Catarina de Navarro escrita por slytherina, jessica varela


Capítulo 1
Capítulo 1




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_Catarina! Onde você está menina? - A gorda matrona chamava pela menina tão lépida quanto frágil.

Sua filha parecia ter a energia de beija-flores. Nunca parava num só lugar, sempre correndo e saltitando aqui e ali, longe de suas vistas e enchendo-a de preocupações. Catarina estava uns dois kilometros distante de casa, agachada atrás de um arbusto, observando uma gata que dera cria. Deleitava-se em observar os gatinhos tão pequeninos, de olhos fechados, mamando em sua mãe.

Eles davam pequenos miados e mal se agüentavam em pé, caindo uns sobre os outros. A gata placidamente observava seus filhotes, recolhendo um ou outro com a boca, quando se afastavam na direção errada. Ela já observara a pequena menina escondida atrás dos arbustos, com olhos brilhantes admirando os gatinhos. Ela pressentira que aquela cria de humanos não lhe causaria mal algum. Por certo farejava a bondade no coração dos homens.

O sol tinha contornos róseos no céu, e seus raios davam uma tonalidade laranjada a tudo. Os loiros cabelos da menina adquiriram aquela tonalidade também. Ela usava uma touca de algodão, com sesmarias nas bordas. Seus cabelos cacheados e elétricos eram cheios de pontas, que escapavam de sua touca amarrada frouxamente em seu pescoço. Seu vestido era feito de linho, áspero e resistente. Usava uma ceroula de corpo inteiro por baixo, e um grande avental por cima de seu vestido de linho.

Todas as roupas de sua família eram tecidas, tingidas e costuradas por sua mãe. Os olhos de Catarina eram de uma cor castanha clarinha, que adquiria uma tonalidade esverdeada quando ela chorava, e ficava amarelo dourado quando ela estava ao sol, como agora. Eram olhos de fada, segundo sua mãe. Catarina sentiu vontade de pegar um dos gatinhos no colo. Aproximou-se lentamente da gata amamentando seus filhotes. Ficou de joelhos sujando as pernas de sua ceroula, e esticou o bracinho para pegar um dos gatinhos.

A gata fez um miau tão demorado, que Catarina ficou receosa. Poderia ter quase certeza que entendera o que a gata quis lhe falar. "Não mexa nos meus bebês". Já ouvira isso uma vez, de uma das comadres de sua mãe, quando esta foi visitá-la e a levou consigo. Não, ela não mexeria nos filhinhos daquelas senhoras, nem nos filhinhos desta outra "senhora" aqui. Sorriu deliciada com a cena dos filhotinhos subindo um na cabeça do outro, para ver se conseguia um lugarzinho para si. A mãe gata comprimiu os olhos e virou a cabeça sossegadamente.

Alguns anos depois desse dia, Catarina estava brincando no bosque perto de sua casa. Estava no centro da roda enquanto as outras meninas de mãos dadas giravam e cantavam uma cantiga infantil:

"A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil.
A linda rosa juvenil, juvenil.

Vivia alegre em seu lar, em seu lar, em seu lar.
Vivia alegre em seu lar, em seu lar.

Um dia veio uma bruxa má, muito má, muito má.
Um dia veio uma bruxa má, muito má.

Que adormeceu a Rosa assim, bem assim, bem assim.
Que adormeceu a Rosa assim, bem assim."

Outra menina de posse de um graveto, fazia um trejeito como se lançasse um feitiço, e Catarina graciosamente caiu desfalecida no chão.

"E o tempo passou a correr, a correr, a correr.
E o tempo passou a correr, a correr.

E o mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor.
E o mato cresceu ao redor, ao redor.

E um dia veio um belo rei, belo rei, belo rei.
E um dia veio um belo rei, belo rei."

Um menino entrou na roda, debruçou-se sobre Catarina e beijou-lhe a mão galantemente. Catarina, então "despertou" e agradeceu seu "rei" com um beijo estalado na bochecha, enquanto suas amigas continuavam cantando.

"Que despertou a rosa assim, bem assim, bem assim.
Que despertou a rosa assim, bem assim.

Batemos palmas para o rei, para o rei, para o rei.
Batemos palmas para o rei, para o rei."

O menino chamava-se Miguel. Era mais baixo que Catarina, e primeiro namoradinho. Ele era rechonchudo, de bochechas rosadas, cabelos lisos e castanhos, um pouco espetados no alto da cabeça. Seus olhos eram pequenos e rasgados, de um castanho intenso que se confundia com suas pupilas. Ele vivia o tempo todo sorrindo, mesmo quando estava triste, cansado ou com raiva. Antes de ser namorado era o melhor amigo de Catarina. Seus pais suspeitavam do namoro, mas como eram crianças, achavam que nada de mal poderia acontecer.

Catarina e Miguel andaram de mãos dadas até a beira de um lago que ficava nas redondezas. Ele usava calças de algodão grosseiro e camisa de mangas bufantes, sem botões, amarrada com cadarços no peito. Ele e Catarina agora usavam botas de couro e meias de tecido. Foi-se o tempo em que andavam descalços o tempo todo. Seus pais diziam que estavam crescendo e que agora tinham que vestir-se como gente.

Os dois sentaram-se lado a lado. Conversaram sobre sapos, romãs e sobre um gavião que matara carneirinhos. Vez por outra paravam de conversar para beijarem-se no rosto ou nas mãos. Não sabiam o que podiam fazer além disso. Sentiam-se comprometidos um com o outro, e decerto se casariam quando fossem mais velhos.

No ano seguinte uma tragédia aconteceu. O pai de Catarina contraiu varíola. Não havia tratamento para aquela doença. As pessoas sabiam apenas que quem morava perto do doente, também pegava a doença e morria. Seu pai ficou confinado no quarto até sua morte. Somente sua mãe tomava conta dele. Catarina pedia para ficar com eles, mas foi proibida. Após a morte de seu pai, esperavam que sua mãe o seguisse também no leito de morte, mas ela sobreviveu miraculosamente. Os vizinhos insistiram que sua mãe fosse até a igreja, agradecer a graça alcançada, mas o padre recusou o contato com uma mulher que se expôs à varíola.

_Mãe, por que não podemos ir à igreja agradecer a graça de Deus?

_Cuidado filha, não pode dizer o santo nome em vão.

_Desculpe.

_Não podemos ir porque o padre tem medo de doença.

_Mas ele não sabe que o... Pai do céu salvou a sua vida?

_Sabe, mas ele prefere não se arriscar.

_A fé dele é tão pouca assim?

_Eu não sei filha, mas eu sei uma coisa: Padres são homens muito poderosos. Não podemos questionar nada do que fazem, pois eles podem querer nos castigar.

_O que é questionar?

_É perguntar coisas sobre o que os padres fazem. Entendeu minha pequena fada?

Esta foi a primeira vez que Catarina foi avisada para não se meter com os padres. A segunda vez foi por ocasião do batismo de Miguel. Catarina fora batizada em tenra idade. Ela nem se lembrava do acontecido, mas Miguel ainda não havia sido batizado. Seus pais alegaram que o motivo foi a falta de dinheiro para pagar pelos serviços do padre, mas comentava-se à boca pequena, que o real motivo era a religião ancestral dos pais de Miguel. Eles eram descendentes de judeus sefarditas.

Miguel fora vestido em roupas de seda escura, com sapatos de camurça. Fora banhado pela mãe que fizera questão de esfregar-lhe as costas com palha e banhá-lo com pétalas de flores, para que passasse uma boa impressão ao padre. Seus parentes seguravam velas e um rico comerciante da cidade fora escolhido para padrinho. Este por assim dizer estava mais pomposo do que o próprio sacerdote. A cerimônia do batismo foi realizada na igreja matriz da cidade. Estava toda decorada e cuidadosamente limpa para aquela cerimônia. Tudo obra da família de Miguel que fazia de tudo para agradar aos religiosos.

Após a cerimônia, Catarina fora falar com Miguel. Ela estava muito bonita e graciosa, em um vestido acinturado, de cetim azul celeste, de mangas compridas e botões forrados na parte da frente, sobre várias saias de algodão, para dar volume à saia. Ela e Miguel deram as mãos e já iam beijar um a bochecha do outro, quando o padre intrometeu-se.

_Vocês não devem fazer isso. É pecado.

_Por que é pecado? - Na sua inocência, Catarina não sabia ao que o padre se referia.

_Não se deve pecar contra a castidade mocinha. Você só deve tocar um homem quando casar-se com ele. - O padre bateu na mão de Catarina que estava segurando a mão de Miguel.

_É pecado também bater nos outros. - Catarina exclamara imediatamente sem pensar.

Toda a igreja ficou muda e paralisada. Miguel apenas olhava o chão, triste e temeroso.

_Como se atreve a me criticar sua insolente? - O padre parecia muito ofendido.

_Mil perdões reverendo. Eu darei uma surra nessa menina assim que chegarmos em casa. Eu pagarei penitência por ela. Perdoe-nos por favor. - A mãe de Catarina apressou-se a agarrar a filha e sair arrastando-a para fora da igreja, enquanto se desculpava com o padre.

Ao chegarem em casa. A mãe de Catarina olhou-a transtornada. Parecia enlouquecida.
Então deu uma bofetada no rosto de sua filha.

_O que eu fiz, mamãe?

_Minha filha, não se meta com padres, eles podem mandar te prender, podem tirar tudo que temos, podem até mandar nos matar. Não faça mais isso, filha minha. - Sua mãe começou a chorar e a abraçou.

Se não fosse pela bofetada e pelo desespero de sua mãe, Catarina iria redargüir. Aquilo era um absurdo. Padres mandando matar pessoas?

No seu aniversário de 15 anos, Catarina foi homenageada com uma linda festa na qual compareceram todos os vizinhos e amigos de infância. Sua mãe mandou matar um boi e três carneiros. Foram servidos pães temperados e vinho à vontade. À noite um violeiro foi contratado para entreter os convivas, e senhoras das cercanias improvisaram uma dança típica com castanholas. Tudo isso ao ar livre, sob a luz de fogueiras e do brilho da lua cheia. O tempo estava ameno e o odor de oliveiras impregnava o ambiente. Catarina divertiu-se muito.

Infelizmente Miguel não pudera comparecer. Um tio distante estava adoentado, e pedira que a família enviasse seu sobrinho rapagão, para ajudá-lo em seu trabalho. Na hora da partida despediram-se chorando, abraçados como amigos inseparáveis que eram. Atualmente só se beijavam às escondidas, com medo de "padres".

Catarina crescia sob o olhar carinhoso e severo de sua mãe. Era uma linda mocinha loira, magra e esbelta. Era naturalmente graciosa e curiosa. Aprendia rápido e gostava de ser solícita. Tinha um bom coração e vivia o tempo todo sorrindo, hábito que adquirira com Miguel, seu eterno namorado. Sua mãe ensinara-lhe as lides domésticas que todas as mocinhas devem saber tais como bordar, fiar, tecer, pintar, costurar, cozinhar, curtir couro, produzir sabão, confeccionar objetos a partir de materiais naturais, como ossos, pedras, madeira. Cultivar hortaliças e frutas, criar animais domésticos para consumo próprio, tocar viola e cantar.

Era uma moça muito prendada. Só tinha uma coisa que ela não gostava de fazer: ir à igreja. Mas ela aprendera que aquele era um mal necessário. Enquanto lia na bíblia que Jesus era amor, aprendia que na realidade os padres eram terríveis, tendo o poder de vida ou morte sobre as pessoas. Ela precisava ir à igreja para não ser vista como inimiga.

A pequena Navarro era muito amada e elogiada na sua comunidade. Ela gostava de visitar os vizinhos, dando preferência para os necessitados e velhinhos, aos quais fazia pequenos favores como limpar suas casas, preparar-lhes o almoço, cuidar de seus animais e tratá-los quando estavam doentes. Não havia médicos por aquelas bandas. Mesmo se houvessem, somente nobres ou religiosos poderiam pagar por seus serviços. Então aquelas pessoas apelavam para os conhecimentos ancestrais, que eram passados de pai para filho, sobre o tratamento de doenças.

Ninguém sabia de onde vinha aquele conhecimento, sabiam apenas que funcionava. Por isso freqüentemente Catarina via-se catando calangos nos descampados, apanhando folhas de mandrágora, colecionando teias de aranhas, e arrancando fígados de bacalhaus, para fazer seus remédios. Todos faziam isso e todos toleravam isso.

Todos viviam felizes e em paz. Somente vê maldade nos outros quem a guarda no coração.



Fim do Capítulo

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