Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 20
Capturada




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/305701/chapter/20

Mas ele estava diluindo-se, desaparecendo

– eu suplico não vá embora! Eu preciso falar com você – gemi.

– precisa ser rápida! – disse a voz de Ícaro fria e distante, seu fantasma era assustador e belo ao mesmo tempo, azul vivo, flutuando como Aria sempre aparecia pra mim. – pegue uma um Tuberculo-Vela que brota do chão, ascenda e me invoque.

Confusa e sem questionar muito, direcionei-me até a parte de fora do salão, do chão morto e desolado brotavam bolinhas de cera preta com finos filamentos nas pontas, que lembravam velas de igreja gótica.

Arranquei uma do chão e voltei ao salão, os fantasmas que iam e viam me encaravam com ódio nos olhos, inveja por eu estar viva e eles não. Haviam tantos deles indo e vindo pelo gigantesco salão que seus corpos espectrais se misturavam formando neblinas sombrias.

Agachei-me pondo o Tuberculo-vela no chão de ladrilhos.

– eu invoco a Ícaro. – achei que isso deveria ser a forma de invocar alguém, fechei os olhos e pensei no seu sorriso, na sua fala, nos seus gestos doces e inevitavelmente acabei pensando no seu beijo.

– memórias interessantes – a voz dele real, quente e viva me fez abrir os olhos de surpresa. Não estávamos mais no Salão Omoplata, estávamos em uma nuvem, flutuando a metros e metros do chão, soltei um leve grito de susto, a nuvem parecia tão tênue e fina a ponto de não suportar nossos pesos, lá embaixo o Salão Omoplata parecia uma formiguinha em meio a imensidão reluzente e exótica do Mundo Meridional, o Tubérculo-vela estava em uma acesso agora no centro na nuvem, rebrilhando uma leve chama verde.

Sem temor de cair e virar purê pulei em cima de Ícaro que parecia tão vivo como sempre, como ossos, músculos e pele.

– não temos muito tempo – suspirou ele me ajudando a ficar de pé com ele na flutuante nuvem macia. – isso é só uma invocação básica, me dá corpo material por pouquíssimo tempo.

Segurei em suas mãos como se fosse desmoronar.

– você consegui chegar aqui sozinha e isso me faz imensamente feliz... todos esses dias que meus espírito passou vagando nesse mundo miserável eu fiquei me perguntando se sobreviveria. – suspirou ele me ajeitando num abraço.

– pra falar a verdade nem eu sei como isso foi possível – disse eu.

– eu sei. Você foi destinada.

Ah essa não, esse papo de novo.

Ele alisou meu queixo com os dedos e me olhou com afeto.

– vai acabar logo. – ele virou meu queiro para o oeste, lá no centro de um precipício havia uma espécie de arena, um estádio de futebol rústico e circular preto com luzes douradas emanando. Do centro desta arena brotava a arvore mais alta que eu já vi na vida, cheia de pequenos casulos nos galhos, casulos de borboletas que podiam ter o meu tamanho.

– a Árvore da vida. O Palácio de Meredith – suspirei. Não precisava ser um gênio pra saber que aquele lugar macabro era humilde residência da minha maior inimiga.

–e das irmãs dela. Uma nós matamos na biblioteca da escola lembra?

– e como esquecer? – disse rindo sem humor algum.

O meu sarcasmo não parecia incomodar Ícaro, ele parecia adorar cada segundo, estudando-me.

– agora são só quatro irmãs soberanas. Meredith, a líder... matamos Brenda, e isso só fez aumentar o ódio que ela tem de você, como bruxas não possuem alma Meredith jamais verá a nojenta da Brenda novamente. E como você é imensamente poderosa nenhuma das quatros se atreveu a vir atrás de você lhe eliminar: Assuero, Diadora, Elm e Valentina.

– aposto que Meredith quer me matar com as próprias mãos. – eu disse olhando nos olhos profundos e preocupados de Ícaro.

– eu também aposto. Virou pessoal pra ela e ela quer mostrar a Aria que pode triunfar novamente. Mas tem outra coisa que aposto... aposto que ela vai perder.

Ia questionar essa teoria mas Ícaro pós os dedos nos meus lábios.

– confiança. – sussurrou ele tão severamente que me fez assentir.

– tudo bem.

Ele me abraçou, apoiou seu queixo na minha cabeça e eu me escondi em seu peito, tremendo, senti que queria chorar mas acho que naquela dimensão não era capaz de fazer tal coisa, ele me embalou alguns instantes quando nos demos conta que o Tuberculo-vela estava quase se derretendo por completo.

– ouça meu amor. – disse ele arfante – faça o que for preciso... e com isso estou te pedindo pra sobreviver. Elas vão jogar muito sujo mas eu confio em você... sei que você vai ganhar e não importar com que você escolha ficar eu serei eternamente grato e meu amor será seu pra sempre.

– eu farei tudo que eu...

Abri os olhos.

Estava no Salão Omoplata de joelhos, espíritos curiosos rondavam-me e havia um Tuberculo-vela completamente derretido grudado ao chão.

Levantei-me com o rosto molhado de lágrimas, tonta e enjoada... a força vital desta viagem me sugou completamente, estava exausta e sentia minha alma abatida, apoiei-me numa coluna no salão e vomitei por dez segundos interruptamente.

Fechei os olhos e comecei a sair do Salão as cegas, quanto mais eu andava pra fora daquele lugar melhor eu me senti, sentia meu sangue correndo e ar fresco nos pulmões, sentia alivio e alegria... Definitivamente aquele não é um lugar para os vivos, se eu passasse mais alguns instantes ali viraria um fantasma azul também.

Comecei a subir colins acima, os pés ainda tremendo e o rosto desgarrado com cabelos grudados nas bochechas.

– juro que se você demorasse mais meio segundo iria atrás de você – suspirou Ravena exibindo a fileira de alegres dentes tortos num sorriso infantil – e olhe que guardiões são instantaneamente transformados em cinzas se atravessarem as colunas do salão.

– ainda bem que você não teve essa ideia fraca – retruquei. Eu e ela nos pusemos a andar para o oeste quase como em um passeio despretensioso bem mais inocente do que o confronto que nos esperava.

– encontrou seu namorado?

Quase engasguei com essa pergunta e tive que me controlar pra não ficar nervosa e tropeçar

– e quem disse a você que eu tenho namorado?

–seus olhos – brincou ela com um charminho típico de uma adolescente comum. – até a Libertária pode amar,não pode?

Balancei a cabeça em claro sinal de discordância e me esforcei muito pra não esboçar qualquer sorrisinho.

Seguimos por uma estrada entre pinheiros laranjas, galhos de vidro cresciam do chão e corujas avermelhadas se chocavam uma contra as outras provocando hipnotizantes explosões de farelo colorido, seus pios eram como reconfortantes canções de ninar. Eu ainda devia estar invisível porque bruxas jovenzinhas saiam correndo de um lado a outro do bosque de pinheiros sorrindo e jogando feitiços bobos umas nas outras como em uma grande competição.

–aprendizes – sussurrou Ravena para mim disfarçando estar falando sozinha – filhas de bruxas e bruxos em treinamento.

Um pequeno grupo de feiticeiras adolescentes estavam numa roda a beira da estrada passando de mão em mão uma flutuante bola de fogo, enquanto uma bruxa mais velha mas imensamente bonita as observava de longe. Um garoto com roupas de camponês lia um grosso livro numa rede amarrada a dois pinheiros e observava disfarçadamente uma guardiã como Ravena do outro lado da estrada cortando galhos.

Quanto mais andávamos mais densa e sombria ficava a mata, o bosque de pinheiros ganhava agora olhos, ouvidos e gemidos tristonhos, além de umidade, nevoa e cipós grudentos.

– área de magia negra – esclareceu Ravena pra mim como se já não fosse bem obvio. – os aprendizes só podem entrar aqui depois dos 19 anos quando são batizados como Independentes. Depois disso tem duas opções: ou se filiam ao clã Pétrea para servir a Meredith ou formam um sub-clã, com no máximo 3 pessoas para viverem isolados no Campo da Rejeição. Você deve ser esperta o suficiente pra saber que quase ninguém escolhe essa segunda opção.

– e se a pessoa não quiser nem um nem outro? – perguntei

– essa é fácil. Com sorte pode ser um escravo do palácio, se Meredith não for muito com a sua cara lhe transforma em uma rã venenosa ou uma Sarachama.

Então foi tudo muito rápido...

Ela pulou de um lado do bosque... morena, uma trança castanha longa cuja a ponta tocava o solo, olhos amarelos como xarope muito concentrado e um capuz cinza que lhe abrilhantava o tomo da cabeça, unhas longas e compridas roçando no vestido preto de camadas.

Ela olhou diretamente pra mim com ultraje.

Definitivamente eu não estava mais invisível.

–essa não! – gritou Ravena – é Elm! Libertária fuja e...

Uma bola cinza saída das mãos de Elm atingiu Ravena a transformando em uma pilha enorme cacos, Ravena estava literalmente em pedaços.

Em seguida, antes que eu pensasse em chorar por Ravena ou sequer ultilizar o pingente de cetro pra me defender a bruxa velozmente recitou minha sentença:

“Meredith voxx poisin”

E fazendo um movimento com as mãos lançou em mim um feitiço que me fez cair no chão imóvel, dura como uma pedra, sem conseguir mover um músculo sequer.

– minha irmã vai adorar te ver descendente de Aria. – suspirou Elm me pondo como uma boneca de pano em seu ombro e levando-me pela entrada oeste em direção a Árvore da Vida.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Libertária" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.