois acendeu uma velinha verde de luz fraca pondo-a na nossa mesa de cabeceira.

- você trouxe uma vela pra uma excursão? – questionei curiosa

Ela explicou que sempre leva velas de capim limão para todo lugar. Então acho que descobri mais uma mania estranha de Amanda antes de dormir.

 Pensei em questionar onde estava Sara. Mas não questionei fechei os olhos e sob a luz da velinha contei a Amanda o que Hugo fez em quanto ela vestia se pijama.

Ela analisou por um longo minuto e finalmente disse:

- no fundo, no fundo ele deve ter feito isso pra que você se afastasse dele e ele não sentisse culpa.

Essa era uma possibilidade muito real que eu não tinha cogitado antes.

-porque ele faria isso? – perguntei.

- a questão não é “por que?” – Amanda fez suspirou e deitou-se – é “por quem” ele faria isso?

Estava obvio. Olivia. Será mesmo que ela estava bancando a ciumenta manipuladora?

Soprei e chama da vela apagando-a e deixando apenas uma leve fumaça cheirosa de capim queimado e limão doce.

Eu não sei se chorei baixinho por causa da fumaçazinha que adentrou o meu olho ou por causa de Hugo.

Definitivamente, prefiro acreditar que foi por causa da fumaça.

Todos amontoados caminhando e tirando fotografias do museu Reino do Folclore. O local todo por si só já fascinante, antigos objetos de tortura do século XIX, pinturas de estranhos rituais indígenas e artigos que per supostamente pertenceram a criaturas míticas como um espelho quebrado encontrado as margens do rio Guipé onde pescadores juraram vir a sereia Iara.

- Srta. Meredith Lyador. – disse o nosso guia apontando para o quadro amarelado de uma mulher de meia-idade,  cabelos muito loiros presos em coque, um sinalzinho pequeno no canto do nariz e olhos âmbares. – quem tiver medo de historias de terror pode tapar os ouvidos. – brincou ele e pediu que todos prestassem atenção e deixassem as fotos para depois. – essa mulher também é conhecida como Bruxa do Espelho.

Vendo as exclamações empolgados da nossa turma o guia começou a contar a lenda da tal Bruxa Loira.

- conta a lenda que Srta. Meredith chegou ao Brasil no século dezoito com o esposo e duas filhas, e se alojou em uma fazenda escravocrata na região mineira a convite de um grande barão de café de que não se tem registro. Meredith era uma mulher muito bonita mas que escondia um terrível segredo dos seus antepassados. Ela veio a nosso país por ser perseguida na Holanda sua terra natal, acusada de bruxaria, do contrário conforma a lei ela iria ser queimada viva. Ela ganhou o nome de Bruxa do Espelho porque passava horas e horas olhando-se no seu espelho que trouxe da Holanda, e todos diziam que quanto mais ela se olhava, mais jovem e bonita ficava. Não se tem mais registros desta mulher depois que suas duas filhas desapareceram.

Flash. Tirei uma foto do quadro,apreciando em pensamento a lenda que acabei de ouvir.

- pausa para o almoço – disse o nosso guia liberando-nos para comermos num pequeno quiosque a beira da praia que ficava do outro lado da rua pacata.

Sem querer esbarrei meu ombro em Hugo em quanto atravessava a rua, nos olhamos por meio segundo, mas não nos falamos, andei rápido segurando a mão de Amanda e olhei por cima do ombro em quanto ele se inclinava para beijar o topo da cabeça de Olivia.

Eu Amanda e Sara comemos casquinhas de siri bem quentes e nada de anormal ocorreu,apenas quando terminamos de comer que um dos caras da nossa excursão com quem eu nunca tinha falado na vida se ajoelhou ao lado da nossa mesa com um pedaço que guardanapo dobrado.

“ Festa - Quarto 301, 23:00, sejam cautelosas.”

Fomos convidados para uma festa. E pela cara de contentamento de Amanda eu tinha certeza que a gente ia.

Voltamos para o hotel depois de uma longa caminhada numa reserva ambiental muito rochosa e quente, eu e Amanda conseguimos escapar antes do por do sol e tomamos um pouco de banho de mar. Voltamos sem ser vistas, jantamos sanduiches de queijo e nos arrumamos para a festa.

Alguém bateu no nosso quarto. Vimos no olho mágico que era a inspetora, ela passava no quarto de todo mundo com a lista dos colegas de quarto as dez horas para se certificar que todos estavam em seus devidos lugares. Amanda vestiu um roupão, prendeu o cabelo e jogou os sapatos de salto pra lá em quanto eu e Sara nos enrolamos em um edredom fingindo dormir.

Abri um pouco os olhos, ver Amanda atuar era fantástico, ela com certeza é  a maior cara de pau que eu conheço.

Ela bocejou e abriu a porta, a inspetora entrou em nosso quarto e contou: Srta. Agnes, Srta. Florence e Srta. Franco em seus devidos lugares, sorriu para Amanda como se admirasse nosso senso de obediência e saiu do quarto para o próximo. Quando Amanda fechou a porta todas nós caímos na gargalhada e voltamos a nos arrumar.

 A festa no 301 foi uma zona, no quarto apertada estavam nada mais nada menos do que trinta e duas pessoas, as camas tinham sido afastadas, haviam isopores com refrigerantes e outras bebidas, petiscos prontos e até musica, muitas meninas estavam brincando de guerra de espuma de biquine na banheira redonda do banheiro em quanto os garotos tiravam fotos, eu surrupiei alguns salgadinhos fiz um pouco de bagunça também, então resolvi ir embora com minhas colegas de quarto.

Passamos pelo saguão até o elevador, Hugo e mais dois amigos estavam na mesa de sinuca, nada de Olivia.

Ele esbarrou em mim de propósito e sussurrou no meu ouvido:

- pode me encontrar no deque?

- pode esquecer – respondi.

Entrei no meu quarto, afundei na cama e dormi, as duas da manhã acordei atordoada, vesti um moletom um chinelo de dedos e fui até o deque onde Hugo dormia numa daquelas cadeiras plásticas que as pessoas usam pra se bronzear. Fiquei o observando dormir, sentada numa cadeira ao seu lado mas ele parece ter sentido que cheguei porque acordou e olhou pra mim sorrindo, eu fechei a cara

- o que você quer? – eu forcei o meu lado ríspido.

- eu sei o que eu não quero – ela falou sentando-se ao meu lado – eu não quero deixar de ser seu amigo.

A teoria de Amanda que ele queria se afastar de mim caiu por terra, eu reprimi um sorriso tão forte que minhas mandíbulas doeram.

- se você quer ser amigo de alguém ai vai um conselho: Não beije essa pessoa na boca!– berrei irritada de verdade.

- anotado – ele respondeu pondo o braço nos meus ombros – eu quero esquecer o que aconteceu, eu não sei porque fiz aquilo noite passada mas eu não tinha a intenção de te magoar nem de misturar as coisas.

Arqueei as sobrancelhas e revidei com palavras em tom cortante:

- não estou magoada, só não entendi o que foi aquilo.

Acho que isso representa a paz entre mim e ele, porque ele levantou-se e bateu na minha mão depois de um soco de brincadeira bem leve no meu ombro.

- vamos esquecer isso tá? – pediu ele.

- esquecer? – fingi-me de confusa – do que você estava falando mesmo?

Ele sorriu.

- você é boa pra mim Isa. – ele disse e foi embora.

Eu me sentiria em paz o suficiente para voltar ao meu quarto e dormir, se não fosse por um detalhe:

Ela surgiu da parte de trás do bar, de biquine branco e chinelos, atravessou meu caminho de braços cruzados, boca comprimida e os olhos grudados nos meus.

Olivia Gremin estava ali, o tempo todo, escondida nas sombras e supostamente ouviu absolutamente tudo.

Senti a cor fugir do meu rosto.

“ é agora” pensei “ ela vai me xingar, bater na minha cara, e obrigar Hugo a nunca mais falar comigo. Como eu pude ser não canalha? Como? Será que ela ouviu o suficiente para me odiar?”

Muito provavelmente... Não.

Ela apenas passou por mim e abriu um sorriso.

- boa noite querida – disse ela sem nenhum tom de ódio ou sarcasmo na voz, acenou em quanto descia a escada do deque aos pulinhos em direção a ala dos quartos.

Soltei o ar pesadamente e deitei-me no chão apertando as mãos contra o rosto.

Essa foi por muito pouco.

Ou talvez não, talvez ela tenha ouvido e fingindo que não ouviu para se vingar mais tarde.

Ou talvez...

Ou talvez eu estivesse ficando muito louca mesmo.


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