Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 3
Sem Paradeiro




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- isso não pode ser verdade. – acho que disse isso mais para mim mesma do que para qualquer pessoa.

Eu estava encostada na porta do laboratório de química mascando um chiclete quando Hugo apareceu carregando o seu celular como se fosse uma frágil bomba prestes a detonar com o mínimo movimento.

Dia 1 de fevereiro, o primeiro dia de aula que começou normal até as redes sociais começarem a espalhar a noticia como um fogo avassalador, a importância dessa noticia variava em grau mas pra uns do que pra outros, mas pra mim de algum modo a quando li a matéria na página da internet que Hugo me exibia foi como um  se espeto incandescente estivesse perfurando o estomago.

Daqui a pouco o diretor iria entrar na nossa sala, fazer o comunicado, uns iam assustar-se, outros dar de ombros, mas no fundo ninguém quis abalar o grande dia de ingresso no ultimo ano com o desaparecimento de Diane.

Sim, garota gótica e quieta, encostada na picape no Poeirão, fumando seus cigarros quando ninguém olhava em seus olhos.

“ Jovem desaparecida a sete dias

 Não se sabe ainda do paradeiro da jovem Diane Perón, 17 anos, estudante do conceituado colégio Secundário Albere, testemunhas afirmam ter a visto por volta da meia-noite na BR 218 onde os alunos do ultimo ano se reuniam em um passeio a lagoa do Trovador, a picape 1996 da jovem foi encontrada em um acostamento a dez quilômetros da sua casa,  o veiculo estava completamente vazio e sem indícios que possam levar ao paradeiro de Diane, os agentes envolvidos no caso afirmam que vão apurar o carro tomando os depoimentos dos jovens que se encontravam no lago do Trovador na noite em questão. A família Perón está chocada...

Pus a mão na frente do visor do celular, eu já tinha lido o suficiente. Lembro-me que eu provavelmente vi Diane pela ultima vez, eu vi na ali no Poeirão encostada em seu carro, solitária e vulnerável,saindo sozinha dali aquela hora da manhã, eu não tive a mínima decência de oferecer companhia até a sua casa. Se ela foi de fato sequestrada, eu tinha uma mínima parcela de culpa que me doeu o coração e atingiu-me como uma flecha.

Hugo provavelmente viu minha reação e fez careta.

- sabe que ela pode ter fugido pra se drogar em algum lugar, não sabe? – suspirou ele.

- não tenho certeza disso. – retruquei engolindo a seco – quando a gente estava indo embora e você saiu para procurar as chaves eu a vi ali no Poeirão, eu vi quando ele pegou o carro e foi embora.

-  eu também vi, mas você sabe como aquela garota era, não quero julgar nem nada, mas para alguém que já arrumou tanta confusão aqui na escola por causa dos cigarros e bebida, abandonar o carro e fugir com alguns amigos por uns dias para fazer o que não deve não parece grande coisa pra ela – o sinal tocou, e fomos “convidados” a entrar na sala para a primeira de muitas aulas do ano.

- isso é a sua teoria – rebati e comecei a andar pelo corredor lotado, algo estava me incomodando profundamente.

O professor Dalton copiava todo tipo de teoria no quadro (já em nosso primeiro dia) em quanto toda turma estava dividida em prestar atenção e em murmurar aos ventos suas conquistas de verão eu parecia estar nadando numa água extremamente quente e densa onde os peixes eram milhares de rostos de Diane pedindo socorro.

Só o desaparecimento dela pareceu me abalar? Só eu fiquei chocada de ver uma pessoa quase cara a cara e uma semana depois descobrir que ela simplesmente evaporou sem deixar sinais?

Nós não éramos intimas nem nadas, mas isso estava mexendo comigo.

O diretor bateu metodicamente três vezes na porta e foi logo entrando, acompanhado da alta secretaria vesga de cabelo com uma cor entre o laranja queimado e o branco ralo. O diretor secou a careca já suada e suas bochechas gordas vermelhas subiam e desciam em quanto ele fazia um grande discurso sobre “o valor do estudo” e tudo mais.

Ele nem sequer citou Diane. Tudo que ele disse foi:

- bem, acho que chegou a hora como vocês sabem recebemos todos os anos estudantes excelentes de outros países para conviver e absorver nossa cultura em nosso ambiente escolar. Nessa turma temos três novos três alunos intercambistas. Deem as boas vindas a Sun Miao. – uma garota japonesa de cabelos curtos entrou na sala com um casaco amarelo e uma mochila do Pokémon. – Erick Theodor. – então entrou na sala um cara baixinho de cabelos muito crespos e óculos de plásticos segurando um dicionário de espanhol – e por fim Olivia Gremin. – eu me assustei.

Todos os olhares na sala se voltaram para a porta, e foi impossível não ouvir escapar das gargantas desavisadas burburinhos admirados. Era como olhar o brilho do sol, envolto em algum tipo de ser angelical ou coisa assim, cheguei a me constranger e sentir-me feia, meu cabelo de um marrom desbotado, meus tracinhos pequenos e pálidos emoldurando os meus olhos pequenos e num processo permanente de transição do verde para o caramelo outonal, nem se comparavam a aquela criatura diante de nós.

Olivia Gremin. Um porte de que faz montaria, a pele de um tom dourado e delicado como se ela tivesse acabado de se banhar em água salgada, o cabelo loiríssimo e natural caia até pouco mais da cintura, lábios carmins como brasa e olhos castanhos, como nozes.

Até o próprio professor Dalton pareceu desnorteado, um calvo de cinquenta e poucos anos olhando alucinadamente para uma adolescente como se ela fosse a própria estatua da deusa Venus que depois de vários anos adormecida ganhara vida e saiu andando exalando sua perfeição.

- Bem... – disse o nosso diretor enxugando a testa com um lenço fétido – sejam bem vindos  e aproveitem.

Olivia sentou-se na ultima cadeira, seu olhar não encontrou o de ninguém, muda ela pegou o seu caderno e começou a copiar como se não tivesse importância, nada fosse importante. Quinze minutos depois tudo se normalizou, menos os burburinhos que agora em vez das férias de verão tinham outro assunto mais próximo e especifico...

Um intervalo e mais outra aula, nesse meio tempo um grupo de garotas skatistas entrou na nossa classe com panfletos amarelos que mostravam uma Diane sorridente e “Procura-se” escrita em uma letra de forma tosca juntamente com pelo menos seis números de telefone. Quando as panfletistas deram as costas várias bolinhas de papel amarelas lotaram a lixeira metálica na extrema esquerda da sala.

Guardei meu panfleto em meu caderno, e voz da professora Chamise agora fazia mais sentido:

- sei que parece precoce, mas a semana do Meio Ambiente está se aproximando e isso vale vinte por cento da média anual de vocês – ela pigarreou e bebeu uns goles de água de seu copo verde plástico – quero projetos em duplas sobre “motivação ao uso do biocombustível”

Ela espirrou um pouco e pegou um pote de barro com várias tiras de papel dobradas.

- imparcialidade em primeiro lugar – disse ela – quem eu chamar vem até aqui e pega o nome da sua dupla.

Um a um ela foi chamando, e a expectativa foi crescendo dentro de mim quando me imaginei fazendo trabalho com um estranho. Minhas palmas suaram.

“ou Hugo ou Amanda, ou Hugo ou Amanda” fiquei repetindo isso mentalmente como se isso pudesse fazer com que um deles pegassem meu nome naquele pote.

-Olivia. – bradou a professora mordendo a borrachinha vermelha de seu lápis, a dita cuja levantou-se fazendo seus cabelos volumosos pairarem no ar como uma cortina, ela foi até o pote, pegou um pedaço de papel qualquer e leu com uma meiguice celestial:

 -Hugo Mendes? – ela ficou procurando-o com os olhos pela sala, até que ele começou a sacudir no ar uma das mãos em quanto tentava controlar um sorriso. Pude ouvir os burburinhos de inveja dos outros meninos. Minhas bochechas queimaram. Ela pegou justo Hugo. Droga.

No final das contas meu par foi Ágata Dominic. A ruivinha baixa arqueou as sobrancelhas e depois de me identificar sorriu para mim.

O sinal da saída soou e a multidão correu para as saídas, mais um dia de milhares deles.

- tá de brincadeira – disse Amanda pra mim olhando discretamente para Olivia que passou por nos como uma bala em direção a saída. – o Hugo vai passar varias horas da semana com a mais nova Miss Colegial de Albere. – Amanda ficou acenando e sorrindo para o nada desdenhosamente como as misses fazem.

- não tenho problema com isso – disse dando de ombros – tá mais do que na hora do Hugo arrumar uma namorada.

- que deveria ser você – sussurrou ela em quanto enchia os lábios com mais uma boa dose daqueles brilhos labiais grudentos. Fiz que não com a cabeça e fui até a saída, eu e Ágata começaremos hoje com o nosso projeto as três da tarde.


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