Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 15
A Terceira Dádiva Fatal




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Ser carregada no colo pode ser especialmente constrangedor.

Ser carregada no colo, por um belo menino que agora finge não lhe dar a mínima dentro de um bosque selvagem e de matar completamente.

Meu ombro ainda estava ferrado, a queimadura doía ao vento, não conseguir dormir a noite toda nas atuais circunstancias, todas as informações físicas e sentimentais do dia me proporcionaram um resto de noite em claro velando de longe Ícaro, que supostamente chorava a beira do lago.

Nessa circunstancia, o que fiz me torna pior que Meredith.

-não vai me deixar nem explicar? – perguntei pela décima vez.

Ele saltou um tronco caído dando um solavanco que quase nos desequilibrou no chão.

- não – ele respondeu como de costume.

Eu respeitei, em seu lugar eu também estaria me sentindo traída.

- estamos perto – avisou ele indiferente, era um sinal para que eu me tocasse e pedisse para que ele me botasse de volta no chão. Era justo, ele andou praticamente a manhã toda comigo a tira-colo, e eu não sou exatamente tão leve como uma ginasta de dança rítmica.

Estávamos a uns dez ou vinte passos da estrada principal, bem diferente daquela em que passamos ontem já que o fluxo de carros estava assustador.

Aquele silencio entre nós dois estava me matando, Ícaro estava de cara amarrada, pisando forte na grama como um garoto que faz birra, e isso estava me deixando irritada, ele tinha tanto motivo pra isso? Quer dizer... a gente ficou uma vez! Será que eu significo tanto assim pra ele? (ou significava) o pensamento fez minhas bochechas queimarem.

Chegamos a rodovia, fizemos sinal para algum carro nos dar carona mas eles passavam como balas pelos dois estranhos, aos farrapos e com cara de cansado no acostamento.

- nunca vamos conseguir – suspirei fazendo um gesto ofensivo para uma picape que nos jogou lama, uma chuva fina começava a brotar do céu negro.

Ícaro me ignorou completamente.

- da pra você para com isso! Eu já te pedi perdão! – berrei

Ele me olhou como se eu fosse maluca, mas não teve tempo de responder, um caminhão de laranjas com um simpático senhor de barba suja parou perigosamente perto de nós.

- os jovens vão para o norte? – perguntou ele com um sotaque mineiro.

- Camilo mais precisamente – disse Ícaro simpático.

- vão ganhar uma boa carona. Vou pegar a bifurcação para capital, mas vou deixar vocês crianças, a algum tempo daqui. Pulem na caçamba do velho Pope. – disse o velho caminhoneiro com um sorriso que lhe faltavam alguns dentes.

Ícaro começou a subir na parte cargueira quando puxei sua camiseta, forçando-o a olhar pra mim.

- podemos confiar nele?

- não confiamos e ficamos aqui. O que você prefere?

Olhei a estrada desolada e o bosque que ficou para trás.

Subi finalmente no compartimento cargueiro.

Sentamos em uma área isenta de caixas de laranja, o chão de madeira estava muito sujo, mas eu não podia reclamar, havíamos conseguido uma carona para metade do caminho e isso já era grande coisa demais. O caminhão partiu menos veloz do que eu achei que fosse possível, eu e Ícaro nos encolhemos o mais distante possível um do outro.

Ícaro olhava pro longe. E eu evitava olhar pra ele. Porque eu estava em conflito? Eu amava Hugo, isso é fato concreto, estava arriscando minha vida em primeiro lugar por ele, mas no meio do caminho acidentalmente (ou por intermédio dessa profecia) encontrei Ícaro, e eu estava incomodada com o fato de que ele parasse de gostar de mim, isso é egoísta? Muito. Querer que alguém lhe ame e não querer retribuir esse amor. Esse comichão no meu peito estava fritando meu juízo, olhar pra esse rosto angelical mas não ver nele aquele sorriso bobo, aqueles olhos penetradores... me faz suplicar pela morte.

- o que você esta olhando? – perguntou-me ele, com de fossemos estranhos. Percebi finalmente que estava encarando-o descaradamente desde que o caminhão começou a se movimentar na pista.

- estou tentando concertar as coisas – me ouvi dizer.

- não perca seu tempo – retrucou-me ele – não há nada pra ser concertado.

- ah sim! – berrei, uma curva brusca do caminhão me fez cair em direção a ele, de modo que tive que usar minas mãos e para apoiar-me em seu peito evitando uma colisão de cabeças iminente. Minha garganta secou porque novamente, estávamos muito próximos, próximos como na noite passada, e lá estavam aqueles arrebatadores olhos de novo.

- agora você vai me escutar – disse – eu não contei nada, porque não queria estragar isso. Porque estava confusa, assustada, como você acha que foi pra mim? Descobrir que um mundo irreal existe e conspira pra me matar! Eu amo Hugo sim, amo de verdade. Mas isso não significa que não ame você também. Eu te amo Ícaro.

- Poderia ter sido honesta comigo desde o começo. – sussurrou ele, nossa proximidade estava nos desconcertando.

- eu estou sendo agora. – arfei pondo a mão na sua bochecha – agora me beije.

Ícaro ficou estático, palavras saiam dos seus lábios, mas nada tinha nexo, ele ficou aturdido, mas sua expressão se petrificou mais uma vez.

- eu não posso. Não até tudo isso acabar.

O caminhão freou bruscamente, a essa altura estávamos encharcados, a chuva piorou e o compartimento de carga não era coberto.

- bem crianças. Esse é o fim da linha – disse Pope descendo do banco do motorista e batendo a lataria com força, me dei conta agora que estávamos em um inacabado posto de gasolina com um restaurante meia-boca.

Agradecemos a Pope que nos sorriu com felicidade exibindo as fissuras banguelas e os dentes restantes amarelados, em outras circunstancias pagaríamos a ele, mas nosso dinheiro curto não nos permite mais ser tão nobres assim. Minhas pernas estavam doloridas, devíamos ter percorrido uma hora e meia de estrada no Maximo.

Pela placa e excessos de estabelecimento comerciais como o mesmo nome, estamos em um vilarejo com nome de “ Saleiro”. Vendedores de peixe e sapateiros estão em maior numero na calçada, cercando uma praça oval com pessoas pacatas.

- faltam no mínimo duas ou três horas para Camilo – disse-me Ícaro, sua voz indicava que ele fingiu que nada aconteceu nem mudou entre nós.

Fiz um olhar de “e agora?”

E ele respondeu chamando-me até a praça, seguindo em frente.

Eu estava faminta e cansada, não dormi e não sei se agüentaria andar mais ou embarcar em outra carona desconfortável como essa.  Em compensação meu ombro parecia estar se recuperando progressivamente da dor, agora ele pinicava e coçava bem mais do que doía.

Sentamos em um banquinho azul descascado, crianças corriam com balões de bichos em torno de nós em quanto uma mãe gorda e rabugenta os repreendia chamando-os para dentro de uma sapataria.

- aqui é um terminal de ônibus. – disse-me Ícaro indicando uma placa luminosa. A chuva já nos cobria e envolvia completamente, mas nenhum de nós dois parecia se incomodar. – esperamos, nosso dinheiro compram passagens apenas para a cidade mais próxima, a quarenta minutos daqui.

- maravilha – ironizei.

Senti que Ícaro estava contendo seu braço, eu li nos seus olhos a intenção de me abraçar? Ou tudo é fruto da minha imaginação desesperada? Talvez fosse, a chuva começou a ficar forte demais, era como uma torrencial cascata poderosa desaguando do céu, logo nós dois estávamos encharcados.  Aproveitei o ensejo para abrir bem a boca e beber o máximo de água possível, a sede estava queimando mina garganta. Ícaro observou porém foi mais inteligente, providenciou com um dos comerciantes uma garrafinha vazia e encheu com a boa água do céu.

A exaustão começa a me vencer, sinto a visão turva, o corpo amolecendo como manteiga ao sol, como seria bom dormir agora, meus olhos se fecham praticamente para um cochilo forçado.

A alguma coisa abaixo do meu corpo em movimento, trepidando, velozmente. Minha cabeça está sonolenta, todos os pensamentos estão embaralhados em minha mente.

Abro vagarosamente os olhos e dou de cara com Ícaro me encarando assustado, levanto-me bruscamente e bato a cabeça em um estreito teto forrado.

- quer ficar quieta? – solicitou Ícaro forçando-me a deixar novamente. Os passageiros da van olharam todos pra nós.

Observando atentamente estávamos em um veiculo apertado, bancos estreitos, cheio de garotos e garotas estranhos. A paisagem turva indicava que estávamos em movimento estrada a fora. Uma mulher anã com uniforme branco e meias que iam aos joelhos se aproximou de nós.

- por Deus, finalmente! – berrou ela com a voz de gaita desafinada – como está se sentindo queridinha?

Fiquei aturdida demais pra responder, onde estávamos? Como entramos nessa van cheia de desconhecidos?

- ela ainda está muito fraca, a senhora entende? – disse Ícaro, percebi então que ele estava com os braço em torno das minhas costas, uma de suas mãos afagava teatralmente meu ombro, seus olhos estavam cheios de preocupação. – sabe como é o corpo de uma mulher quando isso acontece.

Isso me confundiu.

- claro que sei querido. – disse a anã, retirando prontamente de uma mochila térmica um farto sanduiche envolto em plástico filme e uma latinha de refrigerante.

Sem cerimônia abri vorazmente o pacote plástico e comecei a devorar o sanduiche, minha barriga era uma centrifuga louca e insaciável, desesperada por comida.

- se quiser tem mais, querida. O seu bebê não pode ficar com fome.

Um pedaço de sanduiche entalou em minha garganta antes de eu tossi-lo para fora.

- bebê? – berrei com os dentes cheios de pasta de frango.

Ícaro me beliscou disfarçadamente nas costas, antes de me fuzilar com os olhos.

- não precisa se envergonhar meu bem – a anã afagou o meu braço maternalmente – seu namorado me contou tudo. Apesar de vocês serem jovens estão fazendo a coisa certa em irem se casar na cidade. Quando nossa equipe estava saindo daquele povoado e vi esse rapaz maravilhoso – ela apertou a bochecha de Ícaro como uma avó faria – tentando reanimar você, não pude resistir em oferecer uma carona a vocês. Como desampara uma mãe nesse estado?

- tenho certeza que por cuidar da minha família Professora Alba, sua equipe de ping-pong chegará as nacionais com a graça de Deus. – Juro que os olhos de Ícaro estavam cheios de lágrimas, ele chegou até a afagar minha barriga. Ele é ótimo ator. Não sei se posso convencer todo mundo como uma jovem mãe grávida.

“coma, querida coma” disse-me ela antes de voltar aos acentos da frente.

-  você não presta – sussurrei no ouvido de Ícaro em quanto ninguém olhava.

- você também não – disse ele com um sorriso no rosto – agora dance com forme a musica e chegaremos em Camilo logo.

Observei que tudo começava a ficar escuro demais lá fora, quanto mais nos aproximávamos de Camilo mas forte ficava a tempestade. O relógio indicava final da tarde.

- como isso é possível? A gente chegou naquela cidadezinha na hora do almoço. – questionei.

- você ficou desacordada por três horas, era como se corpo estivesse obrigando você a dormir. Foi um golpe de sorte, se Alba e sua equipe não nos tivesse encontrado naquela situação não iríamos conseguir essa carona. – disse-me Ícaro cautelosamente – inventar uma desculpa pra seu sono profundo foi mais fácil. Estamos na estrada a uma hora, umas seis ou sete horas chegamos lá.

As mãos de Ícaro ainda estavam em torno de mim, e confesso que com toda essa mentira ainda conseguia me sentir feliz com ele. Ou era fingimento, ou ele não parecia reclamar também.

- se sente bem meu amor? – dizia Ícaro pra mim teatralmente. As pessoas estavam parecendo acreditar mesmo que éramos um casal de adolescentes que estava vivendo o drama da gravidez antecipada.

- claro meu bem – eu dizia com o mesmo fingimento. Eu queria poder fingir pra sempre.

Aproveitamos o Maximo para comer os suprimentos da equipe, os garotos nos olhavam assustados em quanto traçamos toda bolsa térmica de sanduiches e bebemos as latas de refrigerante que podíamos agüentar. Professora Alba parecia angelicalmente satisfeita com a situação.

Uma freada brusca nos aterrorizou, um policial vestido com traje especial laranja bloqueou nosso caminho adiante com seus sinalizadores, a chuva torrencial que caia lá fora o fustigava em quanto ele mandava o motorista encostar o veiculo com gestos.

Apertei o braço de Ícaro com toda força, eu estava aterrorizada, se fosse mais uma armadilha no caminho de Meredith?  Ícaro correspondeu meu gesto afagando minhas costas em quanto olhava apreensivo para os cones laranjas que fechavam a estrada.

- boa noite senhores – disse o policial quando o motorista abaixou o vidro – documentos e carteira de motorista por favor.

 O motorista fez conforme o pedido do policial, que pediu que ele descesse logo em seguida.

- o que está havendo? – perguntou um dos alunos assustado

O motorista voltou para o carro xingado palavrões.

- temos problemas Alba. – disse o motorista socando o volante. – a via única até Camilo foi eletrificada por um cabo de força que rompeu durante a tempestade. Não é seguro avançar além daqui pelo menos até amanhã.

O alvoroço começou na van, seja o que for que esteja acontecendo não posso por essas pessoas em risco, isso tem o dedo podre de Meredith.

- o que faremos George? Dormiremos na estrada? – berrou a outrora doce professora Alba que parecia bem mais irritada agora.

- se quiserem um sugestão senhores, há uma pousada no acostamento, vocês passaram por ela a alguns minutos. – disse o policial, despedindo-se para parar outro carro que tentava avançar pela estrada. – tenham uma boa noite.

Um suspiro nervoso abafou o veiculo.

 - se não tem jeito... – suspirou Alba – tudo bem gente, teremos que passar a noite por aqui. Ficaremos na pousada e amanha de manhã tudo estará resolvido.

Olhei para Ícaro nervosa, não tínhamos dinheiro suficiente (nem de longe) para pagar uma refeição de pousada quem dirá uma hospedagem para dois.

- Professora Alba, seria muito incomodo pedirmos pra dormir na van esta noite? – balbuciei realmente aturdida – não temos dinheiro...

- podem parar por ai – disse a anã como se a tivéssemos ofendido – não vou deixar uma moça grávida passar a noite em um carro qualquer, vocês vão dormir na pousada, eu me responsabilizo por isso.

- não podemos pagar – disse Ícaro.

- mas eu posso. São meus convidados e chega de conversa. George, faça o contorno depressa. Pé na tábua.

- ótimo – murmurei torcendo meus cabelos encharcados – eles nos deram uma cama de casal.

O quarto era pequeno, paredes descascadas, uma televisão cheia de chuvisco estava ligada no jornal local onde a magrela da previsão do tempo previa a maior tempestade da historia justamente na região onde moro. O ventilador de teto produzia mais barulho do que vento.

- somos um casal – disse Ícaro com ironia cômica – se não fossemos um casal, eu não teria te engravidado – ele deu um tapinha na minha barriga.

Senti minhas bochechas inflarem de ódio. Joguei meu tênis encharcado bem no meio das suas costas.

- você é tão engraçadinho. – disse irritada – que tal dormir sozinho lá fora?

- você não faria isso – disse ele, tirando a camiseta encharcada revelando seu poderoso corpo forte, foi tão constrangedor que desviei o olhar e fingi estar secando meu cabelo ainda.

- faria sim. – retruquei – não faz diferença, estamos brigados mesmo.

Ficamos nos encarando por um longo minuto. Antes de nos dispersamos pelo minúsculo cômodo.

Secamos nossos cabelos, pela nossa total falta de roupa tivemos que usar os roupões do quarto. Acho que a cota de situações constrangedoras foi esgotada por hoje, não tinha como piorar.

Ah,tinha sim. A gente ainda tinha que dividir a cama.

Talvez seja erro meu ficar me preocupando com inconveniências quando minha vida, da minha mãe e dos meus amigos está em risco. Talvez eu esteja perdendo completamente o foco. A qualquer momento um novo atentado pode ocorrer, por isso preciso descansar, com Ícaro ou não.

Nos deitamos mantendo uma distancia razoável, fizemos em conjunto uma barreira de travesseiros, pode parecer criancice ou infantilidade, mas fizemos. Ele me deu um frio “boa noite” antes de apagar as luzes.

Eu não consegui dormir, fiquei de guarda, quase caindo na ponta da cama, velando o sono de Ícaro, espreitando por dentre os travesseiros em quanto ele respirava de leve, em quanto dormia como um bebê, o rosto dele sem raiva, suavizado é bem mais bonito.

- se você soubesse que eu te amo. – sussurrei – você me perdoaria? Eu poderia ficar aqui pra sempre com você?

Ele continuou dormindo. Ouvindo minha confissão. Sem nada entender.

Alisei o contorno das suas sobrancelhas, lembrei da forma como ele me ajudou na biblioteca quando eu me senti mal, quando ele me segurou para que eu não caísse em quanto pulávamos o muro, quando ele me ajudou a me salva de Brenda, como ele foi cuidadoso, cada palavra... cada gesto.

Controlei meu impulso de beijá-lo. É completamente errado. Eu estaria declarando fraqueza, estaria abrindo uma brecha pra ele tomar conta do meu coração que já tinha dono.

Simplesmente é errado eu beijá-lo, mesmo que enquanto ele estivesse dormindo.

Levantei da cama, jamais conseguiria dormir. Minhas roupas já estavam secas no banheiro quente, vesti, a sensação era boa na pele. Fiz um rabo de cavalo firme em meu cabelo e me dirigi até a janela, luzes azuis piscavam no horizonte chuvoso, eram pequenas explosões, uma mistura de flechas, fogos de artifício e cometas.

Simplesmente lindo, nunca vi um fenômeno desse em nenhum lugar. Abri a janela. Os fogos desciam em cascata no céu.

Me dei conta, estava ficando mais perto, as luzes de aproximavam perigosamente da terra, voavam muito pra perto do local onde estávamos.

Uma delas atingiu uma casa a poucos metros de onde eu observava, a flecha-cometa azul celeste fincou-se no telhado de uma casa, a cor do telhado mudou nitidamente de vermelho-tijolo para cinza, seco como pedra.

“Flechas Celestes que Paralisam”

-Ícaro acorde! – berrei

Ícaro pulou da cama pronto para correr como eu esperaria de uma pessoa que já passou por dádivas demais.

Joguei sua bermuda para que ele se vestisse, demorou uma fração de segundo para isso.

- temos que sair daqui agora! – berrei o puxando pela mão porta afora.

- o que está havendo? – perguntou-me ele em quanto disparávamos pelo corredor.

No dado momento, uma Flecha-Celeste perpassou o forro do teto e atingiu o chão ao nossos pés, o chão inteiro começou a petrificar lentamente, solidificando-se.

- respondida a pergunta? – o arrastei para as curtas escadas que davam para saída.

Jamais serei capaz de agradecer a equipe de ping-pong, a Professora Alba, e ao motorista George, essas pessoas estão suscetíveis a maldição que agora bombardeia a pousada.

Eu acho que gritei “temos que salva-los” pra Ícaro, mas ele me puxou pelo braço em quanto fazia uma negativa com a cabeça. Não dava mais tempo. Jamais daria.

Passamos pela recepção, quase desmaiei de horror, o pacifico cubículo cheio de chaves e caminhoneiros cansados foi transformado em uma inacreditável escultura de pedra, o chão, o teto, a pequena samambaia ao pé da porta... tudo foi petrificado por uma daquelas flechas azuis que caíram do céu, a recepcionista estava estática com uma expressão de horror atrás do balcão. Tudo por minha maldita culpa. Se eu não estivesse aqui...

Corremos em direção a saída, foi uma péssima idéia, flechas torrenciais caiam de todas as partes do céu, tudo que elas tocavam virava pedra instantaneamente, tudo que passava próximo ao brilho azul ficava estático para sempre.

- escudo! – o pingente de cetro brilhou formando um escudo oval e brilhante em tono de mim e Ícaro, instantaneamente comecei a me sentir cansada, exausta na verdade, era como se u poder extraído do pingente estivesse sendo tirado da minha força vital, era como e a magia estivesse sugando minha energia. – vamos correr.

Com dificuldade começamos a correr na mistura de tempestade e flecha, a chuva e o vento pareciam nos arrastar para trás em quanto as Flechas-Celestes ricocheteavam pelo nosso escuto e atingiam outro local aleatório.

- o que faremos agora? – berrei, a acústica dentro do escudo não era muito boa.

Ícaro apontou para o horizonte, no final da estrada tudo parecia estar absolutamente tranqüilo, depois de uma ponte que atravessava um pontinho escuro na visão que parecia um rio.

- as flechas não se estendem até a divisa do estado. Vamos para lá! – acho que foi isso que Ícaro disse antes de me puxar pra correr com ele.

Tudo. Absolutamente tudo estava petrificando, carros viravam esculturas enormes, postes, arvores, os policiais que estavam fazendo o blitz no caminho mal tiveram tempo de gritar quando foram atingidos e estilizaram para sempre.

Isso era horrível. Pessoas morrendo, o que mais poderia acontecer quando se vira pedra?

Não chegaríamos tão cedo na divisa, quanto mais corríamos até a ponte mais distante ela parecia ficar, Ícaro teve que me puxar pelo braço para que eu corresse mais depressa, mas a paisagem de desolação petrificada estava me assustando e minhas pernas estavam protestando de cansaço, eu estava esgotada, e não era de correr, desde que ativei o escudo do pingente estava me sentindo a beira da morte.

As flechas pareciam ter dobrado de quantidade, nem os fios de elétricos escaparam, a cidade começava a ficar fantasmagórica.

Cai no chão, não conseguia mais respirar, não conseguia mais levantar.

- anda Isa, estamos chegando! Levanta! – Ícaro gritou me pondo de pé – eu sei que você pode.

Eu não podia, eu queria desesperadamente desativar o escudo, ele estava sugando-me toda força de vontade e energia, eu estava sofrendo uma sobrecarga.

Ícaro meu pegou no colo, começou a correr com vontade, senti até que iríamos cair a qualquer momento com aquela velocidade, Ícaro parecia exausto, o meu peso não estava facilitando nossa chegada até o lado seguro da divisa.  Foi ai que o escudo falhou, apagou por completo por meio minuto, foi suficiente para que quase fossemos atingidos por uma flecha que passou assoviando por minha orelha antes de tocar o chão.

- escudo. – solicitei tossindo de fraqueza, ele responde por um segundo antes de falhar.

Ícaro pôs o pingente rapidamente no pescoço.

- escudo. – o escudo voltou com vitalidade total.

Ele recomeçou a correr comigo no colo, eu me senti instantaneamente recuperando a força, tônus de energia e vitalidade começaram a preencher o meu corpo, ao contrário de mim Ícaro parecia estar ficando exausto, morto.

- me põe no chão.

Ele me colocou e juro que quase o vi deitando no asfalto petrificado.

Andei com vontade o puxando pelo braço, estávamos agora na cabeceira da ponte, meu corpo estava coberto de suor e minha garganta ardia, o ar quente parecia veneno nos meus pulmões fracos.

- o escudo. Não foi feito pra duas pessoas. – ofegou Ícaro.

- calado. Estamos chegando. Vamos conseguir – berrei desesperada, eu sentia o escudo começando a falhar novamente. As flechas não paravam de cair.

- olhe! – Ícaro apontou para a água. Entendi sem palavras o que ele queria dizer, estávamos sob a ponte Brigite,  uma ponte realmente baixa sob águas escuras e paradas.  As flechas simplesmente afundavam, a água não petrificava quando atingida.

O escudo parou, ficamos completamente desprotegidos. Ícaro estava ofegante, a ponto de cair de joelhos.

Uma flecha começou a cair veloz demais em nossa direção.

Ícaro olhou pra mim, aqueles doces olhos estavam de volta, ele me pegou pela nuca.

- se eu tivesse uma chance, ficaria com você pra sempre. Porque amo você. – ele me beijou desesperadamente em quanto eu chorava.

- vá em frente. Acabe com Meredith. Eu confio em você meu amor.  – ele colocou o colar em torno do meu pescoço novamente.

O inesperado ocorreu, Ícaro me empurrou na água com toda a sua força, a ultima coisa que vi antes de cair em queda livre em direção ao desconhecido foi uma flecha atingindo meu Ícaro no coração e transformando-o em uma estátua de pedra sem vida.


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