Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 19
O Salão Omoplata




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- isso é sonho de criança, ou um efeito muito forte de drogas – comentei.

- o que são drogas? – Ravena questionou-me olhando por cima do ombro.

- não há tempo pra explicar – disse enquanto penetrávamos mata a dentro, estávamos caminhando naquele pequeno paraíso perigoso a aproximadamente uma hora.

A floresta revelou-se dentro ainda mais encantadora do que fora, as árvores produziam sombras espectrais e clareiras dentro bosque denso, tudo enganavam os olhos, borboletas fluorescentes tão finas quanto folhas de papel saiam das pedras com musgo e se dissolviam em milhões de mini borboletinhas que pareciam uma espessa nuvem de poeira, lagartixas transparentes com enormes olhos alaranjados se desprendiam dos troncos aveludados das arvores e saltavam em alta velocidade em direção a outras arvores, pássaros vestiam pequenas couraças e armaduras e lutavam entre si no céu como guerreiros imponentes ,encantei-me com flores pretas que se enroscavam em ramos frondosos do solo gramado rósea. Fiquei tão encantada que lentamente fui acariciar as pétalas negras como corvos.

- eu não faria isso se fosse você – advertiu-me Ravena segurando meu pulso antes que eu pudesse tocar a flor.

- porque não?

Ravena pegou um dos lagartos transparentes da arvore e encostou a criaturinha nas pétalas negras, a reação foi imediata, o lagarto começou a se debater e borbulhar derretendo completamente.

-a rosa do maligno – esclareceu-me ela – até o perfume é venenoso.

- entendi – disse apavorada encolhendo meus dedos e vendo o que restou do lagarto virar geleia em cima de uma pedra pontuda.

Passamos por uma cortina maravilhosa de cristais de brilho amarelo, revelando um imenso campo de lavandas gigantes, os ramos altos e roxos pareciam cantarolar uma canção conjunta.

-agora falta pouco Libertária, não se preocupe.

- prefiro que me chame de Isadora – rebati

- você não tem muita escolha por aqui. – respondeu-me ela secamente me fazendo amortecer a saída de um palavrão explicitamente ofensivo contra minha guia.

Uma chuva roxa de flores começou a cair, serena suave e perfumada.

- o que faz fora do seu posto guardiã? – a voz afiada e fervente veio até nós do meio da plantação, a dona da voz era uma morena belíssima e muito baixinha carregando uma cesta carregada de pétalas de lavanda, ela vestia roupas longas de prateadas que formavam um cauda no chão.

Congelei cada milímetro do meu corpo, ela só podia ser uma bruxa.

Ravena ficou completamente aturdida, olhava fixamente para mim, embora a baixinha olhasse para mesma direção dela como se estivesse vazia.

“eu estou invisível, o sangue da Sarachama”

Fiquei imóvel.

- responda sua criaturinha feia e desprezível. Itert, ficou muda? O que faz fora do seu posto? Você deveria estar vigiando o portal!

Ravena virou lentamente a cabeça incredulamente para a bruxa sem entender muita coisa mas tentou responder reunindo forçar para forçar naturalidade as palavras:

- bem... eu... deixei armadilhas postas minha senhora, mas preciso voltar a minha Vila para buscar mais armamento.

- vejo daqui que você está perfeitamente armada – obsevou sagazmente olhando para a bolsa repleta de flechas e lança presa as costas de Ravena.

- estamos falando de uma humana prometida a matar nossa Soberana senhora, não acha que quanto mais armamento melhor? – disse Ravena agora exultando confiança.

A bruxa arqueou as sobrancelhas em claro sinal de convencimento.

- volte depressa ao seu posto quando se reabastecer. Meredith não gostará de saber que o portal ficou sem vigilância meio segundo sequer.

E desapareceu no meio das lavandas.

Ravena parecia ter prendido a respiração todo esse tempo, porque quando a minúscula bruxa sumiu na vegetação ela soltou um enorme suspiro pesado olhando pra mim.

- como foi possível ela não ter visto a você?

Contei a Ravena toda historia envolvendo a Sarachama Bartolomeu com os detalhes dos quais me lembro, incluindo o sangue seboso e prateado que bebi do ferimento de sua asa.

- permita-me dizer Libertária... mas acho que você tem mais aliados do que imagina.

- e inimigos também minha cara.

Continuamos a caminhada.

- isso não é o meu lar.

E não parecia ser...

No alto da colina, colunas de fogo consumiam todo o lugar... as casas com teto de palha pegavam fogo, haviam cavalos exóticos mortos a beira da estrada, bancas de frutas destruídas, corpos jazendo em espetos e espadas, sangue, discórdia...

Ravena caiu de joelhos.

- papai!

Corremos por dentre a Vila desolada em chamas, paramos em frente a uma casinha modesta com jardim de flores que lembravam lábios rosados e pequeninos femininos... a casa foi a única que ainda não tinha sido carbonizada...

“Nefraitos” estava escrito em sangue vivo na porta.

- o que isso quer dizer?

- traidores – respondeu-me Ravena com um soluço alisando as pobres grades de entrada, o rosto dela estava embargado e incrédulo – mataram todos eles... Papai, Mamãe, Narim...

Ravena se encolheu como uma criança no circulo de destruição do que foi seu lar inundada em lágrimas.

-papai! Mamãe! Narim!

- Ravena, acalme-se...

- papai! Mamãe!Narim!

Ajoelhei-me ao seu lado alisando sua rança ruiva desbotada.

- Meredith sabia... sabia que eles eram seus aliados.

- eu não sou ninguém pra ter aliados.

-você é muito estúpida pra ser endeusada como é por aqui! – berrou Ravena revoltada levantando-se – todos nesse Vale, nessa terra pensam que você é uma humana poderosa destinada a vencer, minha família deve estar morta agora porque acreditaram em você sem te conhecer! O Vale inteiro está em chamas por amor a você! E você é uma garota fraca e egoísta que por algum motivo veio parar aqui. Seja qual motivo foi que a trouxe aqui Isadora, foi motivado pela força maior da profecia quer você queira ou não.

Fiquei completamente devastada com essa palavras.

- eu não pedi por isso. – respondi

- ninguém pediu. – Ravena secou as lagrimas do rosto – cabe a você então justificar sua derrota ou fazer disso um motivo pra lutar. Mais do que qualquer coisa, eu quero a vingança e a liberdade do meu povo, quero o fim da escravidão das criaturas que tem sua força e magia subtraída por Meredith e o ultraje de suas irmãs... Mas pra isso preciso de você. Você é a escolhida, não eu.

Ravena me estendeu um de suas lanças.

Olhei para trás. Eu posso voltar, minha vida vale mais que tudo isso! Eu posso escalar aquele paredão de pedras e voltar pelo mesmo túnel que vim, posso entrar na minha casa e fingir que tudo isso foi um pesadelo horrível, esquecer Hugo, Amanda, Ícaro... e torcer para que simplesmente Meredith me esqueça...

Peguei a lança.

- eu quero lutar.

Ravena esboçou um sorriso com os dentes tortos.

- mas quero uma coisa antes.

- de mim você pode ter até meu sangue se preciso for.

Suspirei.

- pra onde vão os espíritos aprisionados? Onde Meredith os coloca? – questionei

- essa é fácil – Ravena apontou para duas montanhas coladas adiante – o Salão Omoplata, além daquele horizonte, mas se pensa que vai encontrar Meredith lá é perca de tempo.

-Meredith é minha ultima parada... tem alguém no Salão Omoplata de quem preciso ver antes de lutar.

- quem?

- venha comigo e vai saber... – com isso amarrei o cabelo numa trança firme, amarrei o casaco na cintura com força e prendi a lança nas costas. Começamos a travessar o antigo lar de Ravena, incendiário, carbonizado e morto como dois fantasmas na escuridão.

Paramos perante a um enorme rio que refletia o céu imenso como um espelho, assuste-me a ver lobos perfeitamente cor de chumbo refrescando-se, a beira de pedras no rio.

- não se assuste. – Ravena assobiou fazendo dois lobos se aproximarem – aproveite humana, nunca mais você dará um passeio desses na vida.

Ravena se ajoelhou pra acariciar os lobos, que pareciam grunhir afavelmente, ela agarrou-se ao pescoço do lobo que pulou de imediato na água e começou a atravessar graciosamente o rio cor de espelho, repeti a ação com um pouco de receio, o lobo pulou agilmente, agitando as patas e fazendo-nos ganhar velocidade; inclinei minha cabeça para trás durante a travessia, as duas montanhas entre as águas formaram maravilhosos paredões de musgo, um fino rio que corria, até chegarmos a parte seca, o outro lado.

-lá embaixo- ela apontou,estávamos no alto de uma colina – o Salão Omoplata.

Era um enorme salão grego sem paredes, apenas o teto triangular e colunas, sombras e arvores mortas ladeavam o local que parecia coberto de sombra, fumaças escuras pairavam sobre o teto de chão monocromático.

- esse lugar é proibido, mas isso não aplica a você. Já quebrou todas as regras mesmo... eu espero você aqui – Ravena sentou-se pondo a bolsa de flechas e lanças no colo.

Desci a depressão correndo as pressas, a sensação de angustia e treva se apoderou de mim a cada passo que eu dava para mais perto, o local sombrio e escuro não tinha grama, luz ou pássaros, tudo era morto. E o Salão Omoplata retumbava silencio mortal.

Adentrei ao local vazio e fiquei imóvel, depressa agitação de vultos, espectros e sombras que gemiam e choravam começavam a voar para La e para cá, acorrentados, medonhos, espíritos azuis e voadores que se teletransportavam, chegando e indo embora.

-Ícaro! – gritei o mais alto que pude em meio aquela angustiante confusão.

Não obtive resposta...

-Ícaro apareça!

O espírito azul e flutuante dele, abatido, pálido, triste apareceu diante de mim me fazendo delirar de medo e contentamento.

- eu nunca estive tão vivo.

Nos dois dissemos ao mesmo tempo.


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