E se de algo tenho certeza, é que se um dia eu realmente ver Luke, quero que ele pague por tudo que me fez, tudo que me disse. Morreu como um herói, disso todos concordamos, mas não é porque se foi que virou santo. Ele havia traído a mim, traído a todos que o amavam e se importavam com ele. E ele não sairia impune. Não serão palavras doces que vão me fazer perdoá-lo. Não são gestos meigos que vão me fazer voltar atrás.

Ele teria que mudar.

E provar que mudou.

Abri os olhos com o sol da manhã. Eu dormira por dezesseis horas. O dobro do recomendado e o triplo do habitual das caçadoras. Era estranho não sentir a ressaca, não sentir a fome. Quase sete anos como caçadora e eu ainda não estava habituada com a sensação. Tomei um rápido banho de água gelada pra esfriar a cabeça. Já vestidas, desci as escadas em direção à cozinha. Por mais que não precisássemos comer, a sensação de estômago cheio era reconfortante. Um cheiro de panquecas me fez revirar de vontade. Isso era o mais próximo de alguma fome que eu poderia ter. Corri em alguns passos silenciosos até ver uma garota do cabelo castanho-dourado atrás do balcão.

– Espero não ter que arrastar minha tenente de volta ao acampamento. – Ela sorriu em seus azuis escuros.

– Lady Ártemis, me desculpe. – suspirei e me aproximei mais – Eu tive que tirar um tempo para pensar.

–Eu sei, Thalia Grace. – sua voz soou extremamente maternal. A deusa só era assim quando tinha assuntos extremamente complicados para lidar – E é por isso que preciso falar com você.

– Muito bem – disse, sentando-me – Pode mandar.

– As meninas me contaram o que aconteceu. Bem, ao menos o que elas souberam. O filho de Hades foi até você contou que Luke está de volta. E você sabe o que eu penso sobre isso.
– Me manter longe, ignorá-lo, assim como fiz quando ele quis que eu me aliasse, e esse tipo e coisa – suspirei – e daí?

– E aí que a senhorita está errada. – ela se sentou à minha frente – Thalia Grace, você sabe por que criei as caçadoras?

– Já ouvi histórias.

– Pois bem, contarei. Quando éramos muito mais novos, Apolo e eu discutíamos dia e noite sobre quem era o melhor arqueiro. Nós pedíamos opinião dos outros deuses, fazíamos disputas, mas sempre chegávamos num impasse. Foi quando eu me apaixonei por Órion. Eu comecei a dedicar meu tempo para as coisas boas, e aproveitar a vida, se é que posso dizer assim.

“Apolo começou a se sentir enciumado, já que eu passava tanto tempo com um mero mortal. Não éramos mais os gêmeos arqueiros, e sim, Apolo e Ártemis. As pessoas pararam de nos ver como um só. Enquanto eu lutava pra conseguir minha própria identidade, meu irmão queria partilhar uma comigo. Ele realmente me amava. E eu estava cega de amor por Órion. E Apolo quase morria por isso.

“Um dia, ele quis fazer uma disputa comigo. Disse que se eu acertasse um ponto que se movia no alto mar, eu seria a melhor arqueira. E eu deixei o orgulho falar mais alto. Eu aceitei, e atirei. Sabe quem era? Órion, exatamente. Mas, ao contrário do que pensam, a história não termina aí.

“Apolo me jurou de pés juntos que ele não era o responsável por aquilo. Mas eu sabia o que ele havia feito tudo aquilo de propósito. Eu jurei pelo rio Estige que o perdoaria se ele me contasse o motivo verdadeiro. Ele dizia que Órion não era bom o suficiente para mim e esse tipo de coisa, mas eu não conseguia perdoá-lo. Por quê? Porque ele estava mentindo.

“Um dia, após uma reunião do solstício de verão, Apolo veio até mim e me abraçou. ‘Apesar de tudo o que fiz’ ele começou, ‘Eu te amo, maninha’. Foi o que ele disse. E então o nó em minha garganta se desfez. Eu pude perdoá-lo. Porque ele finalmente havia dito a verdade.

“Finalmente comecei a conviver melhor com Apolo, e ele me ensinou a amá-lo. Sabe, essa questão de incesto não existe entre os deuses, Thalia... E eu então percebi que talvez meu destino pertencesse a Apolo. Mas nosso pai não ficou feliz com isso. Ele acreditava que eu e meu irmão havíamos matado Órion por diversão, apenas pra ficarmos juntos, e não importaram quantas milhares de vezes eu contei a ele a mesma história, ele não ouvia uma palavra do que eu dissesse.

“O que ele fez? ‘Justiça’, de acordo com suas palavras. Eu e Apolo nos tornamos o Sol e a Lua. Ele transformou Órion em uma estrela para que eu olhasse para meu ‘erro’ todas as noites. E, como se não bastasse, Zeus permitiu que eu e Apolo nos víssemos vez ou outra, desde que eu cuidasse que um grupo de garotas que jurassem abandonar a companhia dos homens.

“Você tem noção de como é difícil dizer que homens não prestam, quando você gostaria estar com o seu, e até em tese poderia? Você tem noção de como é olhar para o céu todas as noites e se sentir culpada por algo que você não fez?

“Apolo, tão ‘garanhão’ só se tornou ele como conhecemos porque também teve que seguir uma regra de nosso pai. Assim como eu deveria treinar as caçadoras, ele deveria dormir com mulheres que Zeus escolhesse a dedo. Como deve ser para ele, ir para a cama com uma mulher, querendo estar comigo?

“E mesmo com tudo isso, eu e ele só podemos ficar juntos quando ocorre um eclipse. Um eclipse solar. Quantos você viu durante toda a sua vida? Dois? Três, no máximo. E ainda sim, nunca dura mais que alguns minutos.

“E mesmo assim, Thalia Grace, eu e ele continuamos atendendo os caprichos de meu pai, pra termos esses pequenos momentos juntos. E eu te digo que apesar de tudo, vale a pena. Nenhum amor é impossível como pensa. O que você e Luke sentem é tão perfeito, que até a própria Afrodite tem inveja de vocês pelo sentimento.

“Quando nos encontramos, pela primeira vez, fiquei extremamente feliz por vocês se recusarem entrar na caçada, porque ainda podiam amar. E eu sei que você o ama, por mais que se negue. Então não o deixe ir. Não deixe que ele seja seu maior ‘E se... ’. Porque se há alguém que possa te amar verdadeiramente, esse alguém é o filho de Hermes. Então não se martirize. E não conte para ninguém o que acabei de te falar, Grace, ou corto sua língua.

“Saiba que farei tudo o que estiver ao meu alcance pra vocês ficarem juntos. E estou indo viajar com as caçadoras. Você fica.”

Dito isso, ela simplesmente desapareceu. Olhei para o prato à minha frente, cheio de panquecas, mas elas não me pareciam mais tão apetitosas.

– Não deixe a fonte secar pra perceber o valor da água, Thalia.

Eu já ia discutir com minha consciência novamente. A voz de Luke já tinha me tirado do sério. Mas não eram meus pensamentos. Não dessa vez.

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