Os Esquecidos escrita por Bruna36


Capítulo 2
A Viagem


Notas iniciais do capítulo

Obrigada pelos reviews *-*



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Peguei Prim e a sentei no colo, comprimindo-lhe o corpo miúdo e quente
contra o meu. Alisei para trás os úmidos cachos dourados que lhe caíam na testa arredondada. Olhei para Liam, recostado em Gale.

- Os gêmeos estão cansados, mamãe. Precisam jantar.

- Haverá tempo bastante para isso, mais tarde - replicou ela, irritada e impaciente. - Temos planos a fazer, roupas a arrumar, pois precisamos pegar o trem esta noite. Os gêmeos podem comer enquanto arrumamos a bagagem. Tudo que vocês quatro usam deve ser enfiado em apenas duas malas. Quero que levem apenas suas roupas prediletas e os brinquedos pequenos que não desejam deixar para trás.

Oh, meu Deus! Era verdade! Tínhamos que partir, abandonando tudo! Eu precisava enfiar tudo em apenas duas malas, que seriam compartilhadas também por meus irmãos.

Assim, permanecemos chocados, fitando mamãe. Ela se mostrou terrivelmente nervosa, pois ergueu-se de um pulo e começou a andar de um lado para outro.

- Como eu disse antes, meus pais são extremamente ricos - declarou, lançando para mim e para Gale um olhar de esguelha, antes de virar-se depressa para ocultar novamente o rosto.

- Há algo errado, mamãe? - quis saber Gale.

Espantei-me de que ele pudesse fazer essa pergunta, quando era óbvio que tudo estava errado.

Mamãe continuou a andar de um lado para outro, mesmo em seu
sofrimento, era linda - com rosto abatido, olhos fundos e tudo mais.

- Queridos - disse ela. - O que poderia haver de errado em morarmos numa
ótima casa como a de meus pai? Nasci lá; lá cresci e fui criada, é uma casa grande, bonita, à qual estão sempre acrescentando novos quartos, embora só Deus saiba quantos ela já possui.

Sorriu, mas havia algo falso em sua expressão.

- Contudo, preciso dizer-lhes uma coisinha antes de apresentá-los ao meu pai, que é seu avô.

Mais uma vez, vacilou e exibiu aquele sorriso estranho e sombrio.

- Há alguns anos, quando eu tinha dezoito anos de idade, fiz algo muito grave, que seu avô reprovou; minha mãe também não aprovou, mas como se recusou a ficar contra mim, de qualquer maneira, isso não conta. Todavia, por causa do que fiz, seu avô mandou retirar meu nome de sua herança e, portanto, estou deserdada. Seu pai sempre viu as coisas pelo lado bom e disse que não fazia diferença.

O que significaria isso? Não consegui imaginar minha mãe cometendo um erro tão grave a ponto de fazer seu pai voltar-se contra ela e tomar o que lhe pertencia por direito.

-Nenhuma parte da fortuna de seu avô virá para mim quando ele morrer; ou para vocês, através de mim.  Mas, tenho esperança de reconquistar a aprovação de meu pai. Pois sou a herdeira mas próxima, tive um irmão que morreu em um acidente, e o próximo na linha de sucessão é o filho desse meu irmão

Cessou de caminhar nervosamente. Ergueu a mão para cobrir os lábios; sacudiu a cabeça e, em seguida, continuou naquele novo tom, semelhante a um papagaio:
- Acho melhor contar-lhes uma outra coisa. Seu verdadeiro sobrenome não é Everdeen; é Foxworth. e Foxworth é uma família muito importante.

- Mamãe! - exclamei, chocada. – Isso não é contra a lei?

A voz de minha mãe se tornou impaciente:

- Pelo amor de Deus, Kat é possível mudar-se legalmente de nome. E o nome Everdeen foi mais ou menos escolhido por nós. Seu pai o tomou emprestado de algum ponto de sua árvore genealógica. que atingiu plenamente o objetivo.

- Que objetivo? - indaguei. - Por que motivo papai mudaria o nome?

- Estou cansada, Kat - replicou mamãe, deixando-se cair na poltrona mais próxima. - Tenho tantas coisas a fazer, tantos detalhes legais a tratar. Em breve vocês saberão tudo. Explicarei. Juro ser totalmente franca. Agora, por favor, permitam-me recobrar o fôlego.

Os gêmeos, encolhidos em nossos colos, já estavam meio adormecidos e, de todo modo, ainda eram pequenos demais para entenderem. Até mesmo eu, agora com quatorze anos e já quase uma mulher, não compreendia por que motivo mamãe não parecia realmente feliz por voltar à casa dos pais, os quais ela não via há dezoito anos. Pais secretos, que julgávamos mortos - até depois dos funerais de papai. Só naquele dia ouvíramos falar de um tio que havia morrido em um acidente.

- Mamãe - disse Gale devagar. - Sua linda e enorme mansão parece ótima, mas gostamos daqui. Nossos amigos moram aqui; todos nos conhecem, todos gostam de nós e eu não quero me mudar daqui. Não pode procurar o advogado de papai e lhe pedir para encontrar uma maneira de continuarmos morando aqui, com a nossa casa e os nossos móveis?

- Sim, por favor, mamãe, deixe-nos ficar - acrescentei.

Mamãe levantou-se rapidamente da poltrona e recomeçou a andar através da sala.

- Agora, ouçam-me bem - ordenou, sentando ao nosso lado e tomando a mão de meu irmão e a minha - Eu tenho pensado muito a fim de encontrar uma maneira de conseguirmos permanecer aqui, mas não existe meio. porque não temos dinheiro para pagar as contas mensais e não possuo qualificações para ganhar um salário adequado a sustentar quatro filhos e eu. Olhem bem para mim - disse, abrindo os braços, parecendo vulnerável, linda, indefesa. - Sabem o que sou? Um enfeite inútil e bonito, que sempre acreditou que teria a seu lado um homem para cuidar de mim. Não sei fazer nada. Sei bordar muito bem, mas isso não serve para ganhar dinheiro. E é impossível viver sem dinheiro. Não é o amor que faz o mundo girar; é o dinheiro. E meu pai nem sabe o que fazer com todo o dinheiro que possui. Houve um tempo em que dava mais importância a mim que ao seu filho homem, de modo que não seria difícil recuperar o seu afeto. Então, ele mandará o advogado incluir-me outra vez no testamento e eu herdarei tudo! Ele tem sessenta e seis anos de idade e está morrendo de um problema cardíaco. Pelo que minha mãe escreveu seu avô não poderá sobreviver mais que dois ou três meses. Isso me proporcionará bastante tempo para agradá-lo e fazê-lo voltar a me amar. E, quando ele morrer, toda a sua fortuna será minha! Minha! Nossa! Ficaremos livres para sempre de todas as preocupações financeiras. Livres para viajarmos, para comprarmos o que quisermos, qualquer coisa que desejarmos! Não estou falando apenas de um milhão ou dois, mas de muitos, muitos milhões, talvez até mesmo bilhões! Prometo-lhes que em breve serei dona de uma fortuna inacreditável e que eu realizarei todos os seus sonhos.

Fiquei boquiaberta, perplexa com a paixão de nossa mãe. Íamos morar numa casa enorme e rica como um palácio. depois que ficássemos podres de ricos, nossa vida iria se resumir em viagens e festas intermináveis. Era assim que viviam os ricos: felizes para sempre, contando dinheiro e fazendo planos para divertimentos.
...
No dia seguinte, enquanto mamãe arrumava suas coisas, Gale e eu enfiamos nossas roupas em duas malas, no início da tarde, um táxi levou-nos a estação ferroviária. Havíamos saído de casa, sem nos despedimos de um só amigo.

O trem avançava por uma noite escura e estrelada, dirigindo-se a uma distante propriedade rural, na maior parte da viagem eu e meu irmão conversávamos sobre a enorme mansão onde viveríamos.

Enquanto meu irmão e eu especulávamos sobre a maneira de gastarmos o dinheiro quando o recebêssemos, o condutor entrou em nosso compartimento, olhou da cabeça aos pés de mamãe e disse num tom suave:
- Sra. Patterson, dentro de quinze minutos chegaremos à sua parada.

Ora, por que a chamava de "Sra. Patterson"? Fiquei intrigada. Lancei um rápido olhar a Gale, que também parecia perplexo.

Mamãe arregalou os olhos. Olhou do condutor, que permanecia perto dela, para, Gale e eu; depois, com ar de desespero, fitou os gêmeos adormecidos. Logo começou a chorar, remexeu na bolsa e pegou lenços de papel, enxugando delicadamente os olhos.

- Sim, muito obrigada - disse ela ao condutor, que a observava com desejo

Chegamos à parada no fim do mundo e desembarcamos do trem. Ninguém à nossa espera. Estava totalmente escuro quando descemos do trem e não existia uma só casa à vista.

-Precisamos apressar-nos. É um longo caminho a pé até minha casa antes do amanhecer, que é a hora dos criados acordarem. Que estranho...

- Por quê? - indaguei. - E por que o condutor a chamou de Sra. Patterson?

- Kat, não tenho tempo para lhe explicar tudo agora. Temos que andar depressa.

-Quero uma oportunidade para falar primeiro com meu pai, antes que ele tenha conhecimento dos meus filhos. E não ficaria bem se eu chegasse em casa de madrugada, após passar dezoito anos longe de lá, não é mesmo?- falou mamãe enquanto andávamos

Seguimos caminho, andando à retaguarda de mamãe, percorrendo um terreno irregular, acompanhando leves trilhas entre rochas

Chegamos, afinal, a um grupo de casas grandes e muito bonitas, aninhadas aproximando-nos da maior e mais grandiosa dentre as mansões da montanha. Mamãe, num sussurro, explicou que o nome da propriedade era Foxworth Hall e a mansão devia ter mais de dois séculos.

Quando chegamos à porta dos fundos, uma senhora idosa deixou-nos entrar. Devia estar à nossa espera, ou vira-nos chegar, pois abriu a porta tão prontamente que nem tivemos necessidade de bater. A velha nos guiou por muitos corredores até que, afinal, chegamos a um quarto na extremidade de um corredor, onde ela abriu uma porta e gesticulou para que entrássemos. No quarto em que entramos havia duas camas de casal.

- Exatamente como você disse, Lucia. Seus filhos são lindos.- falou a velha com uma voz fria e indiferente

- Mas tem certeza de que são inteligentes? Sofrem de problemas invisíveis, não aparentes ao olhar?

- Não! - bradou mamãe, tão ofendida quanto eu. - Como você bem pode ver,
meus filhos são perfeitos, física e mentalmente!

Não gostei nem um pouco dessa mulher, era grande e tinha olhos frios.

Mamãe nos preparara com antecedência para um avô desprovido de carinho, afeição - mas a avó que providenciara nossa recepção... constituía uma surpresa brutal, assustadora.

Deitei Prim ao lado de Liam, que dormiram na mesma hora, olhando os dois dormindo pareciam dois anjinhos, e assim que me deitei ao lado de Gale total desaprovação faiscou nos olhos cinzentos de nossa avó. Seu rosto mantinha uma expressão franzida que mamãe pareceu entender, embora eu não conseguisse interpretar. O rosto de mamãe enrubesceu quando a avó declarou:
- Suas duas crianças mais velhas não podem dormir na mesma cama!

- São apenas crianças! - replicou mamãe com desusada veemência. – Você não mudou nem um pouco, não é, mamãe? Ainda tem a mente suja e desconfiada! Gale e Kat são inocentes!

- Inocentes? - retrucou a velha, com uma expressão maldosa tão afiada que
parecia capaz de ferir alguém. - Era exatamente isso que seu pai e eu pensávamos a respeito de você e de seu meio-tio!

Com os olhos esbugalhados, olhei de uma para a outra. Lancei um olhar de esguelha a meu irmão, que estava tão confuso quanto eu, sem entender coisa alguma.

- Se pensa assim, então dê-lhes quartos separados, com camas separadas! Deus sabe que isso existe de sobra nessa casa!

- Impossível! - replicou a mãe dela, naquele tom que queimava como gelo. - Este é o único quarto que possui um banheiro privativo

Dormiríamos, nós todos, num único quarto? Numa grandiosa e rica mansão, com vinte, trinta ou quarenta quartos, ficaríamos todos num mesmo quarto? Mesmo assim - agora que pude pensar bem no assunto – eu não desejaria ficar sozinha num quarto daquela casa imensa.

- Ponha as duas meninas numa cama e os dois meninos na outra – ordenou nossa avó.

Mamãe pegou Liam no colo e o depositou na outra cama de casal

A velha olhou duramente para mim e, depois, para Gale.

- Agora, ouçam o seguinte - começou, como um sargento-instrutor - Caberá a vocês dois, os mais velhos, manter os menores quietos; os dois serão responsáveis se eles violarem qualquer uma das regras que estou estabelecendo agora e virei a estabelecer mais tarde. Mantenham sempre isso em mente: se o seu avô descobrir, antes do tempo, que vocês são seus netos expulsará todos sem um único tostão furado, após castigá-los severamente por estarem vivos! Vocês manterão esse quarto sempre limpo, varrido e bem arrumado, e o banheiro também. Vão ter que fingir ser meus criados, limpando e arrumando a mansão e enquanto não estiverem na escola vão estar trabalhando na arrumação da casa ou cuidando do jardim e quando terminarem devem voltar para este quarto. Quando sua mãe e eu sairmos esta noite, fecharei a porta e trancarei à chave por fora, pois não admitirei que fiquem vagando pela casa. Permanecerão assim até o dia da morte de seu avô, mas, para todos os efeitos, vocês são criados

Oh, Deus! Olhei para mamãe. Não podia ser verdade! Ela estava mentindo, não estava? Dizendo coisas malvadas apenas para assustar-nos. Aproximei-me de Gale, comprimindo-me de encontro a ele, sentindo-me fria e trêmula. A avó ficou mais carrancuda e eu me afastei.

- Tudo bem - sussurrou mamãe. - Confiem em mim. Só passarão uma noite aqui. Então, meu pai os receberá em seu lar.

Então, olhou raivosamente para a mãe tão alta, severa, implacável.

- Mamãe, tenha alguma piedade e compaixão por meus filhos. Eles também são a sua carne e o seu sangue, não se esqueça.

- Todas as manhãs, bem cedo, trarei comida e leite para as crianças, não é permitido brincadeiras na minha casa, o único lugar que poderão brincar é no sótão, daqui a dois dias começaram a estudar no  colegio Capital pela manhã e durante a tarde trabalharão pra mim

Mamãe, parecendo muito pálida e preocupada, com fundas olheiras,
aproximou-se de mim e colou os lábios na minha testa. Vi lágrimas brilharem nos cantos de seus olhos, e a maquilagem estava manchada e úmida. Estaria chorando novamente?

- Durma - disse em voz rouca. - Não se preocupe. Não dê atenção ao que acaba de escutar. Tão logo meu pai me perdoar e esquecer o que fiz para desagradá-lo, receberá os netos com os braços abertos

-Por que está chorando mamãe?? – falei preocupada

- Kat, temo que seja necessário mais que um dia para recuperar a aprovação e afeto de meu pai. Pode levar dois dias, ou até mais.

- Mais?

- Talvez. Pode levar até uma semana, porém não mais que isso. Talvez leve menos tempo. Não sei exatamente... mas não demorará. Conte com isso - respondeu ela, alisando-me os cabelos

- Descansem bem essa noite e, amanhã virei vê-los o mais cedo possível.

A avó empurrou impiedosamente mamãe pela porta aberta. Todavia, mamãe
conseguiu torcer o corpo para olhar-nos por cima do ombro, seus olhos tristes
implorando antes mesmo que ela começasse a falar:
- Sejam bonzinhos, por favor. Comportem-se bem. Não façam barulho.
Obedeçam as regras impostas por sua avó e nunca lhe ofereçam um motivo para castigá-los. Por favor, façam isso; por favor.

- Boa-noite, mamãe - dissemos Gale e eu, enquanto ela vacilava no
corredor, com as mãos grandes e cruéis da avó segurando-lhe os ombros. – Não se preocupe conosco. Estaremos bem. Sabemos cuidar dos gêmeos. Já não somos criancinhas pequenas.
Essas palavras partiram de meu irmão.

- Vocês me verão amanhã de manhã - declarou a avó antes de empurrar mamãe para o corredor e fechar a porta, trancando-a por fora.

O que eu desejava, ali deitada, era dormir – mas não conseguia dormir preocupada e com medo.

Gale quebrou o silêncio e começamos, aos sussurros, a discutir nossa situação.

- Não pode ser tão ruim - disse ele baixinho, os olhos brilhando no escuro. - Aquela avó... ela não pode ser tão má como parece.

- Quer dizer que você não a julgou uma velhinha bondosa e simpática?

Ele soltou uma risadinha.

- Sim, pode apostar que é bondosa... como uma sucuri.

- Como ela é grande! Que altura acha que ela tem?

- Bem, é difícil adivinhar. Talvez um metro e oitenta. E cem quilos.

- Dois metros! E duzentos e cinqüenta quilos!  Gale, você escutou o que a avó disse a respeito de um meio-tio? Entendeu o que ela quis dizer?

- Não. Mas suponho que mamãe explicará tudo. Agora, reze e trate de dormir. Não é tudo que podemos fazer?

Saltei da cama, ajoelhei-me e cruzei as mãos sob o queixo. Fechei os olhos com força e rezei, pedindo a Deus que ajudasse mamãe a ser encantadora e convincente como nunca.

Então, cansada e afogada por tantas emoções, subi para a cama, abracei Prim de encontro ao peito e mergulhei nos sonhos.


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