Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 3
II. DESEQUILÍBRIO




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II. DESEQUILÍBRIO.

Alec.

Meus sonhos sempre foram meio malucos, mas o dessa noite havia superado todos os outros.

Jane e eu brincávamos sob a sombra da enorme sequoia que ficava exatamente no meio da clareira. Até aí, estava tudo bem.

Muito bem, na verdade. Bem demais para que eu, mesmo sonhando, acreditasse que fosse verdade, e então eu sabia, mesmo dormindo, que estava sonhando. Talvez meu subconsciente estivesse me dando o que eu precisava tanto — um pouco da paz e tranquilidade — mesmo sendo somente um sonho, eu tinha certeza de que quando acordasse, me sentiria melhor por não ter sonhado nada tão perturbador. O que, para mim, era novidade.

O.K. Estava bom demais para ser verdade, e eu não tinha como acreditar que aquele seria apenas um sonho normal — Normal do tipo sem gente perdendo a cabeça por um raio, cortada por uma guilhotina ou sendo queimada viva enquanto grita incessantemente por uma ajuda que nunca viria.

Os sonhos ruins eram minha rotina noturna. Absolutamente todas as noites eu tinha pesadelos. Isso começara a acontecer desde o dia em que Anne morreu, mas eu já havia aprendido a ignorá-los — Se havia algo no qual eu não acreditava eram em recados de meu subconsciente hiperativo.

Ilusão demais pensar que o sonho ficaria só na brincadeira agradável.

De repente, Jane parou de brincar e sentou-se em uma raiz grande, que poderia servir de banco.

Eu me voltei para onde ela estava e a mirei por alguns segundos. Não era um comportamento estranho, mas em meu sonho era errado.

— O que aconteceu? — eu perguntei a ela, que deu de ombros e nada disse.

— Há algo errado? — perguntei de novo, tentando arrancar uma resposta dela.

— Não. — ela por fim falou, mas eu conhecia minha irmã, e quando ela diz que não há nada errado, é provável que o mundo esteja se desintegrando em cinzas. Porque é algo bastante sério.

— Não minta para mim. — eu disse — você sabe de alguma coisa e não quer me contar...

Meu comentário perde-se no silêncio, porque assim que falei que ela estava mentindo, Jane me olhou com um olhar malévolo, que metia medo até em nosso pai, se ele visse.

Depois disso, seu rosto começou a sofrer mudanças sutis, mas que, com o tempo foram se acelerando. Ela começou a ficar pálida, muito pálida, mais do que já era. Quando pisquei, sua pele inteira já havia se transformado em uma casca de cebola — extremamente pálida e parecendo translúcida, como se desse para ver através dela. Era assustador.

Eu queria acordar, mas não encontrava minha consciência. Estava preso àquele sonho até que a manhã me acordasse e me tirasse desse pesadelo horrendo. Em geral, eu era curioso a tudo o que acontecia, sendo realidade ou não. Mas aquilo... Queria despertar logo, mas sabia que isso não aconteceria.

E então, como se sua mudança de pele já não fosse suficientemente assustadora, seus olhos azuis escuros — quase violetas — começaram a clarear.

O que me deixou intrigado, foi que essa parte, surpreendentemente, não foi tão má assim, porque, tirando a pele de cebola, a mudança não era tão perturbadora. Bem, pelo menos assim eu pensava. Os olhos azuis começaram a clarear nas bordas das íris até que ficassem totalmente verdes. Uma cor legal. Mas, então, os olhos verdes começaram a escurecer, tornando-se, novamente nas bordas, castanhos escuros, até que a íris assumiu um castanho escuro surpreendente, a cor do chocolate. Depois disso, o processo se repetiu, mas agora os as íris se tornavam marrons, e escureciam ininterruptamente. Eu pensei que o processo não ia parar até que escurecesse mais, tornando os olhos totalmente pretos, mas não foi isso que aconteceu.

Inesperadamente, o processo se reverteu, e o marrom escuro começou a clarear, até que as íris ficaram bordô — um tom mais escuro do que o vermelho —. Depois clarearam mais um pouco, e seus olhos estavam vermelho vivos, quase como se suas íris estivessem pintadas com sangue. A essa altura eu já acreditava que seus olhos passariam por todas as cores. Mas a metamorfose dos olhos parou no vermelho sengue.

Uma visão horrenda.

Depois, seus cabelos castanhos começaram a escurecer, tornando-se completamente negros — como uma cortina de petróleo que recobria sua cabeça. O comprimento dos cabelos também aumentou, e agora os cabelos lhe chegavam aos ombros.

A roupa clara que Jane vestia começou a escurecer e a se alongar, até que terminou como se estivesse vestindo um manto perfeitamente escuro.

E suas feições começaram a mudar. A endurecer, deixando para trás sua pele macia de criança para o rosto bem definido de um adulto... Mas havia algo errado. As feições estavam deslocadas. O rosto era quadrado demais para que fosse um rosto feminino normal.

Não era um rosto feminino normal. Nada normal. Na verdade, não era um rosto feminino. Os traços de feminilidade desapareceram, as sobrancelhas finas e levemente onduladas de Jane começaram a engrossar e a formar uma linha quase reta, o que dava ao novo rosto uma expressão rigidamente masculina.

Eu fiquei sem fala, porque estava surpreso... Mesmo sendo um rosto rígido, ele não mostrou o que eu esperava ver. Estava esperando que o homem em que Jane havia se transformado fosse radicalmente hostil, mas isso não aconteceu; apenas me mirava com uma curiosidade fervorosa, como se não conseguisse se conter, e estivesse morto de vontade de falar comigo.

Ah, eu sabia que aquela pessoa que estava em minha frente ainda era Jane, mas, naquele momento, era como se ela desse espaço a outra pessoa, como se ela ainda estivesse ali, dentro do corpo do homem, mas calada.

Então, eu me arrisquei a falar com o homem desconhecido.

— Jane? — perguntei, para saber se ela ainda estava ali, em qualquer lugar que fosse.

O homem de rosto benevolente sorriu amistosamente para mim e depois assentiu.

— Espere aí... — eu me interrompi, tentando não falar algo tão idiota. — Você é Jane e outra pessoa, ou só Jane? — perguntei, tentando não parecer um idiota, mas sem muito sucesso; eu podia apostar que o homem iria revirar os olhos para minha pergunta idiota.

Ele hesitou, depois deu de ombros e me respondeu.

— Eu sou quem você pensa que eu sou, jovem amigo. — ele disse, com sua voz ciciada, doce e calorosa. Ele estava me tratando bem.

Estranho. Meus sonhos eram sempre com alguém que, normalmente, não gostava de mim, então eu não estava acostumado a ser tratado bem pelas pessoas com quem sonhava. Até mesmo mamãe, em um sonho, já tentara me decapitar.

Pensei na resposta do homem gentil... Bem, o que eu imaginava é que Jane ainda estava ali, sendo ela mesma, mas, de alguma forma, inconsciente do que acontecia.

— Certo. — eu disse, tentando parecer decidido. — O que você quer? — eu não perguntei isso rispidamente, mas com a determinação certa para não soar amedrontado.

O homem nada disse por um bom tempo, depois deu de ombros e perguntou:

— Qual seu nome, meu jovem? — ele disse, a pergunta soando reconfortante em sua voz um pouco aguda.

Eu o mirei novamente, tentando imaginar porque essa informação seria importante. Depois desisti e respondi.

— Meu nome é Alec — eu disse.

O homem me mirou, novamente com aquela curiosidade ardente, que agora parecia queimar atrás de seus olhos rubros. Uma chama negra ardendo sob o carmim vivo, depois sua sobrancelha direita se arqueou, e parecia que, mesmo se ele relaxasse, sua pele ficaria permanentemente vincada.

Depois o homem curioso relaxou sua expressão e ficou calado. Então, vagarosamente, ele estendeu sua mão em minha direção, como se me convidasse para um aperto de mãos.

Fiquei confuso.

— Eu gostaria de conhecê-lo, meu amigo. — disse o homem misterioso, e depois olhou para sua mão. Talvez ele quisesse dar um passeio.

Eu tinha certeza de que ele não me faria mal algum, porque sua voz era gentil, doce e calorosa. E, se ele estivesse planejando algo, estaria me chamando de amigo? Era uma probabilidade difícil.

Eu estendi minha mão vagarosamente até ele, muito devagar para que mesmo eu ficasse com impaciência de minha lentidão.

Quando minha mão chegou à palma da dele, ele a segurou com um pouco mais de firmeza, abaixou a cabeça e fechou os olhos, seus ombros se curvando. Era como se, ao tocar em mim, ele estivesse recebendo algum choque, enrijecesse e ficasse paralisado.

Sua pele era incrivelmente rígida, como se fosse feita de pedra, ou algo mais duro. Talvez diamante. Ela não tinha a textura que eu imaginava que teria. Em vez de ser pulverulenta, era incrivelmente lisa; exatamente como passar a mão em uma superfície feita de mármore. No entanto, não era isso o que mais havia me chamado a atenção e me deixado intrigado. Era a temperatura de sua pele.

Estava errada.

Não era da temperatura da minha. Nem de longe. As mãos do homem eram terrivelmente frias. Frias não, geladas, congelantes e congeladas. Era como se fossem feitas de gelo, e não deviam passar de 2 graus positivos. Então, fosse qual fosse a maneira que aquele homem encontrava para não morrer de frio, essa deveria ser extremamente eficiente, porque ele não parecia mal. De forma alguma; ele até sorria um pouco.

Eu, agora, prestava atenção à sua imobilidade, até que vislumbrei algo de relance, perto da floresta.

A figura que saía de entre as árvores era baixa, com mais ou menos a minha idade, tinha os cabelos, esvoaçantes — por causa do vento — castanho claros, assim como os meus.

Foi só então que percebi que aquela figura era idêntica à minha irmã, Jane. Mas, de alguma forma, eu sabia que não era ela, porque ela era o homem que agora segurava a minha mão com uma voracidade quase doentia. Ela dividia o corpo com o homem misterioso, então eu sabia que não podia ser Jane de verdade.

A figura que se parecia com minha irmã foi se aproximando. E, quando estava perto o suficiente para que eu visse a palidez surpreendente de sua pele — pálida como a pele do homem que ainda segurava minha mão —, eu percebi que alguma coisa escorria de sua boca, como se fosse saliva. Mas não era; a cor estava errada. Não era transparente, mas sim vermelho vivo. Um vermelho incrível, como a cor dos olhos do homem misteriosamente gentil. Antes que eu pensasse que o sangue do canto da boca de Jane, e que agora gotejava em suas roupas, fosse dela, me dei conta de que sua expressão era calma. Profunda e inconfundivelmente calma. Então o sangue não poderia ser de algum machucado, e sim de outra criatura. Jane sorriu para mim, revelando seus dentes incrivelmente brancos, mas que, agora, estavam recobertos com sangue.

E então eu prestei atenção a outro detalhe, um que eu devia ter percebido antes.

Seus olhos não eram mais azuis como o céu, mas sim, agora, vermelhos como o sangue que ela trazia em sua boca.

Ela sorriu docemente de novo, ainda se aproximando de mim vagarosamente. Quando chegou bem perto, ela mirou o homem que estava segurando minha mão. Mas não era um simples olhar. Era um olhar concentrado e terrivelmente focado, como se ela estivesse se concentrando para fazer algo.

O homem se jogou para atrás, berrando em agonia, enquanto soltava minha mão. Era como se uma espécie de força invisível o dominasse e o fizesse sentir dor. Depois, quase no mesmo segundo, a figura que era terrivelmente parecida com Jane também se jogou para atrás, e também berrava em agonia, do mesmo modo que o homem. Ambos pareciam estar sentindo uma dor lancinante.

Um segundo depois, os gritos cessaram, e os dois ficaram no chão, ofegantes. O homem, após se recuperar da terrível dor que pareceu sentir, levantou-se do chão imundo, virou as costas e, como um relâmpago, partiu em direção às árvores da floresta. Na verdade, eu não tive tempo de vê-lo. Só o que registrei foi a brisa leve deixada por sua partida, e então os galhos das árvores que se moviam lentamente pelo mesmo tipo de brisa que eu senti.

A figura que parecia Jane ainda estava no chão; seus olhos vermelhos me fitaram com curiosidade e algo mais, mas eu não sabia dizer o que era.

Lentamente, ela se levantou e me contornou devagar. Quando a criatura-Jane estava atrás de mim, pude sentir sua respiração gélida em meu pescoço.

A última coisa que senti antes de acordar foi seus dentes um meu pescoço, cortando e dilacerando minha carótida enquanto seus lábios sugavam meu sangue.


Naturalmente, acordei sobressaltado e assustado demais para que conseguisse dormir novamente. O que não era bom, porque ainda era noite.

Fui até a janela a olhei para fora. A noite não estava tão escura como eu pensava que estaria; talvez fosse só meu estado de espírito — ainda agitado — fazendo pressuposições. Era Lua cheia, e seu brilho prateado batia direto em minha janela.

Olhei para o céu, tentando fixar meus olhos semicerrados nas estrelas e deixando que eles se acostumassem ao brilho intenso da Lua.

Eu queria esquecer, viajar para outros lugares com meus pensamentos. Queria qualquer coisa, menos pensar no sonho que tivera. Não porque ele era assustador ou algo do gênero. Longe disso. Mas, sim, porque aquilo era tão idiota que eu me recusava a pensar sobre o assunto.

E então, como de costume, sempre que eu queria me privar, me recusar a pensar em algo... Era exatamente aquilo que vinha à minha cabeça e eu não consegui evitar.

Entreguei-me aos desejos incontroláveis de minha mente e revi o sonho que tivera há pouco.

O homem misterioso em quem Jane se transformara. A forma inexplicável que, mesmo inconscientemente, eu tivera consciência de que minha irmã estava dentro daquele corpo estranho, em algum lugar por ali... A forma assustadora com que os olhos do homem mudavam de cor, até que suas íris ficassem vermelhas e parassem de se metamorfosear. A aterrorizante temperatura invernal de suas mãos, tocando as minhas enquanto seus ombros se retesavam e enrijeciam, de modo que parecesse que ele via algo importante, mas que não estava exatamente ali.

O que me surpreendia mais era que a parte mais assustadora de meu de meu sonho, a que eu não deveria querer me lembrar, ficara gravada em meu cérebro e eu não sabia se poderia não me lembrar disso. A parte em que Jane — bem, não Jane, na verdade, mas uma cópia quase exata dela — me atacara.

Eu não sentira medo, mas era como se o final daquele sonho fosse perturbador. Eu podia não saber o que era, mas tinha certeza que meu subconsciente achara aquilo incômodo demais para continuar com a cena, e por isso eu acordara no meio na noite.

Sim. Eu acordara no meio da noite. Assustado, ainda que sem motivos, com um pouco de frio, ainda que não fosse inverno, e parcialmente com sono.

Eu bocejei, ergui os braços, só para ouvir minhas articulações estalarem, levante-me do chão, dei meia volta e fui tentar dormir de novo, torcendo para que conseguisse fazê-lo, partindo do pressuposto de que eu não voltaria a sonhar algo tão maluco assim. Sonhar com dragões de dez cabeças cuspindo fogo por todos os orifícios da face era, com certeza, menos perturbador que aquilo.


Eu acordei com o Sol batendo e se refletindo nos cabelos de Jane.

Depois de abrir os olhos, eu percebi que havia dormido sem sonhar. Após isso, me lembrei de que, obviamente, meus desejos não haviam sido atendidos, e eu ainda me lembrava de cada parte de meu sonho perturbador de algumas horas antes. Com precisão demais, o sonho, agora, parecia mais vívido do que eu lembrava, explodindo em cores, o que deixava os olhos curiosos do homem com um tom vermelho incrível e perturbadoramente vivo.

— Bom dia, querido — disse minha mãe depois que cheguei à cozinha.

— Olá, mamãe. — eu disse, depois de um grande bocejo.

— Alec, você poderia ir buscar água, por favor? Eu preciso dela para fazer o chá. — pediu mamãe, sorrindo.

Eu concordei com a cabeça, e mamãe me entregou dois baldes, e depois disse:

— É melhor correr, antes que a fila do poço aumente.

— É claro. — eu disse, e depois saí.

Obviamente, já havia gente no poço. Uns pegavam água, enquanto outros estavam ali só por não ter mais nada para fazer.

Dirigi-me ao último lugar na fila, enquanto a esperava andar. A última pessoa da fila virou-se para mim, para ver quem estava atrás. Quando a mulher me viu, mudou seu olhar para uma cara mais feia do que a que já tinha. Obviamente, ela também já sabia sobre as histórias que corriam — muito rápido. —, e não estava contente por ter uma aberração atrás dela na fila do poço.

Eu ainda não sabia se essas histórias eram verdade ou não, porque estava, atualmente, em uma longa análise dos fatos. — Jane, certa vez, conseguira fazer algo parecido com o que estavam dizendo que nós fazíamos, mas ela alegara que fora somente coincidência. Besteira é claro. Pelo menos para mim, já que não acreditava em casualidades. No entanto, eu ainda não conseguira fazer algo assim. Sorte minha, porque seria assustador demais desejar uma coisa e ela acontecer. Jane era mais corajosa que eu, e, além disso, não acreditava que nós pudéssemos ser descendentes de um mago. Ela sim acreditava em coincidências. E eu também aceitaria isso, se não tivesse acontecido duas vezes.

E então, sobre o que fosse que Noah estivesse falando, eu não tinha a absoluta certeza de que ele estivesse errado. Mesmo sendo ele um velhote caduco e que se esquecia do próprio nome, porque, em primeiro lugar, ele não teria motivos para insistir numa história à qual desse pouco crédito, e ele, definitivamente, não acreditaria numa história na qual não houvesse um fundo de razão, porque Noah não participava das lendas sobre outras coisas; ele sempre dizia que eram bobagens sem tamanho, e não tinha medo algum de ir à floresta, sozinho. Ou de contornar a montanha, em que quase todos acreditavam existir seres sobrenaturais ou entidades divinas...

A mulher ainda me olhava, de cima a baixo, como se analisasse uma peça de roupa ou um animal peçonhento.

Eu já estava ficando incomodado com seu olhar, e fiquei feliz por não ter o mesmo gênio de minha-querida-irmã-alguns-minutos-mais-velha.

E então, em vez de armar um barraco dos grandes, como certamente Jane teria feito, eu só devolvi seu olhar, para ver se ela simplesmente não criava vergonha ou algum senso de educação e desviava o rosto horrível.

Quando ficou claro que ela não faria isso, eu perguntei:

— Por acaso a senhorita — eu impregnei a palavra com todo o meu sarcasmo, porque senhorita era meio lisonjeiro demais para sua idade — perdeu alguma coisa? Posso ajudá-la?

Ela me olhou mais uma vez, virou para frente, aguardando sua vez, e depois murmurou baixinho algo como “insolente”.

Umpf! Por mim, tudo bem; eu havia aprendido um pouco de insolência com Jane. E agora eu podia ver que, de vez em quando, um pouco de insolência e sarcasmo era até útil.

Depois de algum tempo, a mulher se virou para mim novamente, com uma olhar de raiva, e eu dei de ombros.

Ela ficou com mais raiva ainda.

— Você ainda vai acabar muito mal, garoto. — ela disse — gente insolente como você nunca tem uma vida muito longa... — ela continuou falando, mas eu não prestava atenção, porque resmunguei comigo mesmo, alto o suficiente para que ela ouvisse:

— Meu Deus! — exclamei — O zumbido desses insetos hoje está insuportável; devíamos tomar providências, não acha? — eu perguntei ironicamente a ela, depois fingi acompanhar um mosquito com o olhar, então bati uma palma, como se tivesse matado um mosquito de verdade.

A mulher olhou incredulamente para mim, eu pude ver que ela estava com cada vez mais raiva.

— Mas não se preocupe; mosquitos vivem tão pouco... — eu disse, e minha voz minguou enquanto ela reconhecia minha resposta às suas palavras, implícita no comentário sobre os insetos.

Agora ela me olhava com um ar assustado, e eu percebi o duplo significado de minhas palavras; ela tanto podia interpretá-las como eu as disse verdadeiramente — como eu queria que tivesse soado — ou como uma ameaça. A parte “mosquitos vivem tão pouco” era para ser uma comparação com sua idade, e o fato de ela não ter mais do que alguns anos de vida. E não uma ameaça de morte.

Mas agora já era tarde. E ela poderia espalhar para todos o que eu dissera. No entanto, algo me dizia que ela estava assustada demais para isso. Mas então eu pensei que nunca se podia confiar em uma leitura de expressão corporal, e ela podia estar pensando em espalhar o que eu dissera aos quatro ventos.

Chegara a vez de ela pegar a água no poço; então ela sentou-se na borda de pedra do poço, colocou seu balde no gancho que estava preso à corda, e a desenrolou até embaixo, ao nível da água.

Por um instante ínfimo, eu considerei como seria se ela se desequilibrasse e caísse dentro do poço. Longe, como eu estava, ninguém poderia por a culpa em mim. As pessoas que agora estavam atrás de mim seriam a prova de que eu não havia feito nada.

Mas eu sacudi a cabeça negativamente, como se assim pudesse me livrar da ideia horrível, e me recriminei que ao menos pudesse pensar em algo assim.

A mulher rabugenta no poço estava tendo dificuldades; aparentemente, seu balde de madeira estava preso em alguma coisa lá embaixo. Estranho. Porque não havia absolutamente nada lá que pudesse prender um balde cheio d’água.

A senhora se inclinou para frente, para poder identificar o que prendia seu balde, não entendendo que poderia se desequilibrar e cair de verdade.

Tarde demais para que ela entendesse. Em um segundo, ela estava do lado de fora do poço, e no outro ela fizera força para puxar a corda com o balde cheio d’água; o esforço fora demasiado para seu equilíbrio, e ela despencou para dentro do poço. Nós ouvimos o estrondo lá embaixo antes que pudéssemos nos dar conta de que a senhora havia caído.

Uma enorme quantidade de água foi deslocada e alguns pingos chegaram a tocar a borda do poço.

As pessoas começaram a se reunir ao redor do poço enquanto tentavam pensar em como salvar a mulher.

Um homem puxou a corda com o balde que a mulher tentava puxar pouco antes de cair no poço, e não encontrou dificuldades.

Quando o pequeno balde chegou à superfície, na extremidade da corda, havia algo dentro.

Algumas pessoas saíram correndo, outras vomitaram quando o homem virou o balde ao contrário e deixou o conteúdo cair no chão.

Eu podia estar entre os que vomitaram, porque era curioso demais para sair correndo diante do que estava no chão.

Ali, no meio das pedras e da lama, jazia uma cabeça incorpórea. A cabeça era da mulher que acabara de cair no poço, o sangue saindo de onde deveria estar seu pescoço.













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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo será postado somente na próxima semana (Dia 7 ou 8).
Comentem, por favor.