Libertária escrita por Ana Souza


Capítulo 10
A Fuga de uma Zeladora




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/305701/chapter/10

Meus joelhos ardiam pela fricção do meu jeans com a textura áspera do muro do nosso colégio,  além da minha respiração pesada só os grilos faziam barulho, a escola a noite parece ser de fato muito assustadora.

- pula que eu te pego – eu estava no alto do muro, Ícaro já do outro lado me encorajou a saltar daqueles imensos cinco metros em direção aos seus braços de garoto estendidos como ramos de uma arvore nodosa.

Eu acabei pulando, e incrivelmente ele conseguiu amparar minha queda sem muito impacto. Dei tapinhas na minha roupa para tirar a poeira quando Ícaro meu pôs no chão. São sete da noite, o estacionamento do colégio está sombrio e entenebrecido, só há uma van velha parada na extrema esquerda do vasto local com um adesivo pavoroso de dois pavões de pescoços cruzados e caldas entrelaçadas.

Eu hesitei um pouco quando Ícaro acendeu sua lanterna e me puxou pelo braço para os fundos do nosso colégio.

- a gente não podia deixar isso pra amanhã? – minha voz soou tão medrosa que senti vergonha de mim.

Ícaro riu e fez um leve gesto de conforto passando o polegar no meu ombro.

- e perder toda a emoção? – disse ele feliz – nada disso. Além do mais, durante as reuniões jamais teríamos privacidade e tempo para ler todos os livros que achei. Ou você quer que o resto do pessoal do clube saiba que você ainda por ai caçando bruxas?

Senti minhas bochechas pegar fogo, de irritação pra falar a verdade. Ele falando assim eu me senti mais ridícula do que qualquer coisa.

- vamos andando – disse tomando mais coragem do que sentia.

Chegamos até a posta metálica dos fundos, a porta que dava para a grande ala dos refeitórios e a íngreme escadaria até os confins do colégio onde a biblioteca de nossos debates ficava.

Como era de se esperar a porta estava trancada, o arrependimento começou a se dissolver em minha mente como uma pastilha de efervescente, Ícaro pegou um molho de chaves cor de bronze, assoviando abriu o grosso cadeado preso as correntes na porta tão facilmente quanto se abre um pote de margarina.

Franzi o cenho e ele deu de ombros como se aquilo não fosse grande coisa.

- sempre tenha um amigo zelador, em troca de boas barras de chocolate com amendoim e ingressos para as finais da série B você ganha chaves para as salas mais proibidas pra levar as gatinhas. – a voz de Ícaro morrendo no final da frase. Ele se arrependeu do que disse no mesmo segundo, porque meus olhos estavam fixos nos dele como ferrões de abelhas selvagens.

- você me entendeu não é? – ele completou sem graça, rindo nervosamente em quanto se desfazia das voltas do cadeado – foi só uma piada, eu não quis parecer um idiota sem cérebro.

- essa impressão não passou pela minha cabeça – ironizei, entrando primeiro pela porta com a lanterna na mão.

Ícaro não parecia o tipo que levaria garotas escondido para salas de aula a noite, ele tinha olhos inteligentes, postura de um rapaz maduro e sensato combinados com a beleza da cordialidade, mas quem pode julgar pela aparência afinal?

Passamos correndo pelo refeitório esquisito e subimos as escadas, nenhum sinal de nenhum vigilante noturno até agora, andamos mais calmos pelo corredor até a sala da biblioteca onde a pilha de livros empoeirados nos aguardavam .

Ele abriu a porta, escolhemos a mesa mais limpa e acendemos todas as quatros lanternas que dispúnhamos, Ícaro trouxe da prateleira de “Livros Patrimoniais” pilhas de exemplares grossos com capas rústicas e bem desgastadas.

Ele pousou a mão sobre os livros e sob a tênue luz das lanternas fez a pergunta que fez meu sangue congelar instantaneamente:

- quem esta te perseguindo?

- como?

Ele soltou o ar com impaciência:

- você está com medo Isa. Se quer pesquisar tão afundo sobre bruxas significa que desconfia de algo, eu posso te ajudar mas pra isso preciso sabe toda a historia.

Suspirei, e contei a ele tudo: a chegada de Olivia, meus sonhos estranhos, o ataque do corvo, a modo como eu me sentia ameaçada perto dela e como ela parecia cercada de uma tal atmosfera mágica e desconhecida. Falando em voz alta me senti uma criança, juntando dois mais dois e achando cinco, tentando justificar de todo modo que estava certa mesmo sabendo que é loucura para o resto do mundo.

Ícaro ouviu paciente.

-acredito em você – disse ele meio minuto depois –  eu estudo esse tipo de coisa a muitos anos e digamos que não estou apto a duvidar da sua história. Vamos estudar.

Ele bateu um lápis na superfície da mesa e abrimos os curiosos exemplares de: “ o misterioso mundo Seltico” “ a grande colheita holandesa” e “bruxas: conto ou fato”

Descobri nas páginas desbotadas sobre um clã Frances chamado: Pétreas as “detentoras da beleza” elas buscavam juventude eterna através de sua magia, podiam ser agressivas a medida que ficavam mais velhas, mas também tinham o poder de atrair os mais descuidados.

“ Capitulo XX

Pétreas.

Também conhecidas como Detentoras. capturam humanos jovens e os escravizavam no Mundo Meridional onde sugam as juventudes mortais e fazem seus respectivos donos virarem meros reflexos da luz...”

Minhas mãos começaram a formigar e por algum motivo deixei o livro cair, um vento gélido brotou de algum lugar cheirando a bolor e mofo arrebatou meus pulmões que insuflaram como balões de puro gás fervente.

O baque do livro grosso contra o chão fez as lanternas que estavam na mesa caírem no chão.

- tem alguém lá dentro- ouvimos uma severa voz feminina dizer do corredor, e depois passos com botas de borracha seguirem em direção a biblioteca. Uma segurança, achou nosso esconderijo.

- esconda-se – ordenou Ícaro desligando todas as lanternas e me empurrando para detrás de uma prateleira quase encostada na parede, ele se posicionou ao meu lado, nossas respirações eram estrondos.

Ouvimos alguém abrir a porta, os passos começaram a chegar mais perto e uma luz de lanterna mais forte a percorrer o recinto, percebi no ultimo segundo que a segurança ia nos encontrar, ela pôs a forte luz da lanterna atrás da prateleira revelando a mim e a Ícaro.

- muito bem – disse a segurança que trajava calças sociais, boné e apito no pescoço – vejam o que temos aqui, amor delinqüente.

Amor delinqüente?

-hã... senhora, nós não somos namorados – fiz questão de dizer.

-vou fingir que acredito que um garoto e uma garota numa sala escura e vazia não estejam com más intenções, pois bem – ela começou a sacar um rádio que estava preso ao seu cinto quando sua expressão se suavizou, se não fossem pelas roupas formais de vigilante noturna eu diria que ela era pouco mais velha que eu. – já tive dezesseis anos, saiam daí, vou deixar vocês darem o fora.

O radiozinho da vigilante zumbiu, e uma voz metálica começou a sir dele: – comando responda, vigilante Eddie no corredor seis, como anda o terceiro andar? –

A vigilante nos analisou por meio minuto e foi sua vez de responder a Eddie do corredor seis:

- aqui tudo normal, cambio-desligo. – ela desligou seu radio e não pude deixar de sorri, a segurança simplesmente vai nos liberar sem nenhuma conseqüência, era bom demais pra ser verdade.

A vigilante se apresentou: Brenda, é seu nome, pele alva e profundos olhos azuis discerníveis mesmo sob a fraca luz da lanterna, ordenou apenas que Ícaro pegasse o material que precisasse e desse o fora comigo, em quanto ele juntava desesperadamente pilhas e mais pilhas de livros, Brenda me arrastou cautelosamente até o corredor.

- não direi nada a ninguém – disse ela com candura – isso é coisa de adolescentes, eu entendo perfeitamente.

- eu agradeço mesmo – disse aliviada, tudo que eu menos queria era ser a primeira pagina do jornal da escola amanhã como a “gatinha” invasora de propriedade privada acompanhada de duas coisas: o breu e um cara.

A amável vigilante Brenda do turno da noite ainda fez a gentileza de me dar um doce, dá pra acreditar? Uma balinha azul e redonda que parecia extremamente saborosa.

-são balas importadas, nunca ando sem elas! Você vai adorar. – disse ela, depois afastou-se para beber água em um bebedouro a dois metros dali.

Pus a bala na boca e senti uma coisa incrível, foi como se doce derretido puro começasse a correr pela minha garganta, escorrendo até minha corrente sanguínea , simplesmente o doce mais maravilhoso do mundo inteiro, até minha visão começar a ficar turva...

Pontos brancos começaram e encher meus olhos, pontos róseas... o recinto começou a rodopiar como se eu estivesse em um caldeirão gigante! Percebi segundos depois que eu estava ficando sem ar, e por mais que eu lutasse, a bala agora estava colada a minha garganta, mas a sensação de doçura era tão boa... acho que se eu ficasse aqui apreciando a balinha mais um pouco não iria me matar.

Senti tapas nas minhas costas, tapas fortes.

- cuspa isso! – gritava Ícaro tentando abrir minha boca – cuspa isso agora!

Senti seus dedos se fechando em torno da minha garganta e em tão como se alguém tivesse apertado o botão de ligar do universo tudo voltou ao normal, cuspi a bala longe no tapete, Ícaro iluminou o doce com a lanterna, agora a bala estava totalmente preta saindo uma leve fumaça que derretia o carpete.

- quem te deu isso Isa? – ele perguntou.

Eu ainda estava ofegante, um pouco zonza e confusa, o que acabou de acontecer mesmo?

- Brenda! Brenda me deu isso.

- temos que sair daqui agora – ele disse me puxando para o corredor a fora. – aquilo era uma Travessura.

- Travessura?

-é! São balas enfeitiçadas, veneno medieval usado para fazer as pessoas sufocarem, usados pelas...

Não diga essa palavra, não diga, por favor, não diga o que eu estou pensando.

-...bruxas.

Brenda, a vigilante “legal” do turno da noite apareceu na nossa frente bloqueando nossa passagem para os andares de baixo, agora ela tinha os olhos azuis como chamas de um fogão a gás, as costas curvadas e respirava pesadamente, os cabelos agora estava soltos e caiam até a panturrilha, suas unhas adquiriram tamanhos e pontas afiadas como as de um gavião.

  Meu Deus, elas existem! Elas existem!

E eu estou com medo, agarrada ao braço de Ícaro com se ele fosse algum tipo de herói ou cavaleiro defensor que eu conheço a muitos anos, mas não é nada disso mesmo.

- crianças tolas! – berrou ela com um forte sotaque arranhando – pensam que podem sair por ai aprendendo sobre nós sem dar nada em troca?

- não sabemos do que você esta falando senhorita – blefou Ícaro tentando manter a calma, ele parecia sereno como se não houvesse uma bruxa bem em sua frente pronta para atacá-lo e aniquilá-lo.

- mentirosos, sangues sujos! – ela cuspiu as palavras, atiçando as unhas grossas sobre as palmas – Meredith voxx poisin.

O que ela disse? Não dá tempo de decifrar.

- corre! – gritou Ícaro segurando minha mão e me fazendo correr como o vento pelo longo corredor, mas eu sabia que era um beco sem saída, apenas uma janela de vidro separava-nos da queda de dez metros de altura.

Brenda pareceu voar, correndo furiosa atrás de nos com os cabelos esvoaçando  e as unhas-garra flexionadas.

- preciso que confie em mim. – disse Ícaro em quanto corríamos a toda velocidade em direção a única saída a nossa frente: a janela de vidro resistente, fechada com grilhões.

Brenda roçou suas velozes unhas na manga da minha blusa rasgando-a o que me forçou a correr mais rápido. Eu estava cansando-me, não suportava correr mais rápido.

Ícaro segurou minha mão firmemente, mas eu sabia que saltar com força para tentar quebrar o vidro era tolice, jamais daria certo, e mesmo se conseguíssemos perpassar todas as camadas de vidro e ferro que a janela dispunha uma queda de dez metros e um asfalto duro e rígido nos esperavam no percurso até a liberdade.

Cinco segundos, estávamos chegando perto da janela, meus pés já estavam cansados, e Brenda, a primeira bruxa que vi na vida comprovando a realidade dos meus supostos devaneios estava a meio passo de alcançar a mim e a Ícaro.

- um... dois... três – dei impulso para pular contra a janela quando Ícaro gritou no ultimo segundo – abaixa!

Joguei-me no chão junto com ele de modo que meu nariz roçou na parede, mas Brenda não foi rápida o suficiente, lançou-se contra a janela estilhaçando milhares de partículas de vidro, olho pra cima a tempo de vê-la transformando-se em grãos grosseiros de poeira roxa que flutuaram através do grande buraco de vidro retorcido e vidro quebrado do impacto.

Ponho a mão na boca para não gritar de horror.

- já tinha visto isso antes? – gaguejei para Ícaro que com um puxão me auxiliou a levantar.

- nunca.

Um corvo igual ao que me atacou a algum tempo atrás voou rapidamente de uma arvore lá fora e saiu em disparada pelo céu noturno.

- é um mensageiro – disse Ícaro guiando pela mão para saída, meus olhos estavam fixos na poeira restante no chão que outrora fora Brenda, eu ainda estava digerindo o que ocorreu.  – foi avisar as outras sobre você.

Outras? Hesitei fincando meus pés no corredor, estática como uma escultura de cinco mil anos.

Ícaro segurou meus ombros pra me encarar.

- você não entendeu ainda? – ele tinha uma voz urgente – temos que dar o fora da cidade, Brenda não estava sozinha, ela tem um clã, e logo seja lá quem elas forem vão matar você por saber demais.

Minha boca ressequiu-se eu estava procurando palavras na minha mente mais todas fugiram .

-Meredith. – ofeguei lembrando a bizarra fala da bruxa “ Meredith voxx poisin  – eu já ouvi esse nome antes.

- não dá tempo de pensar nisso agora,vamos embora. – Ícaro me puxou, não sei como saímos tão depressa mas quando dei por mim estávamos de volta ao Siena meio sucateado dele.

Pegamos o contorno de um BR desconhecida, a placa “Volte Sempre” passou por nos como um relâmpago.

- pra onde você eu ta indo? Minha casa é do outro lado. – resmunguei.

- não estamos indo para sua casa. – ele respondeu duro e frio ao volante.

- pare o carro, eu não vou pra canto nenhum sem minha mãe.

Ícaro parou o carro bruscamente na estrada escura, os carros de trás buzinaram e seus donos soltaram torrentes de palavrões.

- se você for pra sua casa vai morrer! Não é sua mãe que elas querem é você!

Afundei meu rosto no painel.

- pode dizer pelo menos onde estamos indo?

- Praia da Roca, 220km daqui, precisamos ver me tio Kevin.

Fiquei completamente confusa.

- o que ele sabe sobre as bruxas? – questionei com veemência.

-mais do que você imagina. – retrucou ele acelerando o carro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Libertária" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.