Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 13
Capítulo 13




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Catarina piscou. Luz cobria seu corpo. Ela percebeu seu nariz coberto pela claridade. As pálpebras baixaram e ela viu os cílios em uma cor quase branca, por causa da luz. "Como Deus é bondoso e generoso comigo, ao me permitir sentir a claridade da manhã". Catarina pensou. Ela havia perdido a noção do tempo. Mergulhara fundo em sua mente, para poder fugir à dor. "Deus não é culpado pelo que os homens maus fazem, não é por causa dele que eu estou sendo torturada, mas por causa da vontade dos homens. O fim está próximo. Deus terá pena de mim e me permitirá morrer."

Seu corpo estava dormente. Ela já não o sentia, e isso era bom. Ela quase nem se movia, não era preciso. Bastava apenas mover as pálpebras, pensar, sonhar. Deixar a mente vagar para um outro tempo, um outro lugar, quando ela era feliz e cheia de sonhos. Sua vida era abençoada e ela vivia cercada pelas pessoas que amava. Sua mãe, que já estava no paraíso esperando por ela. Miguel, que estava a salvo com sua família, bem longe das garras da inquisição, e todos os seus vizinhos, os velhos e conhecidos, com suas crianças, suas matronas, seus velhos patriarcas, sua vida pacata e simples. Todos já estavam mortos, ou esperando por sua vez de morrer.

Um inseto de asas grandes voou ao seu redor. Ele tinha patas compridas que se prenderam ao braço de Catarina. Ela o encarou e tentou articular palavra.

- Como ... vai ... inseto?

A libélula com seus grandes olhos hexaédricos, a encarou de volta, movendo ligeiramente as patas, enfiando mais ainda em sua pele, os pequenos ganchos de seus membros. Catarina sentiu uma leve cócega. Ela não se enojou de ter um inseto pousado em si. Isso a fez se sentir viva. Ela virou o rosto dormente na direção do inseto e moveu os lábios em um muxoxo, tentando soprá-lo. Não é que ela quisesse se ver livre dele, ela apenas queria vê-lo se mexer. O inseto recebeu o bafo quente indiferente. Ele apenas se mexeu quando a porta da cela de Catarina se abriu.

A libélula voou longe. Até mesmo os insetos fugiam apavorados, com medo dos carrascos da inquisição. Três homens adentraram a cela de Catarina. Um deles usava batina negra com jóias de ouro. Os outros vestiam uma mistura de farda da guarda inquisitorial, com adereços de couro de animais. Catarina não tinha medo deles. Ela apenas queria que seu sofrimento acabasse logo. Um dos homens desprendeu uma corrente de ferro que estava segura em um anteparo da parede. Ele usou de toda sua força, para não deixar o contrapeso da outra extremidade da corrente, vir direto ao chão.

Catarina era esse contrapeso. Estava dependurada pelos pulsos, bem alto, no centro da cela. Seu corpo nu, acorrentado nas pernas e braços, fazia dias, veio descendo devagar, até que ela se arriasse ao chão, como um molambo. Ela não se mexeu. Ficou com os olhos semicerrados, esperando por mais vilipêndio daqueles homens.

- Isso é até ... um desperdício. Por que não podemos nos servir dela? Vai queimar mesmo. Ninguém vai reclamar. - Um dos carrascos, que era o mais magro e alto, reclamou em voz humilde, como se a pedir um favor de seu superior.

- Ela é uma bruxa. Tem parte com satanás. Aquele que encostar um dedo nela, também merecerá as chamas do inferno. Se acaso estás disposto a virar cinzas, vá em frente. Terei prazer em mandar mais um herege para a fogueira do auto de fé. - Respondeu Dom Villagrán.

- Não, não! - Bradaram ao mesmo tempo, os dois carrascos.

- Podemos então alimentá-la e lhe dar água? Do jeito que está, ela morre antes do auto de fé. - Um dos carrascos, aquele que já era careca e tinha uma barriga proeminente, falou preocupado.

- Tudo bem, mas não a alimenteis demais, ou ela fará uma sujeira maior ainda. - Respondeu Dom Villagrán.

- Reverendo, as correntes ... podemos retirá-las para que ela possa se alimentar?

Dom Villagrán olhou indignado para aquele carrasco que definitivamente demonstrava sinais de fraqueza moral, no seu modo de ver. Ele olhou Catarina com nojo, embora avaliando suas coxas desnudas e cheias de marcas arroxeadas e marrons. Considerou que poderia se contaminar com os pecados dela.

- Ela é uma bruxa! Não merece tua piedade. Deves tomar cuidado com ela, ou te enfeitiça. - Dom Villagrán disse isso e se retirou da cela de Catarina.

Os carrascos retiraram as correntes de Catarina e lhe deram de beber com uma concha. O tempo não estava frio, mas eles acharam que ela poderia estar envergonhada por permanecer nua na frente dos outros, então a cobriram com uma manta. Ela permaneceu jogada no chão frio e imundo, com a manta cobrindo seu corpo marcado por agressões.

Um dos carrascos se acocorou ao lado dela e descobriu a ponta da manta, para tocar em suas pernas, fazendo uma carícia. O outro o segurou pela nuca e o puxou para cima com força.

- Que é isso homem? Eu só queria tirar uma casquinha, ninguém precisa saber. - Falou o carrasco magro.

- Deus sabe. E pra mim isso é o suficiente. Venha, vamos sair daqui. E eu ficarei com a chave da cela.

- Não me diga que essa bruxa te enfeitiçou. Tu pareces apaixonado por ela.

- Não estou apaixonado por ninguém, apenas não vou contrariar as ordens do meu superior. E já chega dessa conversa. - Falou o carrasco careca.

Os dois carrascos se retiraram e deixaram Catarina mergulhada em um sono profundo, sem sonhos.

Longe dali, um cavaleiro vindo de terras longínquas, aproximou-se das terras que uma vez pertenceram aos seus pais. Ele se deparou com uma cena de desolação. Tudo estava queimado. A casa grande onde toda sua família morara, o celeiro, o galpão, a oficina de seu pai... Tudo estava reduzido a escombros fuliginosos, fumaça e cinzas. Ele entendia porquê a inquisição desapropriava bens e propriedades, pois afinal, a igreja tinha que auferir lucro de alguma coisa, para poder se manter no poder, mas queimar? Isso era estúpido e cruel. Nem os idiotas queimavam aquilo que pudesse lhe ser útil. Ele desmontou do cavalo, andou por aqui e ali, até cair de joelhos, diante de tamanha destruição. Lágrimas escorreram pelo seu rosto, em um choro silencioso. Ele apenas mordia os lábios e tentava se consolar, lembrando que sua família estava sã e salva em outro país, distante de toda aquela agonia e sofrimento.

Um ruído ali perto, chamou sua atenção. Um vulto por trás dos caibros queimados fez com que o cavaleiro se levantasse e voltasse até seu cavalo, montando-o rapidamente.

- Por favor... - uma voz ecoou.

O cavaleiro parou e permaneceu em sua montaria, esperando que o vulto saísse do seu esconderijo e se aproximasse. Um ser coberto em trapos, com um lenço amarrado ao rosto, outros nas mãos, veio devagar, como se não tivesse forças para andar apropriadamente.

- Quem és tu? - O cavaleiro perguntou.

- Sou Javierito, ex-pajem do finado Dom Juan Del Valle, e ... amigo de Catarina de Navarro. - O andrajoso respondeu.

- Onde está Catarina? Tu a viste?

- Sim, ela foi levada pelos guardas da inquisição ... tentando me salvar a vida.

- Não... - O cavaleiro desmontou do cavalo transtornado. Aproximou-se cambaleante de Javierito e apoiou-se em seus ombros, quase fazendo o rapazinho cair de joelhos. - Conta-me tudo.

- Estávamos eu e ela escondidos aqui... Quando os soldados da inquisição vieram. Nós nos escondemos no celeiro. Eles nos viram e ameaçaram botar fogo se não nos entregássemos. Catarina se entregou para que eles não queimassem ... porquê eu estava em pânico e não conseguia reagir. Eles levaram Catarina e incendiaram mesmo assim.

- Minha Catarina... - Tomado em desespero, o cavaleiro deu um soco no rosto de Javierito, fazendo com que o rapazinho fosse arremessado longe. O cavaleiro aproximou-se do jovem, disposto a descarregar sua fúria e frustração na pobre criatura, quando ele então viu o rosto do rapaz sem os trapos que o cobriam. - Mas... O que é isso?

Javierito que estava caído de costas, sentou-se no chão e retirou os restos dos trapos do rosto e das mãos, expondo as carnes vermelhas e deformadas, de onde ainda minava sangue.

- Eu não fui muito rápido para sair do celeiro em chamas.

O cavaleiro caiu de joelhos ao chão, mais uma vez. Colocou as mãos no rosto tentando controlar a enxurrada de emoções que sentia.

- Sinto muito. Meu nome é Miguel. Sou marido de Catarina. Vim aqui para resgatá-la.

Em um outro lugar, um clérigo estava agitado. Ele abria pergaminhos e documentos empilhados. Tentava encontrar uma lei que o favorecesse, qualquer coisa que o permitisse ficar com Catarina de Navarro, antes que ela fosse queimada no auto-de-fé. O Rei da Espanha ou talvez até mesmo o Papa poderiam ajudá-lo. Ele vasculhou e procurou. Leu e releu, mas nada se lhe apresentava. Nada poderia ser feito para livrar Catarina da morte. Se ao menos Dom Villagrán não ficasse o tempo todo vigiando as masmorras... “Isso!”

Dom Emanuel ficou tão excitado por haver descoberto uma forma de libertar Catarina, que ele não cabia em si, temendo até mesmo se descontrolar. Pegou sua sineta de ouro e a tocou impaciente. Uma, duas vezes, e ninguém o atendeu. Ele então arremessou o objeto na parede, fazendo um buraco no reboco. Nada. Ele apanhou a peça de ouro e se dirigiu à porta de madeira maciça, a escancarando. Pegou a sineta e bateu com fúria na porta, enquanto gritava.

- Dom Bolaños, onde estás que não me escuta?

Um outro clérigo veio correndo só em ceroulas, com a batina na mão, que ele se apressou a vestir, antes de chegar próximo a Dom Emanuel.

- Desculpe-me, reverendo. O que desejas?

Dom Emanuel esbofeteou o outro sacerdote com força desnecessária.

- Ou te comportas com zelo e compostura, ou te denuncio à inquisição. Entra aqui, já.

Dom Bolaños o seguiu, com o rosto queimando em fúria contida. Ele terminou de abotoar sua batina enquanto observava Dom Emanuel.

- Pois sim, reverendo, o que devo fazer?

- Encontrei uma forma de livrar Catarina da morte. Preciso apenas afastar Dom Villagrán de perto dela. Para isso preciso de tua ajuda.

- Que tens em mente? Quer que invente uma mentira para Dom Villagrán?

- Quero que o distraias, que o enrede com alguém... Qualquer coisa. O que achas que ele gosta?

- Dom Villagrán? De nada. Ele não gosta de mulheres, nem de rapazes. Não cobiça ouro ou bens. Talvez ele apenas queira prestígio político, e isso é algo que não posso lhe conseguir.

- Talvez... talvez então... uma forma de fazê-lo... ausentar-se... permanentemente.

- O senhor diz... matá-lo? Quer tanto essa mulher que seria capaz de matar o inquisidor geral? Isso é o suficiente para levá-lo direto para a fogueira.

- Não serão minhas mãos imbecil. És tu quem irá fazê-lo.

Dom Bolaños olhou Dom Emanuel como se este fosse um louco a quem devemos tratar como a uma criança, concordando com tudo e lhe entregando os brinquedos que deseja.

- Pois sim, Dom Emanuel. Assim será feito.

Dom Bolaños se retirou deixando Dom Emanuel aturdido e agitado. Pouco a pouco o real significado de suas palavras foram pesando em sua consciência. Ele temeu por si mesmo e por sua posição na igreja católica. Se ele fosse descoberto, poderia arder em praça pública ao lado de Catarina.

- Oh meu Deus! O que eu estou fazendo? - Ele se atirou pra fora do seu escritório correndo, atrás de Dom Bolaños.

Ele pôde observar ao longe, quando seu secretário particular entrou no escritório de Dom Villagrán e fechou a porta. Dom Emanuel correu até lá e esmurrou a porta, por pouco não chamando a atenção dos soldados da inquisição que estavam de prontidão no corredor, mas estes acharam que fosse querela entre padres, e que era melhor não se envolverem nisso por enquanto.

A porta se abriu e Dom Emanuel entrou, encarando Dom Bolaños e Dom Villagrán como um dementado.

- O que desejas Dom Emanuel? Primeiro mandas teu secretário me importunar. Agora és tu mesmo quem vem choramingar pela vida de tua prostituta. Por que não te juntas a ela na masmorra? Garanto-lhe que há correntes o suficiente para ambos. - Dom Villagrán falou irritado. Então o olhar de Dom Bolaños lhe chamou a atenção, como se o outro quisesse lhe comunicar algo com os olhos. - E tu, Dom Bolaños, o que tens?

Antes que Dom Villagrán se desse conta, Dom Emanuel arremeteu contra ele, levando os dois ao chão. As mãos de Dom Emanuel alcançaram o pescoço de Dom Villagrán e não queriam mais largar, apertando cada vez mais. O inquisidor geral já esta arroxeado e com a língua para fora, tentando respirar sem conseguir, quando sucumbiu. Dom Bolaños ao ver o estado de Dom Villagrán ficou assustado. Olhou para Dom Emanuel como se o estivesse vendo pela primeira vez.

- O senhor o matou!

Dom Emanuel olhou assustado para suas mãos e para o corpo de Dom Villagrán.

- Eu perdi a cabeça... Meu Deus! Eu enlouqueci por Catarina... Ela me enfeitiçou!

- O que fará agora, Senhor?

- Eu não sei... Catarina! Eu vou pegá-la!


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