Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 17
A Quarta Dádiva Fatal




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Considerar carona com desconhecidos de longe foi a coisa mais segura que fiz em toda semana. Me espremi entre dois caminhoneiros gordos que me comiam com os olhos, fui largada finalmente como um pacote na placa de entrada da cidade...

Ser largada é costume.

Mas não posso exatamente reclamar, ao longo do trajeto senti como se Aria estivesse pairando sobre mim, me livrando dos mínimos males que aqueles dois caminhoneiros gordos pudessem me causar. Eu resisti bravamente, sou forte demais pra me deixar sucumbir por dois humanos que juntos somam meia tonelada.

A placa de Camilo ante a mim era uma sentença, cara a cara com ela minhas pernas se liquefizeram e perderem toda estabilidade. Toquei o pingente que reluziu minimamente, senti um vento sobre mim e assustei-me a olhar para baixo:

Eu estava trajando calças de um Jens escuro e grosso desbotado nos joelhos, uma camiseta comum e um grosso casaco verde-musgo que ganhava volume até minhas coxas... o trapos de garoto de Ícaro foram magicamente substituídos.

Ícaro... pensar nele espetava facas em brasa no fundo da minha alma ainda.

Comecei a caminhar a passos largos, a cidade repousava numa suave alvorada de amanhecer, tons indianos pintavam o horizonte calmo... Calmo até demais... não havia qualquer fluxo de carros ou pessoas em todo lugar. Isso era um presságio da próxima dádiva, sem sombra de duvidas.

Se esta não me matar... juro por deus que nada mais vai.

Eu estou pronta pra você, estou pronta pra encarar meu destino, por todos aqueles que eu amo, ou meu sangue será derramado ou derramarei sangue alheio pra conquistar tudo de volta. A imagem de Ícaro petrificado de alguma forma começou a tonificar todos os meus músculos e encher minha garganta de brasa viva.

A cidade está deserta, não há absolutamente ninguém... casas fechadas, carros parados na rua, tudo completamente intocado e com aspecto angustiante de abandono.

Um pio estridente acima da minha cabeça.

“Garra de Ouro Maligno”

Imponente, a maior ave que eu vi na minha vida, as penas douradas luziam como laminas intercaladas, o bico afiado, e garras que com facilidade poderia me perfurar de cima baixo sem esforço. Ela planou sobre mim e antes que eu pudesse ser capturada por ela pulei no meio fio e levantei-me agilmente.

Agilmente demais pra mim.

Levantai-me, a ave era uma Sarachama gigante... onde a asa encostava ateava fogo, os prédios, as casas os carros inflamavam como bolinhas de papel, os vidros estouravam com a pressão do fogo, o cenário era uma apocalipse cinematográfico de escalas surreais... insanamente, me senti até honrada que Meredith estivesse usando toda sua força pra me derrubar.

- espada! – gritei desesperada pro pingente de certo. O colar ascendo e a espada pesada agora estava em minhas mãos forçando toda flexibilidade do meu pulso.

A Sarachama investiu novamente contra mim, ridiculamente passei a lamina da espada na tentativa de machuca-la mas ela era dura como aço,a força da sua passagem me derrubou como uma boneca plástica sem alicerce nos pés. Levante-me comecei a correr ultrapassando os rastros de destruição, a cidade em chamas me assistia mortamente correr pela conhecida avenida de entrada da cidade... em meu encalço o pássaro medonho piando a ponto de furar meus tímpanos.

Subi em uma carro de passeio, mas inteligentemente a Sarachama voava muito acima de mim me deixando confusa... ela poderia muito bem já ter me trucidado sem que eu mal pudesse reagir... ao contrário disso a ave estava forçando-me tão somente a correr fugindo do fogo e das explosões no caminho.

Freei os pés levantando poeira e fazendo os tênis derraparem, um poste queimando quase me atingiu em cheio, bloqueando o caminho, fui forçada a correr pra esquerda com as sirenes ensurdecedoras de segurança que foi disparado por algum estabelecimento comercial dali.

O caminho se tornava cada vez mais familiar... eu estava tomando o rumo do meu condomínio... a ave estava me levando pra lá, involuntariamente eu estava sendo conduzida,já podia avistar a murada verde surgindo na linha do horizonte e as casas iguais e espadas formando um circulo na área.

- fogo – a espada brilhou e mandou um sinuoso raio vermelho para cima como um sinalizador, o raio pegou certeiro na Sarachama que soltou um grunhido de dor estridente, sua reação foi a mais inesperada possível, ela começou a abaixar como um avião de guerra e suas garras me puxaram pelo casaco verde, levantando-me no ar, segundos depois fui jogada com violência contra o muro do meu condômino, o impacto me fez ficar tonta,o estalo na coluna foi surpreendentemente alto.

A ave abriu suas asas e desceu imponente a meio metro de mim, seus olhos eram dourados como ouro fundido, manchado de expressões humanas.

Algo naquele olhar não me permitiu sentir medo... a Sarachama se inclinou pousando o bico até minha coxa, seu bico furou-me a pele me fazendo gritar, o sangue logo brotou em botões vermelhos e saturados...

A Sarachama se inclinou... e começou a beber, bebeu uma enorme quantidade, deixando-me ali pasma...observar seu sugada e não morta.

Ela finalmente levantou o bico úmido e escarlate do sangue abriu uma asa,nela... um desenho... era um desenho perfeito igual ao meu pingente de cetro.

- saudação descendente. – disse a ave com uma voz máscula e poderosa que arrepiou minha espinha... foi medonho e assustador.

Eu fiquei muda.

- deve estar perguntando porque ainda não te matei não é?

- exatamente. – respondi com autoridade.

- não mataria a esperança do meu povo. – disse a sarachama olhando para mim com orgulho – e de antemão peço perdão por tê-la ferido, Sarachamas só podem usar a voz humana se consumirem sangue dos mesmos... o efeito dura pouco tempo por isso serei breve.

A ave me abarcou com suas asas fazendo sombra.

- sou um traidor senhorita Agnes, fui invocado por minha senhora Meredith para mata-la... sou obra de um feitiço, um escravo que nunca perdeu sequer uma vitima... mas quando estava a sua espera recebi a visita daquela que eu amava, ela me explicou tudo e me suplicou que eu te deixasse viva. Foi por amor a aquele que eu trai que eu não me sujeitei aquela bruxa desgraçada... o perdão de Aria e a promessa de que isso redimiria a culpa que eu carrego por toda minha existência miserável me ajudaram...

- Bartolomeu? – disse com espanto! – é você?

- garota esperta... – disse ele bebericando um pouco mais do meu sangue – depois que Aria morreu me senti tão miserável que abandonei Meredith, para se vingar ela me transformou nisso... minha alma nunca pode se encontrar com a da minha verdadeira amada, sou um pássaro assassino a eterno mando daquele feiticeira, mas quando Aria apareceu pra mim e me marcou com seu símbolo eu decidi que vou fazer as coisas fazerem valer a pena agora...

- vai me deixar viver? – perguntei levantando-me – isso não vai te prejudicar?

- eu já sou prejudicado... – respondeu-me o pássaro de feições mais humanas agora.

Alisei o rosto do pássaro misericordioso.

- Aria se orgulha de você agora. – eu disse confiante

A Sarachama fez uma careta muito parecida com um sorriso angustiado.

- vá para o mundo Meridional... pegue Meredith, liberte a mim e a meus irmãos, todas as almas torturadas daquele mundo cruel, todos os escravos,enfeitiçados e transformados como eu... você é a esperança do meu povo Isa, você é a garota que nunca morre.

Fechei os olhos palpitando por dentro, a voz de Hugo dizendo-me essa frase no passado e o peso da responsabilidade nos meus ombros no presente, fora a futura iminência do desastre e caos, se eu perder essa batalha morrer será o mínimo, eu vou tirar a ultima esperança de toda uma nação de criaturas.

- como chego ao Mundo Meridional?

- pensei que nunca fosse perguntar... você tem a chave com você criança... entre na casa de Oliva, vá ao quarto dos espelhos... lá as respostas se mostraram pra você... eu tenho que ir, minha sentença de morte me aguarda. – disse o pássaro Bartolomeu com pesar. – o amor liberta Isa, lembre-se disso. – e antes que eu me esqueça... – ele passou o bico produzindo um leve sulco na asa, sangue prateado começou a escorrer num fio até gotas tocarem o chão – beba isso, vai te deixar invisível para as bruxas por algum tempo...será útil.

Encostei meu lábio no ferimento bebendo o caldo especo, o gosto era horrível, cúprico e salgado dotado de amargor grosseiro.

Num piscar de olhos a Sarachama de Bartolomeu já planava nos céus a quilômetros de mim.

Virei, agora o jogo começa... minhas suspeitas foram confirmadas, Olivia tem total ligação com Meredith! Corro até sua casa, abro a porta, subo as escadas sem reparar em nenhum detalhe, a porta do quarto está escancarada... o quarto tem aspectos medievais, cama com docel pálido, janelas com entalhos de madeira, vestidos compridos nos cabides, uma porta sinistra se escondia logo atrás da penteadeira... abro-a, revela-se a mim um gélido corredor com um espelho no final... um espelho que ondula e emite ruídos sinistros.

Me aproximo magneticamente até ele,sem receio...

Ao toca-lo o mundo e minha volta desaparece e começo a cair num portal púrpuro rumo ao desconhecido.

Ou a morte familiar...


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