Talvez Seja Mesmo Uma História De Amor escrita por Anne Diogo


Capítulo 3
Capítulo 3 - Solidão admitida


Notas iniciais do capítulo

Esse capitulo revela bastante sobre o Virgile, sua aparência, suas preferencias e sua mania de fazer drama.



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No caminho de volta para casa ligou para Valentina, em sua cabeça quando entrasse em seu calabouço gostaria de se isolar por enquanto até seu exame, então nada melhor do que resolver essas pendências celulares logo.

– Oi, Tina! – fazia caretas ao ouvir a tagarelice e os lamentos de sua amiga – Eu sou complicado demais, ela ficará melhor sem mim – bufou mentindo – Claro, pode ser amanhã? Hoje quero chegar em casa e descansar, tive um dia bastante tumultuado na empresa, vc me entende? – franzia a testa enquanto ouvia mais paparicos que não suportava - Então tá, no horário de sempre e no mesmo lugar. Tchau.

Virgile odiava falar ao celular, ainda mais quando se tratava de falar com suas amigas, parecia que a conversa não tinha fim, mesmo não sendo uma conversa bilateral.

Chegando em casa, passou pela caixa de correspondência, pegou o envelope pardo, o colocou na mesinha de telefone e o ignorou, sentou na poltrona ao lado dela e tratou de primeiro resolver o caso de sua possível doença, ligou para uma seria de conhecidos para ver se conseguia uma hora numa clinica de radiologia para o dia seguinte, não gostaria de passar nenhum dia dentro daquela aflição.

O seu pessimismo o fazia ter absoluta certeza de qual resultado seria. Que outro resultado poderia ser o de um homem que foi deixado por uma mulher e não se lembrava de absolutamente nada, só podia possuir uma doença neurológica. O centro da memória fora atingido e assim sua vida gradativamente sumiria de sua cabeça à medida da progressão de sua doença. Podia ouvir cortes, o bipe do monitor cardíaco, os médicos falando que ia perdê-lo. Se o Virgile tem uma forte característica em suas ilusões, ela é o drama e o exagero.

– Vou morrer – Disse o Virgile quebrando o silencio do seu apartamento.

Repetiu essa frase varias vezes, acompanhado com várias passadas de mão na cara e no cabelo, em seu comportamento desesperado. Somente nessas ocasiões ele parecia realmente ter a sua idade, pois seu cabelo castanho escuro ficava esvoaçante em um clima jovial. Seu pensamento na morte era firme e rígido, mas também desesperador, para ele estava próximo seu fim e isso o fazia sentir calafrios no corpo, da cabeça aos pés. Seu medo da morte era apenas um capricho, morrer é a maior prova de ser normal, morrer era torna-se normal, não ligava por se ausentar no mundo, já fazia isso vivo. Cadáveres são seres sem personalidade, todos são iguais e fazem a mesma coisa, quer dizer, não fazem nada. Morrer seria o que acontece com todo mundo e ir contra o que acontece com todos era a razão de sobrevivência do Virgile, ele amava contradições, e era esse seu espírito contraditório que não o deixava suportar a morte.

Rebaixou a luz e sentou-se no sofá, o lugar ficou com ar melancólico. Começou a passar a mão por objetos que alcançava, Seus dedos buscavam pela aspereza, pelas falhas, pelo desgaste do tecido, a circunferência de queimadura de cigarro. Virgile estava tão preso a sentir os detalhes de seu apartamento que esqueceu de se perguntar o porque daquela queimadura, já que nunca fumou e também nunca levou alguém ali. Estava ávido por sensações e informações, apalpava os objetos como se estivesse lendo braile. Tinha estado por aquele apartamento por sete anos, tinha o marcado, será que poderia dizer o mesmo do mundo? Com nossa morte, será que fragmentos de nós serão guardados pelo mundo? Será que os átomos guardarão os contornos dos pensamentos? Pequenos ecos de nossas risadas? Depois de todas essas perguntas se conformou em pensar que se o mundo não guardasse pedaços dele, pelo menos seus amigos e seus objetos o guardaria.

Apesar de achar que iria morrer, deveria comer até seu ultimo dia e sua despensa não era a coisa mais bonita de se ver, então entrou no site Bon Marché e pediu um verdadeiro banquete, com três garrafas de Mouton-Rothschild. A cesta lhe chegou em meia hora. Seu drama foi neutralizado por uns instantes por conta da boa comida. Se entrelaçou em um clima vintage, acolhedor, solitário e melancólico, ouvindo seus vinis, tomando seu vinho e passeando lentamente por seu apartamento. Seria esse o ultimo concerto em sua homenagem de artistas do mundo inteiro que possua dentro de seus vinis. Mesmo se não marcasse o mundo gostaria de marcar suas impressões digitais ali, no seu mundo. Enquanto ouvia “Futuros Amantes”, aquela realidade se juntava em seu pensamento, imaginava escafandristas, arqueólogos à procura de seus rastros, alguma prova de sua existência. Seus devaneios não terminavam, mas essas ilusões o confortara. Imaginava que assim como as louças da Antiguidade, que ao serem moldadas em argilas e como um disco gravavam as palavras pronunciadas no trabalho, os milhões de microssulcos de seu apartamento fariam o mesmo com seus monólogos e suas conversas.

Parou um pouco de pensar em si e tentou pensar naquela que o fez descobrir a morte, Clementine. Se esforçou, mas não conseguia se lembrar dela. Refez todo seu caminho desde a festa, seus finais de noite por semana com Armelle, os telefonemas de seus pais, a recusa de alguns convites para as outras festas semanais de Mary mas não se lembrava o porque, a vizinha que lhe emprestara um preservativo mas ele também não lembrava o motivo do empréstimo, a troca de campanha publicitária no trabalho, as saídas, os filmes que tinha visto, os livros que lera. Reconstituiu tudo, havia alguns vazios mas era impossíveis de encaixar Clementine neles, a suposta doença a eliminara.

Chegando a segunda garrafa de seu bom vinho, já embriagado de bebida e de duvida, imaginou os caminhos tomados por essa mulher misteriosa. Imaginava um vulto, as suas mãos apoiadas no marco da porta da cozinha, abrindo a geladeira e se servindo de um pouco de vodka, saindo do chuveiro com a toalha amarrada na altura dos seios. De repente começou a buscar suas marcas de forma desesperada, embaixo da cama, dentro dos armários, no banheiro, na cozinha, em caixas, no seu diário, que por sinal possuía folhas arrancadas. Nada foi achado. Nenhum rastro feminino, nem mesmo um perfume no travesseiro. Não estranho, levando-se em consideração o lugar onde morava, era bastante justo não ter levado nenhuma garota ali.

Sua melancolia, drama e bebedeira o fazia pensar que deixou escapar seu amor e agora, mesmo sendo cedo, morreria só. Gostaria de experimentar, como ele mesmo dizia, as preliminares da morte, envelhecer, sentir seu corpo se cansar e doer, sua pele enrugar, seu cabelo embranquecer. Ele não se sentia pronto, havia ainda uma longa vida para dramatizar.

Pensou em uma possível descrição para seu enterro: Virgile, 29 anos, 72 quilos, um metro e oitenta e dois de altura. Vestia-se sempre do mesmo jeito, o seu jeito, calça de veludo escuro, pulôver com decote em V, camisa branca impecável, sapatos ingleses ou mocassins. Fiel ao culto old. Carismático de sua forma, desajeitado e incomum. Apenas presenteava com girassóis ou gérberas. Apenas assistia filmes preto e branco, e quando gostava de um colorido, regulava a televisão e tirava-lhe a cor. Sempre sistemático, só ouvia vinis, bebia chá, só usava um tipo de caneta, qualquer uma da Crown, mas gostava mais da tinteiro...

Gostava de coisas “velhas”, filmes, roupas, livros, comportamentos. Acreditava que a experiência que algo velho traz era inigualável, acompanhavam sua solidão.

Ruídos do seu prédio fez voltar seus pensamentos para ali, o lugar onde morava, Rua de Dunkerque, em frente à estação do Norte e suas estatuas, acima de um cinema pornográfico, o Calypso, dos dezesseis apartamentos do seu prédio, quinze eram usados para troca de dinheiro e fluidos humanos. Tais ruídos eram provenientes dessas trocas, que já não o incomodavam mais, já eram sete anos de residência naquele lugar. Ahh, isso tudo lhe faria falta. A ciência das tragédias sentimentais sofreria um grande retardamento com sua ausência. Apesar de toda aquela trilha sonora, se assim pode ser chamada, que possuía a sua volta, ele mesmo não acompanhava esse concerto, poucos ou nenhum eram os sons que saiam de seu pequeno apartamento.

No escuro, a luz de velas e da lua, lá estava ele em seu apartamento, discos e livros encontravam-se espalhados pelo chão, sua calça estava jogada na cozinha. Era uma luz bonita, romântica e solitária. Isso ele já havia enchido mais de dez copos de vinho (de pé fino, grosso, longo, em forma de balão, triangulares, em forma de pera, de vidro jateado, transparentes, opacos), estavam todos espalhados, pareciam sentinelas.

“As long as I live” soava na voz de Benny Goodman. Viajando no ritmo, Virgile pegou novamente a secretaria eletrônica sobre os joelhos e ouviu aquela ritmada mensagem mais uma vez: “Aqui é Clementine. Sinto muito, mas prefiro que a gente pare por aqui. Vou me separar de você, Virgile. Não quero mais”.

Ele examinou minuciosamente o sentimento que estava carregado na voz dela, era decepção e tristeza. Sentiu-se extremamente culpado por fazer a dona daquela amável voz se sentir assim. Havia esquecido o drama de sua possível doença, substituindo pelo drama do monstro que morava em seu ser que tinha feito a dona daquela voz amável sofrer. Sabia que se esse relacionamento um dia existiu, a responsabilidade da extinção era totalmente dele. Ele não gostava de sair de férias, transformava tudo em zombaria, não acreditava em nada, e seu espírito de contradição era realmente desesperador. Clementine tinha TODA razão por deixa-lo. Não lhe havia outra vocação a não ser viver solitário. Ela deve ter tentado modifica-lo e tanto tentou que não conseguiu e desistiu, estava mais do que evidente.

Além do seu vinil o seu telefone também tocava incessantemente, graças a Valentina, agora todos da via láctea sabiam da novidade. Ao mesmo tempo que descobriram que ele terminara, descobriram que ele tinha um relacionamento, pelo menos era o que o Virgile acreditava e o que diziam nas mensagens. Virgile decidiu não deixa-los preocupados, então vestiu a carapuça de recém-separado. A frase que mais balbuciava em frente daquela situação era: “Sim, a gente se gostava, mas eu sou complicado demais. Ela ficará melhor assim, sem mim”.

Achou forças e começou a cancelar assinaturas e contratos, por ultimo, ligou a fim de declarar sua angustia a alguém, nada como um anônimo qualquer, então discou o numero da empresa telefônica.

Terminar um contrato com uma empresa era semelhante ao seu caso, uma ruptura sentimental: a atendente queria saber os motivos, pedia uma segunda chance, tentar lhe agradar para ele permanecer. Depois de tanta insistência, Virgile decidiu lhe contar que não adiantava promoções, agrados ou a continuação daquela linha, ele não poderia usa-la mais, pois em breve ela não teria utilidade. Um clima vazio cercou aquela ligação, só era possível ouvir os dedos dela na tecla do computador seguido da informação que no fim de semana, ela estaria desativada. Virgile imagina, dedos longos com unhas vermelho puro e o cabelo totalmente preso em um rabo de cavalo. Cortando seus pensamentos, ela deu boa noite e desligou. Se decepcionou, esperava um pouco mais de sentimento, já que havia sido um bom cliente durante esses sete anos.

Em seguida telefonou para a empresa de fornecimento de luz elétrica, uma mulher o atendeu, sua voz madura e rouca indicava certa idade e a queda pelo cigarro, como uma típica francesa. Ele estava tremendo, jogado ao pé do sofá e molhado de suor frio e a luz da cozinha o iluminava, parecia estar em uma apresentação de alguma peça bastante dramática, onde apenas a luz dos refletores o tocava. A mulher o perguntou o motivo do cancelamento e teatralmente ele a disse:

– Sofro de uma grave doença e estou em estado terminal.

A mulher perdeu sua postura, começou a gaguejar, Virgile sentiu a sua não indiferença, ela forçou uma tosse e continuou. Ouviu-a chorar, o barulho das teclas havia parado, ela o escutava. Então se entregara ao clima patético, sua embriaguez o fazia sentir que estava partindo para bem longe...

– Espero te sido um bom cliente...

Se esforçando ela disse que estava ali para escuta-lo, ele não se lamentou, apenas disse que se acostumou com a ideia e a vida era assim mesmo, ou melhor, a morte.

Depois desse desesperado desabafo, percebeu que estava pronto para anunciar sua desgraça, permitindo aos próximos, sentir sua falta. O amor fati seria um grande guia para consolo. Se dispões a abrir a terceira garrafa de vinho.

Depois de fazer uma triagem, organizar a papelada, empilhar e não abrir a correspondência, redigiu uma carta sobre o contrato de aluguel pra seu senhorio. Não se considerava um hipocondríaco, mas não era primeira vez que achava que estava chegando sua hora. Tinha, portanto, uma pilha de cartas-testamento guardadas e agora redigia mais uma. Fez pequenas modificações, como a que pedia para que suas cinzas fossem jogadas no vestiário feminino da piscina de Auteuil. Imprimiu, guardou-a em um envelope rubro e pôs em cima da lareira.


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Notas finais do capítulo

Amor fati = Amor ao destino, acreditar que as coisas são o que são predestinadamente

Finalizado !! Próximos capítulos só serão postados completos.