Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 4
Muro com Muro




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     As três e quarenta da tarde a mãe de Ágata deixou-a na guarita do meu condômino, ela se desculpou muitíssimo pelo atraso e sem perca de tempo começamos com recortes, cartolinas e nossa imensa pesquisa que caso não fosse bem feita mandaria nossas notas em ciências gerais direto para o curral.

Minha mãe apareceu na soleira da porta da cozinha em seu estilo mais clássico:de roupão de cetim azul nos joelhos, um dos braços cruzados e o outro livre segurava uma xícara branca até a borda de café.

Ela ficou um longo minuto observando eu e Ágata empenhadas na montagem do nosso projeto até que finalmente comentou algo sobre ter de ir dar as boas vindas a nova vizinha da esquerda.

- você vai de roupão? – brinquei.

- ela tem cara de refinada – murmurou ela – apesar de parecer ser da sua idade.

- uma garota da minha idade morando sozinha? – questionei sem tirar os olhos das minhas pesquisas.

Minha mãe deu de ombros e bebericou o café.

-seja como for eu vou dar boas vindas, ela chegou ontem e não quero parecer grosseira. – minha mãe virou-se e subiu as escadas até seu quarto, quando desceu estava vestida com uma saia rodada caqui e uma blusa branca de botões.

- de longe a senhora até parece uma mãe convencional – disse a ela em quanto ela abria a porta. Minha mãe sorriu e saiu deixando-me apenas com Ágatas e as milhares de folhas rabiscadas na mesa de vidro da cozinha.

Nunca fui amiga dessa garota ruiva que agora estava em minha casa concentrada demais para falar, mas conversamos um pouco para evitar que o resto das nossas semanas de trabalho não fosse embaraçosas nem sufocantes, ela falou um pouco sobre o que gostava de fazer (compras,  jogar tênis...e todas essas coisas pelas quais eu não sou muito chegada ) e sobre seus planos para o ultimo ano, eu não falei nada sobre mim. Sou um campo fechado, impenetrável, além da minha mãe ninguém além de Hugo e Amanda sabem do acidente de carro que tirou a vida do meu pai e do meu irmão, ninguém além dos meus melhores amigos sabem que nem dez nãos foram capazes de sarar tudo que eu senti desde aquele 28 de setembro em que eu pequenina consegui escapar das ferragens antes que aquilo que sobrou daquela lataria retorcida explodisse como fogos de artifício, só que ao contrário de lindos fogos coloridos, o ar se encheu das pequenas partículas daquilo fora cinquenta por cento da minha família um dia.

- gosto de café expresso. – foi tudo que consegui dizer quando ela perguntou o que eu mais gostava, não queria que nos tornássemos tão intimas a ponto dela romper meu campo de força em que eu escondia as lembranças da minha família.

Minha mãe voltou quinze minutos depois, sua garrafa térmica estava vazia e ela esboçava um grande sorriso perolado no rosto. Pelo visto temos uma boa vizinha.

-você vai adorar a Olivia. Ela é uma graça!

Franzi o cenho.

Juntei dois mais dois.

- é a Olivia que estou pensando? - questionei

- em que Olivia esta pensando? – devolveu minha mãe.

- nossa vizinha é a loira de prováveis dezesseis anos mais exuberante que você já viu? – quis saber.

- pelo visto você já conhece nossa vizinha. – falou minha mãe começando a subir as escadas. – ela é como a Barbie, só que com vida.

Olhei pela nossa enorme janela acima da pia e vi Olivia Gremin em seu jardim transportando diversas caixas de papelão para dentro da sua casa, e ela não estava sozinha... Um rapaz bem alto, com alguns músculos proeminentes, cabelos pretos e um sorriso que podia rasgar sua boca estava a ajudando-a carregando uma poltrona cor-de-rosa que parecia bastante pesada. Esse garoto era Hugo Mendes.

“Ele está no meu condomínio e não veio aqui em casa.” Conclui.é... Hugo está bem distraído com a nova loira do pedaço.

Tornei a sentar e copiar minha tese de onde parei, Ágata olhou para a grande janela depois olhou pra mim:

- aquele cara ali não é o seu amigo? o Hug...

- vamos começar a tese do capitulo seis – interrompi, e ela captou a minha mensagem começando freneticamente a copiar em seu caderno.

Isso me magoou, não devia, mais me magoou.

- tem certeza que não quer ir a Strom Frízer? –

Eram sete da noite. Eu e Ágata acabamos um terço da nossa tese as seis então ela se foi, tomei um banho e fiquei me perguntando em quanto a água do chuveiro escorria por mim porque com milhões de condomínios em toda cidade como Olivia Gremin veio morar justamente no meu, no meu bloco, ao lado da minha casa. Não que eu não gostasse dela nem nada, mas a tal Olivia não tem cara de que mora em condôminos de classe média, ela tá mais para aquelas europeias muito ricas que tem apartamentos em toda Paris.

Bom, e professora Chamise fez o sorteio dos pares do projeto hoje, e Hugo já estava ajudando o seu “par” com uma mudança.  Quanto tempo eles gastaram para se conhecer na escola? Dez? Vinte minutos? É pouco tempo demais para fazer amizade com alguém. Eu estava mordida com isso, mas não de ciúmes obvio... Só intrigada mesmo.

E agora Hugo estava na minha porta, insistindo para que a gente fosse a Strom Frízer tomar a grande barca de sorvete de passas que eu detesto, mas divido com ele por pura consideração.

- tenho certeza – disse bocejando – tive um dia muito cheio.

- ah, vamos Isa. Vai ser divertido! A Olivia está maluca para conhecer nosso ritual de “devorar a barca especial de passas”.

Olivia?

Franzi o cenho.

- ela vai com você?

- é – ele pareceu um pouco perturbado com minha duvida e foi logo complementando – sabe, a gente começou o projeto hoje e eu ajudei um pouco com a mudança, então ela me falou que era péssima na cozinha, e já que ela mora sozinha não vi nada de mais em chamar ela pra encher o estomago. Nada melhor do que sorvete.

Senti minhas bochechas um pouco quentes, só tive um leve incomodo considerando que Hugo estava fazendo amizade com uma desconhecida, tive medo que ele escolhesse uma versão mais bonita de melhor amiga e me deixasse de lado. Senti-me idiota.

Como eu não disse nada ele começou a tagarelar.

Disse que Olivia era Austríaca, que os pais dela  estavam bancando ela  aqui no Brasil para que ela pudesse aprender português e coisa e tal... por isso ela morava sozinha.

Eu fingi estar interessada no que ele dizia.

-você ouviu uma palavra do que eu disse? – ele quis saber sob a luz fraquinha da entrada da minha casa.

- claro. Só não quero ir a Strom Frízer.

- você é quem sabe – disse ele por fim dando um beijinho na minha bochecha – a gente se vê amanhã.

Então ele saiu, e antes de fechar a porta espiei ele se afastar e entrar em seu carro onde uma cabecinha dourada esperava no banco passageiro.

Fui assistir a novela das nove e fiquei tão confusa e perturbada que tive dor de cabeça, comi um sanduiche de queijo e deitei-me para dormir.

A janela do meu quarto dava vista para o segundo andar da casa de Olivia.

Minha nova vizinha ladra de melhores amigos.

Olhei para sua casa agora escura e cheia de caixas de papelão na calçada.

Uma vasilha metálica em que eu guardava clipes de papel caiu do nada da minha estante fazendo um estrondo que me assustou de verdade, pus a mão na boca para não gritar. Ajoelhei-me e comecei a juntar os clipes multicoloridos que se espalharam no tapete e coloca-los no lugar. Bizarro. Eu nem estava perto da vasilha. Deve ter sido o vento ou eu sei lá.

Um vento gélido com aroma de canela invadiu o meu quarto balançando forte as cortinas. Meus pelos dos braços e nuca se arrepiaram, porque o vento sussurrou no meu ouvido! Um som muito parecido com um apelo...

Socorro. Foi isso que eu ouvi.

Fechei com força na janela, cobri-me no lençol toda encolhida e fiquei reprimindo minha imaginação maluca até cair no sono.


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