Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 2
Submersa




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Eu sei que tenho pouco ar nos pulmões, é uma reserva mínima pra sobreviver mais que trinta segundos,  eu poderia muito bem nadar depressa e alcançar a superfície mas por algum motivo estranho e perturbador meu corpo não consegue se mover, é como se meus braços, pernas e músculos não fossem meus é como se eu fizesse parte de toda aquela água que cobria todo meu corpo.

Agora que estou deitada no fundo do lago percebo como a água é escura e turva aqui em baixo, minhas costas sentem as pedras e areia fina, minha visão está ficando embaçada a cada segundo e nesse momento minha garganta e narinas queima suplicando por oxigênio, a ultima bolha escapa do meu nariz, agora eu não tenho mais nada... ninguém veio me salvar, vou fechar os olhos e esperar que isso acabe logo pro mais dolorido que seja.

“Descanse em paz Isadora” disse a mim mesma.

Um vulto misto de cores ganha velocidade em minha direção, ou é uma pessoa ou um peixe muito grande, acho difícil ser um peixe grande, aqui no Lago do Trovador não tem peixes grandes, aqui não passa de uma porção profunda de água limitada e ladeada  por rochas e uma curta extensão de mata fechada, o local que eu minha turma da escola frequentamos muito nos últimos anos e agora estávamos aqui de novo para celebrar a moda antiga o retorno as aulas e o ultimo suspiro das férias, estávamos celebrando... até eu mergulhar, bater a cabeça e agora estar morrendo.

Morrendo? Eu já devia ter morrido? Quanto tempo estou aqui em baixo e como diabos eu consegui me afogar?

O vulto foi forte o suficiente pra me pegar no colo, senti a água passando a toda velocidade, indo pra cima, cada vez mais alto, acho que estávamos indo de volta a superfície.

Clique. Alguém pareceu ligar o botão do universo, senti o ar preencher meus pulmões e automaticamente a vida começar a correr nas minhas veias, flutuando na superfície do lago ainda segurada por alguém, pessoas aflitas a beira do lago gritavam suas expressões de alivio ao me ver ali de volta e a salvo, a luz da lua e as tochas improvisadas trataram de criar um clima mais cinematográfico e dramático a situação.

- ela está bem – senti as palavras vibrarem no peito de quem eu estava colada, segurada como um coelho filhote, eu sabia quem era o dono da voz.

- Hugo, já pode me soltar eu estou bem – disse me desprendendo de seu heroico abraço que me trouxe de volta a superfície, nadei cachorrinho até chegar a borda mais próxima.  – muito obrigada.

Amanda, minha amiga de longa data me recebeu com uma toalha e um abraço preocupado . o vento frio castigou minha pele, contudo senti meus músculos queimarem quando percebi que todos presentes ali que antes se divertiam balançando-se nas cordas das arvores da dando saltos mortais na água agora voltavam seus olhares para mim.

- como foi que você se afogou?- Amanda quis saber

Essa era a pergunta que eu também queria uma resposta clara, nunca tive problema com a água, sempre nadei em locais profundos sem nenhum tipo de problema inclusive o Lago do Trovador onde passávamos as tardes de verão, mas esta noite quando mergulhei de cabeça e estava pronta para retornar a superfície foi como se eu tivesse sido petrificada por alguma força invisível, amarrada, desprovida de qualquer movimento como uma rocha só esperando que a falta de oxigênio consumisse minha existência.

- acho que bati a cabeça – foi tudo que consegui responder.

Hugo veio até mim e chacoalhou o cabelo escuro, a pele estava úmida e fresca com cheiro de terra molhada. A lua iluminou seus grandes olhos preocupados que se direcionaram a mim furtivamente.

Vi no relógio de pulso, 1h da manhã,  pra alguém que alguém que quase morreu afogada por mais divertido que parecesse voltar a nadar estava fora de questão.

- te levo pra casa – Hugo pegou sua camiseta polo seca e as chaves do carro. Nos despedimos da turma que continuou a se divertir insanamente como se o ocorrido de dois minutos atrás nem tivesse existido de fato.

Com auxilio de uma lanterna atravessamos a trilha coberta por arvores estreitas e retorcidas, finos fachos da luz da lua atravessavam por dentre as copas das arvores produzindo lindos holofotes noturnos, em quanto caminhávamos a únicas coisas que faziam barulho eram nossos pés esmagando as folhas secas no chão.

Chegamos ao Poeirão, um barranco que antecedia a BR principal que dava acesso a “civilização” o que se traduz simplesmente como as ruas,lojas, condôminos da nossa cidade.

Hugo apalpou o calção freneticamente e fez careta.

- merda. Acho que deixei as chaves caírem.

Franzi o lábio, só me faltava ter de ir a pé pra casa a essa hora, eu estava de carona com ele, se Hugo não achasse as chaves eu ia ter de ligar para minha mãe pedindo a essa hora que ela viesse me buscar o que era encrenca na certa, ela iria gritar, surtar e me por de castigo até eu completar 177 anos.

- fique aqui eu vou procurar. – Hugo acendeu sua lanterna e se embrenhou no mato pelo mesmo caminho que fizemos até aqui.

Encostei-me no carro mais próximo, estava a ponto de deitar na lataria e dormir de tão exausta que fiquei com tudo isso, estava sozinha agora, só a lua grande e completa me encarava lá do alto, as nuvens dançavam depressa na escuridão noturna.

Ouvi alguém tossir e dei um salto de susto,  acho que não estou tão sozinha quanto pensava, porque a três metros de mim encostada em uma picape sucateada estava Diane, a garota problema da nossa turma, ela nunca falava com ninguém e ninguém falava com ela, tinha duas amigas no Maximo e viva fumando, como agora por exemplo, os cabelos pretos com grossas mexas roxas estavam rodopiavam com o vento, a touca branca escondia a testa alva e cheia de espinhas e a cada batida da luz lunar em seu corpo reluziam seus piercings e adereços metálicos nas roupas, a tênue fumaça que saia dos seus lábios eram produzidas pelo cigarro que ela fumava com rapidez e uma espécie de charme teatral e forçado.

Ela jogou a pequena brasa de seu fumo no chão, esmagou com um dos pés em seguida entrou no seu carro e deu partida para o distante horizonte da noite, sumiu assim como a fumaça, a fumaça cuspida de seus lábios.

- achei. – Hugo voltou balançando a chave prateada, seu sorriso tinha a proporção de toda a beleza do universo.

Pensei que ele fosse entrar no carro porém ele encostou-se na lataria do carro onde eu estava.

- Isadora.

- oi?

- pode me dizer o que diabos aconteceu ali no lago? – ele questionou me olhando com afável preocupação.

- bati a cabeça – dei a mesma desculpa que dei a Amanda sem hesitar.

- quando te vi lá embaixo, você estava dura. Parecia morta – ele suspirou e enterrou as mãos nos dedos, depois alisou os cabelos pra trás soltando ar pesadamente -  me deixou preocupado.

Me senti na obrigação de fazer uma coisa, uma coisa que nos filmes em que as mulheres eram salvas, sou amiga de Hugo a muitos anos e nunca amizade avançou em nenhum sentido romântico, as vezes eu me sinto estranha perto dele, querendo mais do que o abraço de bom dia, a risada, a empurrada no ombro pra me acordar. Mas nunca direi isso em voz alta, ia soar tolo demais para mim. Não sou esse tipo de pessoa muito dada aos sentimentos, mas enfim... Hugo tinha salvado minha vida, acho que não custava nada eu ser agradecida e carinhosa do jeito que supostamente ele estava esperando.

Estiquei-me até ele e segurei os seus ombros, dei um leve beijo nos lábios.

Ficamos em silencio por dois minutos inteiros, até nós dois começarmos a rir loucamente, acho que ri pela careta que ele fez, acho que ele riu pela ação idiota que eu acabei de executar, o que eu sei que o Poeirão se encheu de nossa solitária gargalhada em conjunto ao piar das corujas.

- isso foi muito estranho Isa. – Hugo abriu o carro, com as bochechas vermelhas ainda rindo compulsivamente. – não precisava ter feito isso só porque te salvei, ora. Eu já te salvei outras vezes você não lembra?

E como lembro, sou praticamente um imã para situações complicadas, por algum motivo estou constantemente em perigo, meio que uma conspiração natural contra mim. Hugo já me tirou do laboratório de computação em chamas depois de um curto circuito e com um empurrão já tirou-me do caminho de uma motocicleta desgovernada, eu devia minha vida a ele por três vezes. 

- eu sei – disse me sentindo boba – desculpe, isso não vai acontecer de novo. Sem ofensas.

- não estou ofendido – rebateu ele – o beijo foi legal, mas não foi necessário entende? Somos amigos.

- tudo bem. – dei de ombros – vamos esquecer isso.

Ele ficou me olhando com um olhar profundo, um sorriso vago pairando no ar, depois disso levou-me para casa, e me deixou na porta, não falamos muito sobre nada, só o rádio ligado produzia um leve burburinho que preenchia o interior do carro, eu tenho essa habilidade natural para fazer com que as pessoas fiquem sem graça, mesmo no caso dos melhores amigos, como Hugo.

Quinze minutos depois ele estacionou na portaria do meu condômino, o motor ligado fazia o carro trepidar e soltar um leve a agradável odor de gasolina.

- uma foto. – disse ele puxando a sua antiga câmera a filme que ele guardava com muito zelo, Hugo tem o sonho de fotografar grandes eventos e monumentos históricos, uma vocação bonita, mas pelo que conversamos ao longo dos anos seus pais não acham a mesma coisa. Ele nunca foi dado a câmeras digitais por mais que eu insistisse que ninguém além dele em todo universo ainda usava câmera a filme.

- tá maluco? – o repreendi sem acreditar que ele queria mesmo tirar uma foto de mim.

- não seja boba – ele apontou a grande lente para mim e tirou a foto antes mesmo que meus lábios formassem um sorriso improvisado. – pra guardar na lembrança, uma foto da garota que nunca morre.

Eu tive que rir.

- seria melhor “a garota que sempre quase morre” – corrigi – vá pra casa Hugo. – toquei sua mão e agradeci por ele me deixar em casa, por um longo tempo fiquei observando seu carro se afastar pela estrada e sumir. 

Peguei minha chave que fica no colar pendurado no pescoço e entrei em casa, minha mãe com certeza estava dormindo em seu quarto, a casa era um breu silencio exceto pele televisão ligada na cozinha em volume mínimo, minha mãe tinha mania de deixar a televisão sempre ligada, o motivo eu desconheço, deve ser medo.

Subo as escadas, banho-me e jogo-me na cama com um pijama velho de flanela, ponho a mão no peito acelerado e tento dormir por uma hora sem sucesso, é o fim das férias, o começo de uma nova etapa da vida, desbravar o desconhecido e já estou eu aqui... Cheia das minhas especulações e preocupações.

Ainda falta uma semana para o recomeço do ano letivo. Ansiedade e expectativa se misturam e me deixam acessa.

Mas como qualquer ser mortal a chama se apagou devagarzinho e o cansaço me venceu até que eu dormisse profundamente.  Sem sonhos, sem expectativas, apenas o bom e reconfortante sono. 


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