Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 4
III. PERTURBADOS


Notas iniciais do capítulo

Se não houver comentários, irei parar de postar -- Isso, é claro, supondo que alguém esteja lendo.



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III. PERTURBADOS

JANE

Eu acordei sobressaltada.

                O sonho que tivera fora assustador. Muito assustador.

                O.K, exagero meu. Não era tão ruim assim, porque eu já havia tido sonhos piores do que esse, bem mais inquietantes. No entanto, por alguma razão, eu sentia que esse era mais significativo do que os outros — neles, só havia um bando de gente louca e supersticiosa querendo me matar —, bem diferentes dos sonhos que Alec me contava que tivera. Bem diferentes do que eu costumava sonhar, na verdade.

                Seria maravilhoso se eu soubesse do sonho que eu própria tivera, mas acabei me decepcionando ao me dar conta de que não tinha a mínima ideia do que acabara de sonhar. Nada, nenhuma mínima e ínfima descrição sequer; tudo o que eu sabia era que me deixara inquieta o suficiente para continuar dormindo.

                Talvez num outro momento — em que eu quisesse mesmo me lembrar das coisas perturbadoras que tinha visto —, se eu me esforçasse, conseguiria lembrar. Mas não agora.

                Eu me levantei, sentindo minha língua um pouco pegajosa, seca por causa de tanto tempo sem ingerir líquidos. Peguei o jarro de cerâmica que ficava ao lado da cama todas as noites e, sem me importar em colocar a água num copo, bebi direto do gargalo.

                O ardor seco em minha garganta e a aspereza em minha boca se aliviaram em contato com a água fria.

                Depois que me vesti decentemente, fui à cozinha tomar o café da manhã.

                Alec, que já não estava dormindo, também não estava na cozinha, como eu esperava que estivesse. Talvez ele tenha ido pegar água, pensei comigo mesma.

                Mamãe também não estava à vista, e tampouco papai.

                — Mãe? — chamei, mas não ouvi sua resposta, então ela devia estar mais longe; talvez do lado de fora da casa. — Mãe? — disse de novo enquanto ia até a porta, procurando.

                Do lado de fora estava igualmente silencioso. O vento era só uma brisa leve e agradável. Varri com os olhos a margem da floresta — que circundava quase todo o vilarejo. —, mas não havia qualquer sinal de movimento, tampouco algum som.

                Mas então, do lado esquerdo da floresta, ao norte, havia uma pequena comoção, encoberta por algumas casas. No entanto, eu podia ver que era uma reunião grande de pessoas; elas observavam algo.

                Calcei meus sapatos e fui até lá, para ver se conseguia descobrir o que era; à medida que me aproximava, a multidão aumentava de tamanho, e parecia que todo o vilarejo estava reunido ali — como se estivessem vendo um encantador de serpentes, ou uma tragédia das grandes —, tive que fazer algum esforço — procurar atentamente — para encontrar minha mãe no meio dos curiosos.

                Eu agora podia ouvir alguns arquejos — certamente de gente assustada — e algumas pessoas que tentavam, aos empurrões, abrir caminho pelo meio da massa inerte de gente acotovelada. Alguns até ousavam pedir licença, mas outros empurravam; eu podia ouvir o protesto das pessoas, reclamando e pedindo mais educação.

                Quando, finalmente, alguém que tentava sair conseguiu fazê-lo, saiu correndo em direção a sua casa, e eu não tive tempo de perguntar o que se passava. O adolescente — que devia ser alguns anos mais velho do que eu —, corria com as duas mãos na frente da boca, como se quisesse vomitar, mas achasse nojento demais para fazê-lo em público.

                Eu conseguia ouvir alguns sons vindos do amontoado de gente curiosa. Parecia que mais gente estava vomitando. E, então, que quer que estivesse ali, causava nojo às pessoas. O que eu não consegui entender era: Se era tão nojento assim, porque eles simplesmente não davam o fora?

                E então, depois de algum tempo, eu vi Alec saindo, muito lentamente, do meio da multidão compacta.

                Sim. Alec não era a coisa mais linda do mundo, mas não era possível que as pessoas estivessem vomitando por causa dele.

                O rosto de meu irmão estava porejado de suor; ele parecia estar até um pouco mais pálido... E eu não entendia o que havia acontecido. Porque ele estava daquela maneira? Era como se estivesse... Como se estivesse mal. E foi só quando o vi limpar o canto da boca com a manga do casaco, que compreendi o que o suor e a expressão pálida queriam dizer: ele também havia vomitado.

                O.K, mas isso não respondia à pergunta crucial: Por quê?

                Como se fosse para responder a minha pergunta retórica, eu vi mais um homem saindo do amontoado de gente... Com uma cabeça incorpórea nas mãos, agarrando-a pelos cabelos, e mantendo-a longe de seu corpo, como se aquilo fosse atacá-lo se ele não tomasse cuidado.

                A cabeça me era vagamente familiar, mas eu não podia ter certeza, porque estava um pouco deformada: A pele do lado direito do seu rosto já não estava mais ali, como se tivesse sido raspada com uma faca, ou arrasada sobre uma superfície áspera, como uma pedra, ou um pedaço de madeira mal cortado; Um de seus olhos estava saltado da órbita, e pendia para baixo, dependurado somente pelo nervo óptico; O maxilar fora deslocado de seu local exato, e pendia de um lado para o outro, sempre que o homem que carregava a cabeça fazia algum movimento. Com a boca aberta, eu podia ver que também não restara muito de seus dentes; os incisivos superiores já não estavam lá, um dente canino inferior pendia para o lado, segurado somente pela raiz.

                Alec me observou observar a cabeça incorpórea e revirou os olhos, como se me perguntasse: “Como consegue olhar para uma nojeira dessas sem sequer vomitar?”.

                A verdade era que eu já estava quase chagando a asse extremo, e o teria feito se seu olhar de descrença não me lembrasse de desviar os olhos da cabeça sem corpo.

                Eu olhei para ele e revirei os olhos também, para dizer que havia entendido. Depois disso Alec assentiu e desmaiou, caindo com a boca de encontro à terra molhada.

                Num instante mamãe estava o meu lado, abanando Alec e tentando algo que o fizesse acordar. Não era tão fácil; além do tumulto que havia, o nervosismo de todos pairava sobre o vilarejo como uma atmosfera tangível.

                — Alec?! — disse, tentando inutilmente fazer com que ele recobrasse sua consciência e me ouvisse. Mas é claro que não seria assim tão simples, eu sabia disso antes mesmo de fazer, mas não custava nada tentar. Alec não me respondeu.

                Minha mãe segurou as pernas desfalecidas de Alec e me disse:

                — Rápido Jane! — ela disse com urgência — Ajude-me a levá-lo para casa; há muita perturbação aqui!

                Eu segurei Alec pelos dois braços e o ergui, para que ele não ficasse todo sujo com a terra. Não funcionou muito bem, porque, pelo menos para mim, — uma menina de treze anos, baixinha e com um porte frágil — ele pesava uma tonelada, já que estava desmaiado e não sustentava o próprio peso.

                Se Alec não acordasse logo eu o deixaria no chão, seria arrasado até em casa assim. Vamos, pensei, acorda logo, irmão; não estou a fim de deixa-lo ser arrastado por esse chão imundo. Isso, obviamente, não iria funcionar. Nem que eu jogasse um balde de água gelada em seu rosto.

                Minhas mãos, agora suadas, estavam escorregando das dele rapidamente.

                Eu gritava em meus próprios pensamentos. Ordenava mentalmente para que Alec acordasse. VAMOS. AGORA!,

                Se isso não parasse de acontecer, eu ia mesmo pensar que tinha um dom — que ela uma bruxa, como Noah viva falando. Isso só podia ser coincidência — mais uma —, porque Alec acordou naquele mesmo instante.

                — Ah, finalmente. — eu disse, mais para mim mesma do que para ele ou para mamãe, que o carregava pelas pernas.

                Esperei que chegássemos até um local mais ou menos confortável, então soltei Alec, de cabeça no chão.

                — Ei! — protestou ele, ainda grogue, após o desmaio; Alec estava com a cabeça quase em uma poça de lama.

                — Desculpe. — eu disse — Mas você sabe que não é a pessoa mais leve do mundo, irmãozinho! Além disso, meus braços estavam ficando dormentes.

                Alec se sentou de vagar no chão e depois assentiu.

                — Entendo... Obrigado por me carregar. — ele me disse, genuinamente agradecido.

                — Não há de quê... Mas eu não faria isso por muito mais tempo; já estava quase deixando que você batesse a cabeça nas pedras, mas pensei que isso o deixaria mais maluco do que você já está...

                Ele me mirou com uma expressão de incredulidade, arqueando uma sobrancelha.

                — Muito engraçadinha. — ele disse, depois se levantou, e sacudiu a sujeira do chão das roupas.

                — Você está bem? — perguntou mamãe a ele. —Tem certeza que pode andar?

                Alec assentiu. Eu revirei os olhos.

                — Mamãe, ele só desmaiou, não perdeu uma perna. —eu disse, rindo um pouco da paranoia de nossa mãe.

                Mamãe me mirou e revirou os olhos. Alec fingiu que não escutou.

                Depois, nós três continuamos a andar.

                Depois de alguns segundos de silêncio, eu o quebrei para perguntar a Alec o que havia acontecido. Eu sabia que mamãe também queria fazer essa pergunta, mas estava esperando que chegássemos a casa para falar sobre isso.

                — Bem... — ele começou, depois fez uma pausa para tentar se lembrar com mais clareza. — Eu não sei direito; foi tudo tão rápido! — ele falou, depois fechou os olhos e massageou as têmporas com ambas as mãos.

                Eu suspirei.

                — Foi tudo tão rápido que você não viu o que aconteceu, ou foi tudo tão rápido que você não conseguiu manter o que tinha no estômago para dentro? — eu disse, e depois ri.

                Alec não pareceu notar minha brincadeira, e respondeu sério.

                — Acho que mais ou menos os dois. — ele falou, fazendo uma expressão de desconforto. — Eu não sei... Em um momento a mulher estava na borda do poço, sentada, puxando seu balde d’água, e no outro, se desequilibrou e caiu para dentro... E quando aquele rapaz foi puxar o balde, para destrancar a passagem e poderem resgatar a senhora, a cabeça da mulher veio junto... E depois...

                — E depois você vomitou — eu disse. — Sim, eu já imaginava. — depois eu ri.

                Mamãe me mirou, severa.

                — Não tem graça, Jane. — Disse ela, me mirando intensamente com seus olhos, que eram de um azul tão escuro que, à noite, pareciam roxos. — Está sendo inconveniente.

                — Desculpe, mamãe. — eu disse, e voltei meu olhar para o chão.

                — E então, querido — mamãe disse a Alec — Você não viu o que aconteceu lá realmente? — ela perguntou.

                — Não. Nada além do que eu disse. Na verdade, acredito que todos que estavam lá tenham ficado muito perturbados com o que aconteceu, mamãe. — Ele disse, massageando as têmporas, como se, com o calor de seus dedos em atrito com a pele, ele pudesse esfumaçar as lembranças rápidas que tinha. Depois ele me dirigiu um olhar cheio de significados, mas que eu não sabia o que era; teríamos de esperar para que eu pudesse perguntar o que ele queria me dizer.

                Não que mamãe tivesse conhecimento sobre o que acontecia — as pessoas nos chamando de aberrações e blá, blá, blá. — mas ela jamais podia sonhar que especulávamos sobre o que diziam; sua primeira regra era: Não ousem escutar o que essa gente desocupada diz. Eu não escutava. A ideia de pensar sobre isso fora toda de meu querido irmãozinho que, segundos atrás, havia vomitado as vísceras.

                — Certo. — ela disse — E mesmo perturbado, você ficou lá para ver o que havia acontecido a ela? — ela perguntou retoricamente.

                — Desculpe. — disse Alec. — Eu não sabia que aconteceria uma coisa tão horrível, mas eu deveria ter ido embora. — ele complementou, e depois me olhou de novo, como se seu olhar explicasse alguma coisa. E talvez fosse, mas eu não queria pensar que tudo aquilo fora culpa dele, ou de seu feiticeiro/mago/bruxo interior; Para mim, toda aquela história continuava a ser uma besteira sem tamanho, fruto de mentes incrivelmente ociosas.

                A única coisa em que eu concordava com Alec — mesmo sem ele saber — era que nosso pai havia, por algum motivo inconcebível para mim, mentido para nós sobre a morte de nosso avô.

                — Muito bem! — mamãe disse — porque vocês não entram enquanto eu vou pegar o balde que o Senhor Curiosidade esqueceu perto do poço? — Vamos! Vamos! — ela disse, batendo palmas atrás de nós, enquanto nos dirigíamos devagar para dentro.

                Nós entramos e nos sentamos às cadeiras ao redor da mesa.

                Quando mamãe desapareceu de vista, eu disse a ele:

                — E então? Diga o que queria dizer — sugeri a ele.

                Ele assentiu, mas não disse nada por algum tempo.

                — Sobre a mulher que caiu no poço... — ele começou a dizer, mas depois foi silenciado quando seus dentes começaram a bater, era como se ele estivesse com frio.

                Eu ergui uma sobrancelha para ele, dando a entender que queria que ele continuasse.

                —... Eu acho que é culpa minha — disse ele, só movendo os lábios, sem emitir som algum; ninguém que passasse pelo lado de fora da casa poderia ouvir.

 E então, mesmo que pudesse ter imaginado que era isso que ele diria, eu não poderia prever minha reação àquilo. A loucura de suas palavras era tanta que, embora estivesse me esforçando para fazer silêncio, comecei a gargalhar ruidosamente.

                — Rá, rá, rá, rá — eu explodi de repente, gargalhando tão alto que Alec se assustou e quase caiu da cadeira.

                Eu continuei com as risadas ruidosas e indiscretas. Alec me olhava exasperado.

                Uma coisa era eu concordar com algo que ele dissera. Outra, bem diferente, era acreditar que ele pudesse mesmo manipular alguma situação de acordo com sua vontade. Eu mesma já havia presenciado situações assim, nas quais o que eu pensava e desejava coincidiam com o que acontecia de fato, mas não acreditava que tivesse tal poder.

                Pessoas se dando mal; perdendo a cabeça — literalmente — e morrendo de formas terríveis estavam além de nossa capacidade de decisão.

                E não. Eu não esquecera tudo o que as pessoas diziam sobre nosso avô — aquele blá, blá, blá sem sentido sobre ele ser um... Bem, aquela palavra com “B”. —, e sobre suas fantásticas habilidades terem passado para mim e meu irmão. 

Eu podia me lembrar, mas estava longe de acreditar nisso.

Enquanto eu continuava a gargalhar, Alec revirava os olhos e tentava explicar o que havia acontecido no interior de sua cabeça criativa pouco antes de a velhota cair no poço.

Eu tentei, sem muito sucesso, parar de rir e recompor minha expressão séria. Obviamente, não deu certo.

— Rá, rá, rá — agora eu estava com um pouco de falta de ar, e chegava a sentir uma dor aguda na boca do estômago, de tanto rir.

A dor na barriga, de alguma forma, me fez quase que imediatamente parar de rir. E parei de rir por conta da dor, porque, com ela, me lembre daquele sonho que tivera à noite; isso não era algo que eu quisesse me lembrar. Pelo menos não agora.

Quando recuperei meu fôlego, vi que Alec me encarava, de sobrancelhas unidas em uma linha irregular acima dos olhos, com cara de bravo.

— Já acabou? — perguntou ele, sério.

— Acho que sim — eu disse em um tom um pouco mais contido.

Ele assentiu e depois ficou calado.

Eu esperei que ele dissesse o que havia começado antes que eu interrompê-lo.

Ele não continuou.

— E então... — eu o instiguei — Não vai continuar sua história?  — perguntei quando vi que ele não diria nada.

Ele me fitou, com uma expressão de incredulidade no rosto; os olhos arregalados com as pupilas dilatadas no meio das íris azuis-escuras.

— Não sei, irmã — ele começou, seu tom de voz prometendo uma represália por meu comportamento. — Se, talvez, você quiser para de rir... — ele não terminou a frase, deixando-a para que eu a concluísse sozinha. Mas ele já havia dito tudo em sua frase inacabada.

— Tudo bem. Vou me comportar. —eu disse, levantando a mão direita, num juramento.

Ele revirou os olhos para minha mão levantada e deu de ombros.

— Não vai acreditar em como aquilo aconteceu — sussurrou ele, agora mais cauteloso por causa de minha reação de antes. — Foi como... — ele pereceu lutar com seu vocabulário. — Como se eu, em um segundo desejasse, e, no outro, a mulher estar, literalmente, no fundo do poço, morta e decapitada.

Eu me encolhi um pouco. Era quase como meu pesadelo da noite anterior... Mas eu me reprimi de pensar nisso. Era idiota demais, doentio demais. No entanto, se eu não dissesse isso a Alec, a quem diria? Contar meu sonhos malucos a nossos pais com certeza estava fora de cogitação, tendo em vista de que o título de “Sr. Que Sonha Com Coisas Loucas” era de Alec.

Eu soltei o ar ruidosamente de me preparei para contar as coisas loucas que eu andava sonhando. No entanto, primeiro, eu tinha de me certificar de que mamãe estava longe.

Dei um salto da cadeira em que estava sentada e fui olhar pela janela, além dos terrenos habitáveis de nosso povoado, para a floresta.

Era como eu pensava; ao lado da última casa que formava o meio círculo no qual eram dispostas todas as casa daqui, mamãe se preparava para entrar na floresta, a fim de pegar, no rio, um pouco de água para fazer o café-da-manhã. Apenas nossa família parecia não ter medo de entrar na floresta. Papai, que era um lenhador, trabalhava lá, encontrando árvores que não eram tão grandes para cortar; ele tinha de atravessar a maior parte da floresta — incluindo o rio gelado — todos os dias.

Voltei para a cadeira e me sentei ao lado de Alec, que observava minha atitude calado.

— Sabe, sua história me dá algo em que pensar — eu disse — É engraçada... Digo, é estranha, porque é um pouco parecida com o sonho que tive essa noite — falei, e seus olhos azuis se arregalaram um pouco.

— Você também? — perguntou ele, mas eu não sabia do que ele falava. Você também.  Pelo o que eu entendia, podia ser qualquer coisa. Por exemplo? “Você também tem dois olhos?”

Tentei pensar no contexto da conversa que estávamos tendo.

— Não me diga que também sonhou algo parecido? — eu perguntei, mas era uma pergunta retórica.

Ele assentiu, não dando importância ao tom que eu usara na interrogação.

Eu contei-lhe o meu sonho, descrevendo as partes que eu lembrava com maior precisão do que me era possível.

Ele ficou quieto enquanto eu lhe contava sobre as três pessoas de mantos negros de meu sonho — dois homens e uma mulher. Um deles com os cabelos totalmente negros, como a noite, que caía-lhe até os ombros, semelhante a uma cortina. O outro tinha o cabelo parecido, mas a cor era de um branco inacreditável, como neve. A única mulher do trio tinha os cabelos mais ou menos do tom dos meus e dos de Alec, nem louro, nem moreno, mas uma mescla, como a cor da areia; seu corpo era incomum, como um relógio de areia — eu revirei os olhos quando Ale disse que o nome correto era “ampulheta”. — A cintura e os ombros tinham exatamente a mesma largura, e a garota era baixa.

Alec escancarou a boca quando eu comecei a lhe contar sobre a cor dos olhos das três pessoas; os dois homens, assim como a mulher, tinham as íris cor de vinho, um rubro escuro que sugeria uma poça de sangue profunda, ficando negras ao redor das pupilas. Depois que terminei, ele não se surpreendeu, era quase como se, de alguma forma, o sonho lhe fosse familiar. Será que ele já havia sonhado com algo assim?

Ele se exasperou quando lhe perguntei sobre isso. Revirando os olhos, me disse:

— E o que aconteceu depois? — disse ele, em um tom interessado, como se não conseguisse se conter para saber mais.

Ele ficou parado, muito quieto, sem reação quando lhe contei o que os dos mantos negros queriam de nós; quando eles arrombaram a porta da frente, assustando-nos, e pedindo — ordenando, segundo as palavras do homem de cabelos brancos — que nós, Alec e eu, fôssemos com eles. Quando nos negamos, o de cabelos negros e voz ciciada e gentil, suspirou chateado, e disse que se não pudéssemos ir por bem, deveríamos nos juntar a eles por mal.

O que eu conseguia lembrar, depois disso, era que o de cabelos brancos — que o homem estranhamente gentil, mas que também me parecera perigoso e obstinado (tenaz), chamara de Caius — avançou para nosso pai, e o medo tomara conta de mim e de meu irmão. No entanto, papai, devagar, se afastou dele, que também andava com cautela, e disse: “Fique longe de mim, seu demônio asqueroso”.

Eu não entendera isso na hora, tampouco entendi agora. A expressão de Alec parecia estar menos surpresa do que eu lhe disse que ficara em meu sonho.

Continuei lhe contando sobre o resto.

O homem, que se chamava Caius, olhou confuso para o outro, de cabelos pretos — que eu ainda não sabia o nome. — O outro simplesmente deu de ombros.

“Sabe o que eu sou?”, perguntara Caius a nosso pai.

Papai continuara calado, mas, de alguma forma, conseguiu responder.

“S-sim”, gaguejou ele.

Caius sorriu, debochado e presunçoso, e então disse:

“Ora, então deve saber que não pode me ferir com cruzes, água benta, estacas de carvalho branco, verbena ou qualquer outra coisa que sua mente medíocre pense para me matar”, disse ele, desafiador.

Papai, depois de algum tempo de deliberação cuidadosa, falou:

“Sim, eu sei. Mas não é impossível matar um vampiro. Não é preciso muita coisa. Apenas isso...”, ele disse e, então, como as coisas malucas que acontecem nos sonhos, de repente papai tinha um archote nas mãos. Ardendo em chamas. Ele jogou a tocha para cima do homem que ele chamara de “vampiro” e ele instantaneamente pegou fogo. Depois, só havia cinzas no lugar onde, antes, um segundo atrás, havia um vampiro.

O outro olhou para papai com uma cara que poderia sugerir que cometeria um assassinato. Ele pegou a tocha flamejante com cuidado e, com muita habilidade, a atirou para fora da casa. Pude ver a tocha atravessando a floresta alta por cima; talvez deva ter caído do mar, do outro lado do país. Mas eu teria de conferir para ter certeza. De uma coisa, pelo menos, eu tinha: O outro... Vampiro, assim como o primeiro, era sobrenaturalmente forte. Caius podia ter escapado da morte, se quisesse. Mas aquele era o meu sonho.

O vampiro de cabelos negros avançou para meu pai, com a mão estendida, como se quisesse fazer as pazes. Ele a pegou por uns segundos. Depois de algum tempo, ele pareceu murmurar consigo mesmo: “Com certeza ele sabe demais. Sim, não há outra alternativa.”

E então, com uma velocidade alucinante, que eu mesma não tivera tempo de ver direito, o homem pareceu apertar a mão de meu pai. Depois seus dedos, ensanguentados, estavam no chão. O outro homem, sendo um vampiro, numa atitude estranha, não deu importância ao sangue dos ex-dedos de meu pai.

Depois, percebendo o que acontecera, papai soltou um urro de dor capaz de gelar o sangue. Eu queria gritar, mas não encontrava minha voz.

O vampiro, aproximando-se mais um pouco, enterrou a mão sob a caixa torácica de papai, e retirou, inteiro, um de seus pulmões. Reconheci como sendo o esquerdo, porque era menor. Enquanto a tortura acontecia, mamãe desabara no chão, estarrecida com a dor emocional. Depois, como se arrancar o pulmão não fosse o bastante, ele deu um soco no queixo de papai, e a cabeça se desgrudara quase que instantaneamente do resto do corpo.

Depois de deixar meu pai morto no chão da casa, o assassino virou-se para nós, os olhos vermelhos cintilando com um brilho que eu não reconheci, com um sorriso encantador, simpático, reconfortante e convidativo, e disse:

— Espero que isso os tenha feito mudar de ideia — disse ele, acariciando as palavras como se tentasse se redimir pelo que havia feito. — E então, jovem Jane, gostaria de se juntar a mim a minha pequena família? — perguntara ele, feliz, com a voz fina levemente carregada de um desejo sonhador.

Eu não podia acreditar no que ele estava me perguntando. Será que era verdade? Tomada por uma raiva homicida, eu disse:

— Nem que seja no inferno, que é para onde você vai. — eu disse, e minha voz, no final, parecia ter assumido um tom quase melodioso, como se eu estivesse cantando.

E depois me dei conta das outras mudanças que haviam ocorrido com meu corpo quase que instantaneamente: Minha pele, com certeza estava muitos tons mais clara. Aliás, ela deveria ter enrijecido quase à consistência de uma pedra. E era fria como gelo. Eu me sentia mais forte. Após isso, fui pega por um desejo furioso, e tudo o que eu queria era causar dor a alguém.

Antes de me dar conta sobre o que pensara, o homem de cabelos negros estava no chão, contorcendo-se com a dor que parecia emanar de algum lugar à sua volta. Ele agora gritava, e eu podia ouvir, em seu berro lancinante e fino, que ele sentia dor. Uma dor que devia subjugar tudo o que ele já sentira na vida.

Com um toque, quase como um clique em minha cabeça, eu percebi que a fonte de dor daquele homem era eu. Mas, ao contrário do que eu imaginava, eu não queria parar. Minha vontade era causar mais dor àquela praga que invadira minha casa somente para matar meu pai. Eu o teria torturado por dias, ou até que chegasse a um ponto em que ele imploraria pela morte. Eu aceitaria seu pedido e o realizaria com todo o prazer, bem devagar, para torturá-lo mais ainda.

Percebi, com certo ânimo, que eu sorria quando Alec me trouxe de volta à realidade, perguntando, como se não fosse óbvio, como eu percebera que era eu que estava torturando o vampiro.

— Não sei Alec — eu disse. — Foi um sonho, eu simplesmente sei... — disse, dando de ombros.

Ele assentiu, e depois me perguntou o que acontecia depois.

— Na verdade, nada — eu disse, indiferente. — Depois disso, eu acordei.

Alec me olhou, um pouco confuso, como se estivesse frustrado; com certeza ele pensava que o desfecho de meu sonho seria algo magistral. Grande equívoco — nem todo mundo sonha como ele.

Depois de algum tempo em silêncio, ele pareceu tomar fôlego para me contar, ele mesmo, seu sonho.

Eu tinha certeza de que não seria tão ruim quanto o meu. No entanto, seu próprio sonho parecia deixa-lo mais perturbado do que o meu. Com certeza eu subestimava a intensidade de seus pesadelos, acreditava que, só porque eu sentia o que o meu era, ele seria pior.

Na verdade, não era muito diferente do meu. Fiquei curiosa que aquele vampiro de cabelos negros estivesse em seu sonho também. Contudo, não foi isso o que mais me perturbou. Porque, de certa forma, o vampiro se comportava melhor em seu pesadelo do que no meu, e isso deveria fazer algum sentido. Pelo menos para Alec, que gostava de desvendar mistérios sem pé e nem cabeça. Não foi a diferença que me fez tremer, e sim a semelhança; no sonho de Alec, eu também não era eu. Ele me disse que, assim como o que eu contara, em seu pesadelo eu estava fria, com a pele dura, pálida e de olhos vermelhos.

Fiquei mais perturbada ainda ao saber que, assim como na minha história, eu torturara o homem de cabelos negros. A única diferença evidente estre esses fatos era que, no sonho da Alec, o vampiro fugia para a floresta, enquanto eu ficara ali, junto com meu irmão, caída no chão por ter torturado o homem que se transformara em mim.

 Estremeci verdadeiramente quando ele terminou de me contar seu sonho, dizendo que, muito lentamente e com um sorriso no rosto, eu levantara do chão sujo e bebera de seu sangue.

Então, como se aquilo estivesse acontecendo, eu pude, de alguma forma inconcebível, perceber o brilho rubro que devia estar toldando meus olhos de vampira.


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