Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 13
A primeira Dádiva Fatal




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Mastiga.mastiga.mastiga.

Eu não sinto gosto nenhum. Na minha mente vejo o rosto de Kevin agonizando, sangrando, debulhando vida. Sem o mínimo pudor cuspo as batas fritas da minha boca, o bolo de comida machuca-me ao descer pelos lábios, afinal os cortes de vidro dos meus lábios ainda estão completamente abertos. Era isso, ou morrer tostada.  Pular da janela fechada de uma casa em chamas e cair a seis metros do chão na areia da praia provavelmente teria me matado.

Teria, mas ainda sou a protegida de uma profecia idiota.

Ícaro olhava para o nada, os olhos distantes, parecia vazio por dentro, oco. A lanchonete do posto a quinze quilômetros da praia da Roca cheirava a mofo e a fritura. Quando ele finalmente chegou à casa de Kevin, tudo já estava consumido pelas chamas,  e eu estava desmaiada na areia da praia, abraçada a dois exemplares de “A Ascensão das Pétreas” . Saímos antes da chegada de qualquer autoridade policial.

Eu não sei o que devia dizer. “desculpe, se seu tio morreu por minha causa” não parecia boa ideia, eu havia envolvido um rapaz inocente nisso, era a mim que Meredith queria, tudo que estava ao meu redor estava suscetível ao desastre. Era hora de dizer adeus, vou me levantar da mesa do restaurante, esclarecer a Ícaro que era minha hora de seguir sem ele. O que mais de mal poderia acontecer comigo afinal?

“eu gosto de você” ele disse hoje mais cedo. Acho que isso não sobreviveu aos fatores subsequentes. Meu coração está moído, a ideia de ir embora e enfrentar tudo isso sozinha me cercava de pânico absoluto.

Ele pareceu adivinhar o que eu ia fazer, no décimo de segundo em que cogitei abrir a boca ele mirou seus bondosos e calorosos olhos pra mim e segurou minha mão, não de um jeito delicado e romântico, ele segurou a minha mão com força, exigência e masculinidade.

Ficamos nos encarando por não sei quanto tempo. Eu não conseguia desviar o olhar dele por mais que eu quisesse isso.  A lanchonete inteira parecia ter desaparecido, estávamos imersos em um mundo a parte, onde queríamos dizer tudo e não dissemos nada.

Ele soltou minha mão.

- pare de se culpar pelo que aconteceu – ele suspirou, captou exatamente o que eu estava sentindo.

Lágrimas desceram pelo meu rosto e purgaram meus cortes, foi inevitável.  Eu não conseguia dizer nada, era como me afogar dentro do meu eu, cada palavra vinha a tona mas era engolida e ficava amarrada a garganta me impedindo de respirar. Meu rosto estava em brasa.

Eu tinha contado a ele tudo o que aconteceu pelo menos três vezes no caminho, revisando detalhes,  descrevendo o fogo azul, o ódio nos olhos de Kevin, o pássaro meio coruja meio águia...

- era uma Sarachama. – disse-me Ícaro em tom sério em quanto ele dirigia a toda velocidade antes de chegarmos ali – pássaro maligno, criado por intermédio de feitiço, funciona com a junção de dois pássaros e um réptil, ele é um mensageiro e exterminador.

- foi um erro ter te trazido aqui. Eu pensei que Kevin tinha se curado da obseção por Meredith. – sussurrou ele tirando uma mecha de cabelo da frente do meu rosto. – achei que aqui fosse um lugar seguro.

Agora foi minha vez de agarrar sua mão.

-me perdoa – grunhi.

Ele se levantou, me puxou para fora da lanchonete, ao lado das bombas de gasolina ele abraçou-me fortemente, apoiando o queixo na minha cabeça, dizendo palavras consoladoras como se eu fosse uma criança, inconsolável.

- eu estou do seu lado. – disse-me ele.

- e isso está errado – eu me afastei dele e coloquei as mãos nos seus ombros – olhe o que eu fiz com a sua vida! Nem somos amigos direito, mal nos conhecemos e já estamos cercados de perigos e sentimentos e todas essas coisas!  Eu tenho que seguir com isso sozinha pro seu bem.

Ele me fez olhar pra ele.

- nunca. Tá me ouvindo? – agora a voz dele estava sufocada por um soluço reprimido – eu também não entendo por que. Mas eu não vou te deixar. Entramos nisso juntos e vamos sair também.  

Eu queria dizer a ele que não. Mas eu não tive força de vontade pra isso, por mais egoísta que parecesse, eu queria ele comigo, pra me proteger.

Como eu sou ridícula.

Ele enxugou uma lagrima insistente da minha bochecha.

- vamos, temos umas contas pra fazer – disse ele me puxando e forçando um sorriso.

Sentamos na calçada, encostados numa vitrine empoeirada de itens de manutenção para carros.

Ele tirou a carteira de couro velho do bolso da bermuda, sorri quando percebi que estávamos vestidos quase com as mesmas roupas, já que o meu único vestido arranjado foi maculado com sangue. Por sorte a mochila de coisas que ele providenciou na casa do falecido tio estava no carro quando ele foi abastecer. Sinceramente, prefiro a enorme camiseta do Star Wars e a bermuda impermeável que cobre os joelhos do que o vestido traumático e amarelo de mais cedo.

- nossa grana acabou Isa. – suspirou ele abrindo a carteira, o cartão tridimensional de dragão branco escondia uma surrada nota de vinte reais. – são pelo menos quatro horas e quarenta e cinco minutos daqui até Camilo. O nosso combustível ficará nas ultimas pelo menos  até a entrada da cidade, até lá teremos que segurar a onda.

Dei de ombros.

- até lá ficaremos bem. Com isso são cinco dias. Cinco míseros dias até meu encontro profético com a tal Meredith.

- o que pretende fazer? – ele me questionou.

Boa pergunta. Nunca matei sequer uma barata com um chinelo de plástico, como enfrentaria uma feiticeira milenar que está usando todo o seu poder para me tirar do caminho. Uma profecia está livrando minha pele e me levando para o abismo, afinal de contas não é uma garantia de que eu sobreviva.

- eu não sei – foi o que consegui responder, automaticamente minhas mãos pararam no pingente de cetro. – na hora espero que Aria me oriente.

Como esqueci de mencionar o meu sonho com a rainha, tive que esclarecer a ele a existência do meu colar mágico e meu encontro com a própria Aria.

Ele tocou o pingente, seus dedos afagaram minha pele e senti o corpo entrar em choque. Se ele percebeu não demonstrou, porque levantou bruscamente e me levou junto com ele pelo braço. Fomos para o carro.

Minha ultima porém evidente preocupação é minha mãe, meu telefone celular foi consumido pelo fogo, mas posso supor que tipo de mensagens furtivas e furiosas ela deve ter me enviado, exigindo saber meu paradeiro, posso até imaginar a policia em meu encalço. Ótimo. Tiras, uma mãe furiosa, bruxas, corvos,profecias,maníacos, fogo maligno, Sarachamas... estou surpreendia com a minha capacidade de controle, outras pessoas em meu lugar já estariam surtadas em posição fetal.  E se Olivia Gremin for mesmo filha de Meredith, minha mãe está suscetível a todo tipo de perigo, porem tenho a sensação que ficando longe dela, estou mantendo-a fora de perigo.  Se Meredith for mesmo esperta não encostará em um fio de cabelo dela, sou capaz de aprender rapidinho a manusear uma espada e cortar a cabeça dessa bruxa caso minha mãe sofra alguma coisa.

Ele deu partida e começou a dirigir suavemente, uma sensação ruim estava me incomodando, podia sentir uma espécie de vertigem chutando meu estomago. Tentei sintonizar a radio, uma suave canção melosa ronronava baixinho preenchendo o silencio do carro. Fiz palavra cruzada até me irritar por não conseguir preencher as duas ultimas colunas.

- quer ler pra mim?

- como? – rebati.

- os livros que pegou de lá. Da casa... –a voz dele foi morrendo, provavelmente com lembranças do tio, seus olhos estavam cobertos de conflitos emocionais.

Peguei a contra gosto o volume um da Ascensão das Pétreas, o livro tinha paginas muito grossas e emboloradas e gravuras que manchavam ao serem tocadas, toda vez que esbarrava os dedos e manchava uma gravura Ícaro soltava um gemido que se traduzia como “ está estragando, isso é precioso!”

Eu ria sempre, e as vezes fazia de propósito. Quase me esqueci de onde estava e em que situação me encontrava...

Quase...

Eu li em voz alta enormes textos com palavras desconhecidas, Ícaro traduzia todas sem pensar muito, tudo isso com os olhos na pista, vazia demais para uma rodovia comum. Nenhum carro. Estranho.

Vi uma gravura de uma mulher com vestes camponesas  frente a frente com uma estereotípica bruxa as duas se enfrentavam avidamente, a camponesa com postura de vencedora, mas os trejeitos da bruxa também não deixavam a desejar, a pagina seguinte estava em branco, quando me dei conta disso,  o colar de cetro começou a flutuar e arder no peito, a corrente parecia puxar me pescoço, assombrando, Ícaro freou o carro bruscamente no acostamento.

O cetro cintilava azuladamente, puxando-me em direção a pagina em branco. Assustada tirei o colar do pescoço, o pingente de cetro flutuou até ficar bem próximo a página, para meu maior espanto, a luz azul revelou algumas letras entrecortadas na página.

Ícaro ficou aturdido, abismado como um completo idiota.

- é uma mensagem oculta – berrou ele apertando acidentalmente a buzina e se desfazendo do cinto de segurança.

Encostei o cetro na página e letras azuis surgiram por toda a página imediatamente, como o teste, tirei o cetro de perto, a página voltou a ser em branco como vimos a primeira vez.

-incrível – berrei tornando a encostar o pingente no alto da página.

- leia pra mim – pediu Ícaro – estou sem os meus óculos de grau.

Dei de ombros.

“ As Quatro Dádivas Fatais

Hawooy, a camponesa do baixo leste levantou um motim para queimar, Drápia, a bruxa dos campos, do clã Pétrea, indignada por seu filho mais moço ter desaparecido na campina, durante o trabalho da colheita de inverno, Hawooy assassinou um dos aldeões e responsabilizou Drápia, que outrora viva pacificamente com a população, condenada a fogueira, Drápia invocou a jura das Quatro Dádivas Fatais antes de ser capturada pelos aldeões, usando três gotas de sangue do amor verdadeiro, a bruxa dos campos deu a sua inimiga quatro dias de tormenta , se ela sobrevivesse teria vida abundante e paz para sempre, se não conseguisse vencer as dádivas no mínimo morreria.

Venenosas de Esmeraldas

 Mutantes em pele de bem

Flechas Celestes que paralisam

E por fim as garras de ouro maligno “

A historia acabava ai.

- o que aconteceu com Hawooy? – virei a pagina, mas ao contrario dela ela estava preenchida com outra lenda completamente diferente.

Acho que nunca vou saber.

- vamos embora. – pedi a Ícaro. Uma sensação de angustia invadia meus músculos e me deixava enjoada.

Normalmente, Ícaro girou as chaves do carro, o veiculo soluçou, roncou com força e morreu, ele tentou duas vezes e o carro simplesmente não deu partida.

- ai não.

Isso não estava no roteiro.

- acha que alguém na face da terra concerta um carro por menos de vinte paus? – pergunto meio despreocupada demais para a situação.  Ícaro não altera seu repentino mau humor com a minha piada e começar a xingar o maldito carro em quanto gira a chave inutilmente.

- tem o telefone de um mecânico no porta luvas – ele disse pra mim, mais que depressa abri o compartimento e me deparei com a enorme bagunça de papeis, embalagens, envelopes e agendas.

- sabe, tem uma coisinha mágica chamada faxina, a gente tira tudo que não presta do carro e joga fora. Funciona assim – ironizo com o rosto enterrado no porta-luvas vasculhando as pilhas de papeis aparentemente inúteis.

Telefone da pizzaria,bujão de gás,uma tal de Clair... quem é Clair? Tem uma marca de beijo ao lado do numero do telefone, não sei por que isso me incomodou.

- pode me dizer quem é Clair? – questiono a Ícaro.

- Isa...

- eu fiz uma pergunta simples, é sua ficante ou coisa assim?

- Isadora.

A voz dele estava tensa, rígida, sufocada por um pânico que eu não consegui identificar em ninguém antes.

-pode levantar a cabeça um minutinho? – pediu-me ele.

- tem mais papeis aqui que eu não posso ver? – brinco com ele, ele é bom ator, está conseguindo me assustar com essa voz rouca e tremida como se ele estivesse vendo um fantasma.

- Isa, quando você ver o que eu estou vendo, prometa que não vai ficar em pânico. – sussurrou ele agarrando minha mão.

- mas, ora porque diabos eu ficaria em...

Eu ergui os meus olhos. Minha garganta foi petrificada e meus olhos capturados. Por toda extensão do lado de fora do carro, cobras subiam e desciam. Cobras enormes, de pele verde brilhante e capelos de dourado vivo. Passeavam pelo nosso carro, pelos vidros fechados das janelas, pelos retrovisores, pelo para-brisa, e pareciam multiplicar de quantidade. Suas línguas bifurcadas dançavam para fora da boca.

Soltei um grito curto e rápido.

Ícaro ficou tentando desesperadamente ligar o carro sem resultado.

- cobras! De onde vem tantas? – berrei para Ícaro, a auto estrada cercada de bosques e lamaçais era bem convidativo para serpentes, mas nunca daquele tipo! As milhares de serpentes que rastejavam pelo lado de fora do carro pareciam daqueles filmes encantados indianos.

Ícaro ficou pensando por um tempo.

- de onde você acha que vem? 

Eu sabia exatamente. Mais um presente mortal da minha inimiga milenar Meredith.

- ele está jogando sujo! Tentando de tudo pra me eliminar.

- não vai conseguir – me assegurou ele nervosamente – estamos seguros dentro do carro, hora ou outra algum carro vai passar e chamar socorro.  Aqui dentro as serpentes não podem nos machucar.

Uma cobra que rastejava velozmente no para-brisa inclinou sua cabeça para nós, a cabeça era prateada e pontuda como uma lança, com alta velocidade, a cobra bateu a cabeça contra o vidro que recebeu uma pequena fissura.

Fiquei boquiaberta.

- ótimo. Agora elas decidiram entrar. – berrei.  Não havia escapatória. Nenhuma chance. A autoestrada estava completamente vazia. As cobras começara a repetir a ação da primeira, batendo suas cabeças pontudas contra o vidro, fazendo-o rachar aqui e ali. Logo uma brecha seria aberta. As serpentes tinha pele verde que brilhavam como uma joia, uma..

“Venenosas de Esmeralda.” Veio a minha memória, como alguém que ligou a luz eu tive um esclarecimento automático e completo.

-Ícaro! – gritei estrangulada, uma cobra do meu lado da janela, acertou o vidro produzindo uma fissura dois dedos mais profunda. – as quatros dádivas fatais.

Ele ficou olhando pra mim aturdido depois arregalou os olhos como se lembrasse também, com toda certeza a sarachama de hoje mais cedo foi enviada para recolher o sangue de Kevin, que amava verdadeiramente Meredith.

Acho que isso é tudo. Só pode ser o fim, em todas as outras vezes que sofri atentados conta minha vida haviam chances de escapatória, haviam saídas, haviam resultados oblíquos e remotos que talvez me levasse a sobrevivência, agora não há nenhum tipo de esperança por mais remota que seja, em todas as vezes que disse perder a fé está é a maior de todas, quando Kevin me apontou aquele machado eu ainda esperava escapar, quando me desprendi das ferragens do acidente de carro que matou meu pai e meu irmão eu sabia que viveria, agora quando penso nas possibilidades minha mente bloqueia qualquer futuro que não seja a morte.

As cobras começaram a recuar, até não sobrar mais nenhuma em cima do carro, arrastando-se para dentro do bosque, incrédula senti vontade de aplaudir, eu sorri. Elas se foram! As cobras haviam entrado no bosque, pararam de nos atacar. Comecei a sacodir Ícaro de felicidade mais ele estava imóvel, sério e tenso.

Era bom demais pra ser verdade.

As cobras retornaram e começaram a subir umas sobre as outras, as peles começaram a se fundir, formando uma cobra maior, cada vez maior, todas se uniram até formar uma cobra só de aproximados oito metros de comprimento, pele verde escura e diversas línguas tentaculadas, o carro de Ícaro caberia perfeitamente dentro do olho da horrenda serpente.  

Temos que sair daqui. Agora.

- sai do carro – Ícaro gritou

Mas era tarde, a cobra gigante estava a meio centímetro de distancia, encarando-nos, com os olhos brilhantes deliciando as duas presas encurraladas e inofensivas.

Ícaro me puxou para o banco de trás do carro, nos abaixamos o máximo até o piso, a serpente perpassou sua enorme cabeça prateada pelo vidro do para-brisa, de perto era ainda mais assustador, com um movimento de seu corpo, a cobra gigante jogou nosso carro a doze metros de distancia da pista, para dentro do bosque, o carro capotou batendo e rochedos e arvores até finalmente parar. Eu rodava gritando dentro do veiculo, borrões metálicos passavam diante dos meus olhos, vidro estilhaçado percorria meu corpo ainda enfermo, meu corpo era repuxado e jogado do teto do veiculo para a parte da frente do carro.

Clarões preencheram meus olhos, minha cabeça doía, eu não conseguia mais me sentir dentro do próprio corpo, ouvia a cobra rastejar ameaçadoramente rápido e nossa direção.

Gritei por Ícaro, ele não me respondia. Ele não falava, estava desacordado, preso a barras de ferro, o rosto ensangüentado, desviei minha atenção do seu rosto sofrido para checar nossa situação,estávamos de cabeça para baixo, a fumaça preta preenchia toda minha visibilidade do mundo lá fora e fazia minha garganta queimar. Chorando eu balançava Ícaro, comecei a implorar que ele acordasse, mas ele estava imóvel, ferido, bem talvez morto como eu presumi que aconteceria mais cedo. Agarrei sua mão que pendia, molenga e esquecida, ele estava tão quieto que não podia ouvir sua respiração, puxei-o mas seu peso unido as ferragens retorcidas faziam do meu trabalho inútil.

Ouvir o sibilar da cobra, esse som foi pra mim foi como um tônus de veneno mortal por todo meu corpo, por algum motivo o ódio me fez acreditar que eu era algum tipo de amazonas mortífera, uma vingadora. Seu arrastar nojento estava ficando mais próximo. Por extinto, larguei a mão de Ícaro, tirei o colar de cetro do meu pescoço. Com um pouco de dificuldade, soltei-me das estruturas de metal que me prendiam, uma delas rasgou um pouco minha pele, reprimi um grito.

Passei o colar pela cabeça de Ícaro, um luz azul brilhante começou a cintilar no pingente.

-cuida dele. Por favor.

A luz passou do azul para um vermelho quente.

Por uma brecha de onde acho ter sido a janela traseira do carro, sai sem muita dificuldade, quase não havia mais vidro ali, pondo meu corpo ereto percebi que meu corpo estava moído, as costelas doíam tanto que pareciam estar sendo perfuradas, meu pescoço estava rígido e muito machucado manquei pela mata, estávamos no bosque com toda certeza, o carro tinha sido parado por um enorme carvalho de corpo imponente , olhei para o mais além e não vi nada que não fosse a suposta natureza do acostamento. O carro tinha sido jogando muito longe.

Das sobras negras da mata a serpente saiu sorrateira, sinuosamente se arrastando no chão em minha direção, o corpo cintilando, ela não tinha pressa, provavelmente ela entendia que eu jamais seria palio para uma criatura mágica de oito metros de altura com veneno letal e corpo esmagador. A imagem de Ícaro feliz e jovem veio em minha cabeça, sempre sorrindo, me protegendo, seu jeito inteligente de falar. O assombro tomou conta de mim.

Peguei um pedaço ainda quente de ferro do chão, havia uma ponta relativamente afiada em sua extremidade, provavelmente ali foi um pedaço do pára-choque que se desprendeu e quebrou durante nosso acidente.

- pode vir sua desgraçada.

Acho que cobras tem senso de humor, posso jurar que o som que ela fez foi de riso, suas múltiplas línguas começaram a se bater, uma dessas línguas chicoteou-me, fazendo-me cair no chão, a dor foi intensa como se eu tivesse esfregado meu rosto em arame farpado.

Senti a serpente abocanhando-me, sua gengiva (cobras tem gengiva? Não é tempo de pensar nisso agora) molhada oprimiu-me antes de eu ser jogada cinco metros mais para longe, cai de costas em um declínio de terra e escorreguei nessa posição até uma enorme depressão terrosa. 

Todo o ar do meu corpo de esvaiu, foi como se o impacto tivesse desassociado meu corpo da alma e eu fosse uma carcaça fria, largada ao chão, sem força ou importância, suscetível ao ataque da inimiga, eu não consegui pensar, não conseguia me lembrar porque estava aqui.

Minha visão foi se fechando, acho que comigo desmaiada vai facilitar a digestão da serpente, tudo fico turvo, até escurecer de vez.

“você precisa ser forte.” Uma voz suave clamava em meu ouvido, a voz doce da rainha Aria pulsava dentro de mim preenchendo meu interior com aromas gostosos da plantas outonais e canela, eu não conseguia abrir os olhos, estava em algum lugar dentro de mim, dentro da minha mente.

“não é fácil como falar” pensei em resposta.

“cadê o seu pingente de poder?” questionou a voz da rainha Aria para mim na escuridão do meu inconsciente, acho que ela estava se referindo ao pingente de cetro.

“eu o coloquei em Ícaro.” Eu estava me esforçando, mas não conseguia despertar do meu delírio.

“tolice” berrou sua voz,agora não tão doce quanto no começo “é isso que o amor faz com as pessoas, eu escolhi você, não ele.”

Amor?

Não tive tempo de responder a isso. Uma luz multicolor como de calidoscópio prendeu todo meu corpo em frenesi em seguida fui praticamente arrancada do meu Comar e acordei.  Deitada, o corpo arranhado. Percebi que não estava deitada onde cai, naquela ribanceira e sim, camuflada atrás de uma moita, coberta desajeitadamente por galhos e folhas secas, levantei bruscamente mas meu corpo respondeu com dor e tontura.

Meus olhos foram capturados pela cena que ocorria na clareira próxima a mim, gritei mas a voz morreu na garganta. Eis a resposta por eu não ter sido devorada pela serpente monstruosa que me perseguia, Ícaro estava de pé, vivo! Imponente como um guerreiro persa, os cabelos jogados para trás, o corpo completamente machucado e banhando de sangue, mesmo assim ele lutava com uma espada grandiosa, envolvida de brilho azul contra a serpente, o réptil não recuava, mesmo sendo fatiada pela lamina fascinante da espada, a cobra investia contra Ícaro, seu corpo se debatia contra o dele, e suas presas tentavam furar sua pele, veneno escorria de sua boca prateada.

Estática, eu reconstitui num décimo de segundo os fatos, Ícaro por algum motivo desconhecido conseguiu não só sobreviver a nosso acidente fatal como também, me salvou da serpente a tempo, me escondeu e agora esta lutando a altura com o inimigo com uma espada gigante que eu nem sei de onde veio.

A inimiga percebeu minha presença, porque desviou sua atenção do oponente e dirigiu seus olhos de esmeralda para mim,  numa velocidade descomunal ela se arrastou com a boca aberta para me abocanhar, com toda certeza Ícaro não era seu objetivo, ele era um alvo irrelevante, a serpente estava procurando por mim.

Um erro fatal da cobra foi desviar-se de Ícaro para tentar me abocanhar, porque quando eu comecei a sentir o hálito de monstro em meu rosto um vulto azul feroz decapitou sua cabeça, fazendo-a rolar inerte pela grama.  Ícaro levantou-se triunfante, com a espada embebida de sangue viscoso e nojento de cobra, sorrindo, olhando para mim como um idiota.

A espada começou a brilhar mais forte e encolher, até tornar-se a forma original: o pingente de cetro. Como se alguém tivesse desligado Ícaro da tomada, ele desabou no chão, os olhos vidrados, o corpo mole.  Caído com o pingente na mão no meio da grama.


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