Eu, Fora De Controle escrita por Lionardo Fonseca Paiva


Capítulo 5
Capítulo 1 - Quarta Parte




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Quarta Parte

Foi então que conheci você.

Era como uma luz. Uma luz maravilhosa, que tanto pode ser nossa amiga como nossa perdição... e quando abri os olhos já estava perdido. Perdido por você.

Quando penso naquele primeiro dia em que conheci você, fico imaginando como o tempo não foi em nada nosso amigo, pois hoje, daqueles dias de encantamento, restaram apenas ausências e trevas.

As aulas já haviam iniciado há cerca de duas semanas. Minha classe era muito mal iluminada e em curto espaço de tempo já estava com dor nos olhos. No começo era cheia de alunos, quase não havia espaço para andar pela sala. Os professores eram carrancudos e sérios e tratavam os alunos com meias palavras.  

Eu sentava atrás de todos e ao meu lado havia um rapaz negro, bastante simpático e que adorava impressionar as pessoas com frases negativas e de efeito. Falava das glórias nazistas, enaltecia o ideal comunista e tentava nos convencer dos motivos existenciais que leva uma pessoa a ser terrorista. Quanto mais chocado estivesse o ouvinte de suas lorotas, mas ele se deliciava com aquele humor macabro. Adorava escrever contos e sempre eram horríveis. História de terror sem noção misturada com enredo policial. Ele tinha uma fúria contida que, com certeza, explodiria. Se algum dia explodiu, eu não estava por perto.

Um dia, ele me contou como era a sua vida. Enclausurava-se no quarto quando chegava a sua casa e ali era seu universo solitário. Alegava que  em sua casa ninguém gostava dele. Estava sempre em guerra constante com seus irmãos, e suas brigas eram todas na faca. Mostrou-me os cortes que tinha pelo corpo e alegava que seus irmãos estavam pior que ele. Comecei a imaginar se aquele jovem rapaz não seria um dia um marginal, mas depois vi que era ingênuo demais para sê-lo. Toda aquela aparência de gângster era pura fachada pois era um rapaz divertido e muito falante. Um verdadeiro contador de causos. Passava horas a fio conversando e gostava muito de fazer piadas com os defeitos físicos dos professores. Nas costas deles, claro!

Todos os dias ele ia para a escola com uma blusa de couro preta por cima do uniforme. Fazendo chuva, sol, frio, não importava...

Num dia de sol escaldante, a diretora foi pessoalmente barra-lo na entrada e começou o seu discurso dizendo que foi tolerante ate então pois o clima estava frio, mas como aquela ocasião era de calor intenso não fazia sentido aquela jaqueta de couro por cima do uniforme.

Ele ficou em silencio ouvindo e balançando a cabeça em sinal de aprovação.

— Não ficou dúvida? — perguntou

Então, com uma boa dose de cinismo, disse:

— Pô que foda! Então até quantos graus será permitido o uso dessas blusas?

Claro que a diretora o mandou de volta para casa depois daquela resposta.

Assim era ele. Irreverente. Foi minha primeira amizade nessa cidade, depois de Patrícia. Seu nome era Saulo e apesar de ser um nome da bíblia ele não tinha nada de bíblico.

No sábado ele me convidou para ir à sua casa. Era um lugar calmo e o movimento maior ficava por conta da vizinhança. Os irmãos dele me olhavam de lado, como quem deparava com uma visita indesejável. Iam saindo quando cheguei e mesmo diante da tentativa de cumprimenta-los não houve resposta. Saíram batendo a porta com toda a força. Ficou um deitado no sofá me encarando. Seus pais não estavam.

Esse era o mundo dele. Creio que o seu problema maior era a incompreensão dos outros. Seus irmãos viam nele um maluco e eu via um amigo.

A segunda pessoa que conheci na classe foi você Raquel.

Era impossível te ignorar pois você transmitia uma luz que te destacava na multidão. Eu me pegava olhando para ti sem saber porque fazia aquilo. Você conversava com todos, puxava assunto com desconhecidos como se fossem amigos, falava de si próprio, e estava sempre de bom humor. Sua voz era a mais ouvida na sala de aula pois gostava de entrar em todos os assuntos e confusões. Transmitia uma grande simpatia. Não era a mais bonita, mas tinha um belo corpo, era uma magra esbelta com uma cinturinha incrivelmente fina e de estatura média. Tinha um zelo pela própria aparência. Tinha uma extrema vaidade. Sempre bronzeada, bem arrumada, cabelo escovado e unhas bem feitas. O seu rosto parecia de uma menininha. Quando sorria era uma verdadeira boneca.

Era encantador conversar com você pois não conseguia me desligar quando você estava por perto. Havia um magnetismo inexplicável. Se você estivesse a 200 metros de distância no pátio apinhado de gente era fácil te achar, pois era como se houvesse uma aura que distinguia você das outras pessoas.

Logo ficamos amigos.

Era o ano de 1992, e começou com a crise do petróleo no mundo todo. A gasolina subia assustadoramente e a inflação ameaçava. Os produtos, em geral, triplicaram seus preços e o corte das despesas era geral em todas empresas. Economizar era a palavra mágica. Muitos empregados foram demitidos e nessa história toda eu também fui um deles.

O dono da rádio me chamou em seu escritório e disse:

— Dêner, você é um jovem que eu admiro muito. Seus textos são formidáveis, mas o Brasil está em crise. Temos que cortar o supérfluo, diminuir as despesas e tentar acompanhar essa crise numa verdadeira corda bamba. Você está me entendendo? Sabe, você é o funcionário mais novo e seu serviço, pelo que sei, a Patrícia o faz bem. Vai ficar mais barato para nós se passarmos para ela esse serviço, já que o dela é pouco. Sinto muito, Dêner. Você está despedido...

Não fiquei perturbado por isso. Não sabia se ia ser difícil arranjar outro emprego, mas por outro lado não estava mesmo gostando de ficar fazendo a mesma coisa todo dia.

Cheguei em casa, comentei com meu pai e ele me perguntou:

— Dêner, sei que você gosta de dirigir. Tem carteira de motorista e muita força de vontade. Sei também que tudo aquilo que aconteceu em Itumbiara foi um acidente. Não tenho dúvidas de que, se o caminhão tivesse freio, você iria dirigi-lo muito bem. O que eu quero dizer é que, se você quiser divido o caminhão com você. Estou ficando velho e as cargas mais distantes não quero pegar. Quero ficar mais em casa, mas também não quero colocar meu caminhão nas mãos de um motorista desconhecido. Se ainda for seu sonho, esta ai a proposta. Aceita?

Fiquei calado. Este era mesmo o meu sonho. Mas depois do que acontecera, de todos aqueles acidentes, fiquei com receio... ou medo, de entrar num caminhão. Não, não ia poder fazer aquilo que papai queria. Mas também não podia dizer isto naquele momento. Limitei-me a responder que ia pensar. Ele estranhou, mas nada disse. Saí da sala e ia para meu quarto, quando passei pelo quarto de Sandra. Resolvi entrar para conversar com ela. Abri a porta, que já estava entreaberta, e Sandra, ao me ver, escondeu algo atrás de si.

— Que foi? — perguntei

— Nada.

— Você escondeu alguma coisa de mim. O que era?

— Nada que você possa ver enxerido.

— Sandra... Você não está fazendo nada errado, não é?

— Não. O que você quer no meu quarto? Como você entra assim? Já pensou se estou nua aqui? Da próxima vez vê se bate antes de entrar.

— Queria conversar com você... Posso?

Entrei e sentei-me na beira da cama. Ela estava nervosa e seus olhos estavam vermelhos.

— Você andou chorando, por acaso? — perguntei.

— Eu? Não! Por quê?

— Nada não, esquece. Depois eu falo com você — saí do quarto.

Desde há muito que ela andava estranha. Tinha mudado seus hábitos e nem cuidava mais de si como antes.

Tomei um banho e me aprontei para ir à escola. Perguntei ao Durval se podia usar o carro dele e milagrosamente consentiu desde que deixasse a Sandra no colégio dela.

Levei-a até a porta e, quando desceu do carro, vi suas colegas se aproximando e ela fazendo um sinal chamando-as.

— Ei Dêner! Sai do carro. Deixa eu te apresentar minhas amigas. Elas estão loucas para te conhecer.

Saí do carro.

Eram todas bem simpáticas mas ao mesmo tempo um tanto estranhas. Parecia que viviam no mundo da lua, apáticas e agiam como se aquela apresentação estivesse enfadonha ao extremo. Notei que nenhuma tinha livros nas mãos, porém não falei nada.

Cheguei à escola atrasado. Estavam todos ainda formando seus grupos para fazer um trabalho. Fiquei um pouco deslocado por não saber do que se tratava, mas notei que você ainda estava sozinha. Estava quieta em sua cadeira começando a colocar o livro na carteira e abrindo seu caderno. Aproximei-me e perguntei:

— Poderia me explicar o que é para fazer? Creio que não sei.

Olhou para mim e deu uma risadinha. Era uma risadinha acompanhada com um sorriso irônico e malicioso. Era sua marca registrada.

— Lógico que posso explicar. — respondeu.

Então me explicou quais eram os exercícios e enquanto falava fiquei observando você. Tinha um leve machucado no canto da boca e eu brinquei:

— Andou beijando seu cachorro? Parece que alguém te mordeu nos lábios.

Você riu e depois ficou séria:

— Meu namorado. Creio que isto veio dele. — e sorriu.

— Tome cuidado pode ser um sapinho.

— Será que é? — falou baixinho — você precisa ver o que ele fez em outros lugares...

— Prefiro nem saber. — Falei tentando parecer desinteressado mas aquilo me perturbou. Havia um sentimento de ciúme que me preencheu naquele momento.

No outro dia você apareceu com uma blusa decotadíssima. Era um dia de prova e quem terminasse poderia ir embora mais cedo. O uniforme era opcional. Então você aproveitou para colocar uma roupa mais atraente do que aquele uniforme de presidio da escola e mostrar seu bronzeado para quem quisesse ver. Acredito que todos os homens da classe viram pois naquele dia você foi a mais popular. Até quem não conversava contigo puxou assunto. Eu percebia que  estava adorando aquele momento de celebridade.

No inicio de março você faria aniversário e comentei isso com Saulo.

— Sabe do que essa garota gosta? — disse ele — boneca! Você pode achar ridículo, mas eu não estou brincando mas ela me disse que adora bonecas e as coleciona.

Comprei uma e lhe dei. Você abraçou a boneca e saiu correndo para mostrar às amigas e até se esqueceu de dizer muito obrigada. Somente depois voltou a sua carteira, que ficava próxima a minha, que olhou para mim dizendo:

— Nossa, achei linda! — e guardou junto com os cadernos. — Você é um bom amigo.

Um dia, de maneira casual, você olhou para mim durante uma aula de história bastante cansativa e me perguntou se eu gostaria de, um dia desses, conhecer sua casa e sua família. Fiquei eufórico e respondi que seria interessante sim.

— Quero que conheça minha irmã. Ela vai gostar de você pois falo muito de você para ela.

— Fala mesmo? Coisas boas eu espero.

Você fez aquele sorriso dizendo:

— Você é legal Dêner. Você é meu amigo e não é como esses outros caras daqui que fica me comendo com os olhos.

Engoli em seco e não entendi o que queria dizer. Se era um elogio não senti dessa forma pois era como estivesse me excluindo. Mas ignorei.


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