Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 6
Capítulo 6




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                    O dia amanheceu ensolarado, sem nuvens, com uma brisa fresca que balançava as palmeiras ao longe. Passarinhos rurrulavam e insetos zuniam em meio às flores e frutas daquela estação. Os animais domésticos estavam meio que alvoroçados. As vacas e as galinhas cantavam acordando seus amos e senhores, como se a alertar a atividade de algum gatuno. Os moradores da pequena vilazinha despertaram bem cedo, e foram acudir seus animais. Mas não havia ameaça alguma. Eles em vão tentaram silenciar as aves domésticas e procuraram algum motivo para o barulho dos bovinos. Os chefes de família ficaram preocupados e as donas de casa contaram seus filhos, recolhendo-os para seu regaço. Havia algo de maligno no ar.


                    Ao longe um tropél de cavaleiros levantava grossa poeira. Logo atrás vinha um carro real puxado por cavalos paramentados. Três enormes carroções velados vinham logo atrás. Aquela comitiva dirigiu-se à igreja católica local. Os homens que simbolizavam o poder na vilazinha, apareceram em seus melhores trajes e foram ter com seus ilustres visitantes. Logo mais, um grupo de soldados com as cores papais, saíram às ruas, anunciando aos berros com sons de trombetas e toques de bumbos:


                    "Atenção, atenção, atenção. Proclamação do Reverendo Bispo Dom Hernán Morilo. Todas as pessoas desta vila estão intimadas a comparecerem à missa que será celebrada logo mais, para estabelecimento do Édito de fé pelo Santo Ofício. O não comparecimento a esta cerimônia religiosa, implicará em sanções punitivas."


                    Todos os moradores ficaram apreensivos, e alguns chegaram a chorar antevendo dias de amargura e desespero. Alguns chegaram mesmo a recolher seus objetos de valor e procuraram um meio de escondê-los. Outros pensavam em fugir na calada da noite para local desconhecido. Todos sem exceção, se arrumaram o melhor que puderam e seguiram com todos os seu familiares para a igreja local, que não podia comportar todos os moradores de uma vez só. Portanto a igreja ficou lotada em alguns minutos, restando aos retardatários se aglomerarem na entrada, ou até mesmo permanecerem em suas charretes, ou carros de bois na via pública.

  
                    O inquisidor rezou a missa em latim. O ambiente estava sufocante de calor. As crianças choravam e bradavam em alto som que estavam com fome, ou com sono, ou queriam fazer pipi. As matronas gritavam com elas e às vezes lhes davam safanões, fazendo as crianças chorarem, entoando um couro agourento por toda a igreja. Ouviam-se muitos "Oh!", e ruídos de jovens desmaiando, e seus parentes se alarmando com seu passamento. Algumas foram carregadas para fora, mas ninguém tinha coragem de se afastar do templo religioso, com medo das sanções.


                     Após o término da missa, o inquisidor se dirigiu à massa humana:


                     _ Na presente data desde o nascimento de Nosso Senhor, até a instauração do tribunal da Santa inquisição pelo alto pontífice, corroborado e sob os auspícios de nosso monarca, instauro nesse momento o édito de fé nesta pequena vila, do reino da soberana Ibérica, Espanha. Inquisitio Haereticae Pravitatis Sanctum Officium. Promovendo a condenação e punição de práticas suspeitas de heresia, feitiçaria, bigamia, sodomia, e apostasia. Quem de vocês souber de semelhantes atividades, ou antes, de alguém responsável por uma crise da fé, peste, terremoto, doença, e miséria social, ou alguém que pratique sincretismo religioso, adoração a outros deuses, ou utilização de mancias, devem fazer a denúncia a este representante do santo ofício.

 
                     Houve um grande tumulto entre a assistência. Alguns deram pequenos gemidos, outros tiveram crises de choro convulsivo, muitos gritavam revoltosos, e houve até mesmo que iniciasse acusações infundadas para seus vizinhos na multidão, exclamando: "marrano", "sodomita", "bruxa", "ladrão", "corno", "puta", "pagão", etc. Alguns oficiais da inquisição foram até aqueles mais exaltados e os arrastaram para uma casa ali perto, que assumiu a função de casa de detenção provisória. Seus parentes falavam consigo pelas janelas, e lhes davam comidas e outros objetos.

 
                     Os que ficaram calados, vendo tudo acontecer, julgaram que somente os afoitos seriam encarcerados, e somente se desesperaram quando viram uma das grandes carroças veladas por-se em movimento, e sair pelas ruas da vilazinha, fazendo algumas paradas. Então os soldados inquisitoriais batiam nas portas, após alguma conversa entravam nas casas, e retiravam alguns moradores de lá fazendo-os entrar no carroção. Aqueles que resistiam à detenção eram tratados com brutalidade. Por vezes, inclusive grávidas, velhos e crianças eram detidos. Quando todos os habitantes de uma casa eram levados, sua moradia era lacrada e marcada com o símbolo da inquisição.

                   

                    Catarina estava com a mãe na igreja, naquele dia. ela viu toda a algazarra que se seguiu após o início dos trabalhos da inquisição. Viu vizinhos antes tão pacatos e bonachões acusarem-se uns aos outros. Viu como a histeria e o ódio, antes inexistente, rapidamente tomou conta de todos. Estavam muito apavorados, e não conseguiam raciocinar com clareza. Sabiam apenas que era melhor acusar do que ser acusado, e com isso, talvez, a inquisição os deixassem em paz. Catarina sentia repulsa de tudo aquilo.

 
                     Ela procurou por Miguel com os olhos, mas não o encontrou em canto algum da igreja. Ele não tinha vindo à missa. Ela tinha que avisá-lo do que se sucedia. Pressentia que ninguém naquela vila sairia ileso da inquisição. Tentou se separar de sua mãe, mas esta a agarrou forte.


                     _ Aonde pensa que vai Catarina?


                     _ Tenho que avisar Miguel. Ele e sua gente não vieram à missa. Estão correndo perigo. Eles não sabem que a inquisição foi instaurada na vila.


                     _ Não. Você não vai se afastar de mim menina. Ficaremos juntas.


                     _ Mãe, é o Miguel. O meu melhor amigo e namorado. Eu não posso abandoná-lo à própria sorte. Eu tenho que ir lá.

 
                     Dizendo isso, Catarina soltou-se da mãe com um safanão, e saiu correndo pela multidão. Dona Clariana berrou chamando pela filha, mas não teve opção a não ser segui-la. Catarina ia correndo o mais rápido que podia, segurando a pesada saia, enrolada em uma das mãos, com seus sapatos de madeira aumentando em muito o peso de seus pés. Ia seguindo ininterruptamente pela ruazinha calçada de pedras, quando estacou. O carroção da inquisição havia parado em frente a uma casa velha conhecida dela e de sua mãe. A guarda da inquisição saiu da casa arrastando uma velha senhora, gorda matrona, de rosto emaciado e vestes justas, de quem engordou demais para caber em sua roupa. Era Dona Lauredana.


                     Catarina sentiu uma mão forte agarrar em seu braço. Ao virar-se viu os olhos alucianados de sua mãe que mantinha a mão em figa a sufocar fortemente um grito. Sua mãe estava prestes a desmaiar. Catarina abraçou-se a ela. Ficaram ambas olhando o carroção afastar-se, enquanto um último oficial inquisitorial lacrava a porta da casa, e afixava o selo do santo ofício.


                     _ Mãe, eu sinto muito. Vê agora, porque eu preciso avisar Miguel?


                     Dona Clariana nada disse, apenas balançou a cabeça afirmativamente. Catarina beijou as mãos da mãe e voltou a correr, dessa vez retirou os pesados sapatos e correu só de meias. Dona Clariana sentia-se entorpecida. Gostaria de ter a vitalidade de Catarina, para poder correr sem parar e fugir daquele lugar, mas sua cabeça dava voltas. Sentia que seu porto seguro era sua filha, sem ela por perto era como se perdesse a direção certa. Vagou pelas ruas a esmo.


                    Talvez porque seus pés estavam acostumados a este trajeto, talvez porque inconscientemente procurasse por um conhecido que pudesse ampará-la, Dona Clariana dirigiu-se até a casa de Dom Juan Del Valle. Deparou-se com o triste espetáculo de um velho orgulhoso e inválido, berrando e dizendo impropérios para a guarda da inquisição. Javierito, seu pajem, agarrava os braços dos oficiais para soltarem seu velho amo. Os soldados então passaram a espancar tanto Javierito quanto o idoso. Por fim jogaram os dois no carroção, e se retiraram.

 
                     Dona Clariana assistia a tudo com desespero em sua face, sem fazer nenhum som. Às vezes mordia o nó dos dedos do punho, as vezes amassava a beira da saia, pisava num pé e outro. Arrancava os cabelos da cabeça, enquanto lágrimas amargas escorriam por sua face. Impotente, aterrorizada, indefesa, sem as pessoas que compunham sua família e suas amizades. Alguém a abraçou e colocou sua cabeça no ombro para que pudesse chorar a vontade. Um estranho qualquer que também estava assustado e desolado. Logo as ruas estavam cheias de pessoas que temiam ir para suas próprias casas, com medo de serem presas, por qualquer motivo que fosse.

 


Fim do Capítulo

 


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